O machete das pseudociências

Apocalipse Now
16 dez 2023
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machete

 

Acho que já comentei em outros artigos que, embora cada pseudociência tenha seus detalhes e alegações específicos, há estratégias retóricas e armadilhas de raciocínio que são comuns a todas – e que aparecem e reaparecem, de modo previsível, quando crenças sem base empírica buscam se defender dos críticos. Parafraseando Tolstói, todas as pseudociências compartilham alguns argumentos estruturalmente idênticos, embora cada uma esteja, na prática, errada à sua maneira.

Essas estruturas comuns são velhas conhecidas: confusão entre correlação e causa, olhar seletivo para a evidência, apresentação de casos particulares e experiências pessoais como “prova”, citações abundantes de dados e estudos descontextualizados ou irrelevantes, e o apelo à autoridade. A partir daí o leque se abre para alegações mais específicas, como o apelo à antiguidade (“é um conhecimento milenar!”) e o apelo à novidade (“é uma tecnologia novíssima!”), que embora pareçam mutuamente excludentes, às vezes surgem combinadas (“é uma tecnologia novíssima baseada num conhecimento milenar!”).

A lista pode prosseguir indefinidamente, mas, nos últimos tempos, ao trabalhar em uma série de artigos breves sobre algumas pseudociências que têm ampla circulação no Brasil (como reflexologia, iridologia, feng shui) acabei me dando conta de um fator comum extra, mais profundo, uma espécie de ur-falácia que atua como princípio organizador: que determina, manipula e justifica o emprego de todas as outras. É o que chamo de “machete das pseudociências”.

 

Desbravando o espaço mental

Quando não está sendo empregado como metáfora, o machete é um facão de lâmina longa usado para desbravar matas fechadas (no mundo real) ou produzir mutilações grotescas (no cinema de terror). O machete das pseudociências cumpre as duas funções: ele desbrava a paisagem mental, abrindo espaço para que crenças absurdas sejam recebidas com o sempre abusado benefício da dúvida, ao mesmo tempo em que mutila o uso da razão.

A função desbravadora, de abrir espaço, é estratégica: com o machete, o argumentador busca estabelecer que seu ponto de vista não é um absurdo total. Que aceitar, como elemento do debate, algo relacionado à crença irracional não equivale a sucumbir à irracionalidade. Esse “algo” talvez seja uma pré-condição, um aspecto periférico ou uma premissa apenas vagamente análoga à crença plena. Não importa. O papel inicial do machete é abrir uma clareira de aparente razoabilidade na mata cerrada do senso crítico. A mutilação vem em seguida, com a colonização dessa clareira por absurdos.

Debates metafísicos costumam ser as arenas em que o machete aparece de modo mais visível: é o que ocorre quando se salta, digamos, da admissão de que a ciência não tem explicação fechada para a origem do Universo para a conclusão de que é razoável supor que tudo tenha sido criado por uma inteligência onipotente transcendental preocupada em gerenciar os hábitos sexuais de um grupo específico de primatas do planeta Terra.

 

Energias

Exemplo. Quando um livro como “A Bíblia da Reflexologia” afirma que “vivemos expostos a energias eletromagnéticas”, isso é, obviamente, verdade; a luz do Sol, das lâmpadas, o sinal de wifi e a imagem da tela do computador são todos fenômenos de natureza eletromagnética. O enunciado dessa verdade simples, somado ao de outra – “não notamos a energia passeando pelo nosso corpo, mas isso não significa que ela não exista” – produz um sentimento difuso de razoabilidade. É o machete abrindo sua clareira.

À medida que o argumento desbravador avança, os golpes de faca no senso crítico intensificam-se. Na mesma seção do livro, lê-se: “percebemos o efeito da energia positiva quando abraçamos um filho ou um ente amado”. Chegamos, aí, a uma clássica equivocação – a falácia de mudar o sentido de uma palavra no meio do texto (ou da conversa) sem dar o aviso devido. De repente, o vocábulo “energia” deixa de se referir a uma entidade física concreta (“energia eletromagnética”) e se converte num sinônimo vago de fofura difusa, calorzinho no coração e prazer emocional. Dessa confusão, extrai-se o absurdo:

“Existe um campo eletromagnético especial em volta de todo ser humano. Possuímos um corpo energético além do físico e absorvemos essa força de vida do alimento fresco, da respiração profunda, por meio do tato e das solas dos pés – a força vital é um esboço invisível do corpo inteiro. O paciente deve receber um tratamento reflexológico que lhe assegure uma cura profunda e ter sua energia reorganizada pela intenção terapêutica do reflexologista. Reorganizar as energias do corpo aplicando a reflexologia com a intenção de curar é um recurso terapêutