Ciência patológica como arma negacionista

Apocalipse Now
10 out 2020
Autor
Imagem
jovem frankenstein

 

Nenhuma evidência fala por si mesma. Todo dado bruto da realidade precisa ser interpretado. Vários filósofos já notaram que esse fato da vida tem um forte potencial para complicar, e muito, a empreitada científica: de um ponto de vista lógico-abstrato, qualquer coisa pode servir como evidência para qualquer outra coisa, basta ajustar a interpretação de acordo.

Na prática, claro, não é bem assim. Ciência é uma atividade coletiva, comunitária, e não é qualquer interpretação arbitrária que “cola” com a comunidade, que tem forte orientação crítica e empírica: tente convencer um comitê de engenheiros de que uma roda quadrada é eficiente, ou um astrônomo de que a Lua é feita de queijo, e veja onde a conversa leva.

Além disso, critérios como consistência e consiliência — a interpretação científica de um fato na física não pode contradizer os demais princípios da física aos quais ela se conecta, e nem a interpretação que o mesmo fato recebe na química, por exemplo — ajudam a manter o trem nos trilhos. Não é que disputas sobre correta interpretação dos fatos não aconteçam (acontecem o tempo todo), mas dão-se em escalas e com implicações, em geral, bem menores do que uma visão pessimista poderia sugerir.

As ciências tendem não a explodir em contradições, mas a formar consensos, e é exatamente essa capacidade de convergir, mesmo em meio ao potencial caos interpretativo, que tem intrigado e fascinado filósofos nos últimos 150 anos, mais ou menos.

 

Geologia de Noé

De qualquer modo, o potencial para o caos interpretativo sempre existe, e está sempre pulsando longo abaixo da superfície. Muito negacionismo e pseudociência alimenta-se desse pulso. A história da negação dos malefícios do tabaco para a saúde ou do aquecimento global é marcada por reinterpretações “criativas” de dados, em si, corretos. Mas um dos mais bem acabados exemplos desse tipo de estratégia é ainda mais antigo: a “releitura” da geologia e do registro fóssil de modo a negar a teoria da evolução e confirmar o Dilúvio bíblico.

O trabalho clássico nessa seara é o volume The New Geology (A Nova Geologia), do canadense George McReady Price (1870-1963). Numa crítica publicada em seu livro — este outro clássico, só que do ceticismo científico — Fads and Fallacies in the Name of Science (Modismos e Falácias em Nome da Ciência), Martin Gardner (1914-2010) define assim a obra:

“É um clássico da pseudociência. São tão cuidadosamente construídos os raciocínios por trás das especulações de Price, tão reforçados com uma impressionante erudição geológica, que (…) mesmo o leitor cético de Price terá dificuldade de responder a elas sem um conhecimento considerável de geologia”.

As principais alegações de Price eram de que era impossível datar os fósseis de modo a determinar que os mais antigos realmente são os que estão nas camadas mais profundas da crosta, e que há regiões onde fósseis considerados pelos cientistas como mais antigos aparecem por cima dos considerados mais novos, o que é consistente não com camadas depositadas ao longo de milhões de anos, mas com uma grande convulsão que enterrou diversas formas de vida ao mesmo tempo — como a tempestade que fez flutuar a Arca de Noé.

The New Geology foi publicado em 1923. Métodos para datar rochas usando o decaimento radioativo de seus constituintes já existiam pelo menos desde 1907, quando Bertram Boltwood (1870-1927) usou o decaimento do urânio para demonstrar que o planeta Terra deveria ter, no mínimo, 2,2 bilhões de anos (a idade correta é 4,5 bilhões), mas a tecnologia demorou a se disseminar (a técnica de carbono-14 é dos anos 1940), então ele talvez tivesse uma desculpa quanto ao primeiro ponto. O segundo, no entanto, é pura desonestidade intelectual.

Como Gardner aponta em sua crítica, as regiões onde há inversão nas camadas de fósseis são minoria, e correspondem a regiões onde abundam sinais de falhas, quebras ou dobras na sequência natural, sinais que Price finge não notar.

Em dobras, não é apenas a ordem dos fósseis que surge invertida, mas todo o resto, incluindo pegadas, marcas de chuva, rastros do vento — “o centro de gravidade de grandes partículas enterradas no que havia sido lama aparece em cima, não embaixo”, por exemplo.

 

Parcialidade climática

A apresentação da evidência de modo parcial, distorcido ou com um enquadramento inválido ou irrelevante é uma pedra de toque da santa aliança entre negacionismo e pseudociência. A produção de meias-verdades (em vez de mentiras descaradas) é duplamente eficaz: primeiro, alivia a própria consciência (“não estou mentindo, apenas oferecendo um novo ponto de vista”); segundo, dá mais trabalho a quem se dedica a esclarecer a questão, porque ao desmontar uma meia-verdade é preciso cuidado para não jogar a criança fora com a água do banho.

Price fez isso com o registro fóssil, construindo meias-verdades a partir de omissões estratégicas, descontextualização e exageros retóricos. O processo é padrão entre os vigaristas de evidência.

Muita negação do aquecimento global, por exemplo, segue o mesmo figurino. Um caso emblemático é de quando se diz que, no passado, houve episódios de aquecimento global que precederam grandes liberações de CO2, insinuando que os idiotas que publicam na Science e na Nature entenderam a relação de causa e efeito ao contrário.

Sim, é verdade que, 20 mil anos atrás, durante a mais recente transição para fora de uma era glacial, houve um aquecimento que antecedeu a liberação de grandes quantidades de CO2 na atmosfera. Só o que quem tenta usar esse fato para manipular percepções sobre mudança climática omite são os detalhes essenciais.

O aquecimento inicial, causado por fatores astronômicos (mudança na órbita da Terra) levou a uma liberação do CO2 dissolvido nos oceanos. Isso é esperado: a capacidade de um líquido em “segurar” gases dissolvidos é inversamente proporcional à temperatura, e é por essa razão que Coca-Cola quente borbulha mais. O fato, no entanto, é que essa emissão de gases pelos oceanos amplificou o aquecimento que já vinha ocorrendo. Essa é a parte da história que os negacionsistas não contam.

 

 

Jogo de palavras

Outra manobra canônica da pseudociência, abraçada pelos negacionismos, é o de transformar expressões e procedimentos científicos em espantalhos. Isso costuma ser feito por meio de distorção ou formalismo. Distorção acontece quando, por exemplo, um negacionista resolve implicar com a menção ao “consenso científico”.  Consenso não é sinônimo de verdade!, esbraveja. Dúvidas e disputas são parte do processo científico!

Ambos os brados são, em si por si, corretos, mas, como alguém já disse a respeito de certas peças de roupa íntima, o que escondem é mais importante do que aquilo que revelam. Primeiro, não é necessário (embora seja desejável, claro) que o consenso científico seja verdade. O que ele representa é o melhor modelo da verdade disponível sobre a questão, porque construído pela inteligência coletiva das pessoas que se dedicam seriamente a estudar o assunto, e o que o brado omite é: se vamos tomar uma decisão (por exemplo, sobre vacinar crianças ou conter emissões de carbono), o que é mais racional usar como base, o melhor modelo ou um palpite extraído dos intestinos de um comentarista de YouTube?

jovem frankenstein

 

O segundo grito, por sua vez, deixa de mencionar que, embora dúvidas e disputas sejam parte do processo científico, a ciência avança por meio da formação de consensos. Não teríamos satélites e sondas em Marte se, em algum momento, a disputa entre newtonianos e cartesianos sobre o que explica o fato de os planetas girarem em torno do Sol não tivesse sido resolvida — chegado a um consenso de que Newton estava certo e Descartes, errado.

Se é verdade que, em ciência, nenhuma questão jamais é dogmaticamente fechada, também é verdade que, se alguém quiser ressuscitar o modelo dos vórtices de René Descartes (1596-1650), vai precisar trazer um ônibus espacial carregado de evidências. O mesmo vale para quem acha que tem “alternativas” à evolução ou ao aquecimento global antropogênico.

Por sua vez, a jogada do formalismo envolve adotar procedimentos técnicos da ciência, mas descolados dos contextos e das precauções básicas que tornam essas técnicas úteis e válidas, para começo de conversa. Estatística é a principal vítima, aqui.

 

 

Metanalise isso!

Em medicina, normalmente considera-se que o nível mais alto de evidência sobre tratamentos de saúde é a metanálise (ou meta-análise, o júri ortográfico ainda parece indeciso neste caso). Em sentido estrito, uma metanálise é um procedimento estatístico que agrega os resultados de diversos estudos e tenta responder à pergunta “o que estes resultados todos, tomados em conjunto, mostram?”.

Não é preciso entender nada de estatística para perceber que nenhuma metanálise jamais será mais confiável do que os estudos individuais que entram nela. Nenhum procedimento estatístico tem o toque de Midas, o poder de transformar esterco em ouro.

Imaginando que o verdadeiro efeito de um tratamento seja o centro de um alvo, e que os estudos individuais a respeito sejam tiros de rifle, a metanálise pressupõe que cada tiro representa uma tentativa honesta de atingir a mosca, que os atiradores são minimamente competentes e que os rifles têm qualidade aceitável. Nessas condições, qualquer desvio do verdadeiro centro será provocado por interferências que podem ser atribuídas, em larga medida, ao acaso. A direção do vento, talvez. Com isso em mente, a técnica usa os diversos buracos de bala que aparecem no alvo para inferir a posição real do centro.

O problema é que se há um viés sistemático no conjunto de estudos analisados (se todos os atiradores estão usando óculos com grau errado, por exemplo), o centro inferido pode estar a uma distância arbitrariamente grande do centro real. Em inglês, o efeito recebe o nome GIGO (garbage in, garbage out, ou lixo entra, lixo sai).

Metanálises GIGO abundam nos mundos da medicina alternativa e da parapsicologia. Na presente pandemia, começaram a se tornar salientes em repositórios de pré-print onde acumulam-se os estudos sobre o “complexo ina” (cloroquina, ivermectina, etc.). Prima-irmã do GIGO é a “estatística ocultista”, como era chamada pelo filósofo Robert Todd Carroll (1945-2016). Trata-se do uso de técnicas estatísticas para recortar, subdividir, reavaliar e reanalisar seguidas vezes uma mesma base de dados.

Como cada vez que se olha para um conjunto de dados sob um novo ângulo há uma chance de se encontrar uma falsa correlação por puro acaso, basta repetir o procedimento um número grande o suficiente de vezes (ou pré-selecionar um recorte que já pareça saboroso) para conseguir “evidência”. 

Um infame estudo sobre precognição fez exatamente isso, anos trás.

Em 1953, o ganhador do Nobel de Química Irving Langmuir (1881-1957) adotou a expressão “ciência patológica” para referir-se a hipóteses que “recusam-se a ir embora”, mesmo depois de descartadas pelo consenso científico. Uma característica da ciência patológica é que os “fenômenos” que ela estuda só aparecem às custas de rios de suor estatístico.

Casos de ciência patológica muitas vezes desabrocham em pseudociências, e negacionismos tendem a se apropriar das falácias da patologia científica para seus próprios fins.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

Sua Questão

Envie suas dúvidas, sugestões, críticas, elogios e também perguntas para o "Questionador Questionado" no formulário abaixo:

Ao informar meus dados, eu concordo com a Política de Privacidade.
Digite o texto conforme a imagem

Atendimento à imprensa

11 95142-8998 

11 95142-7899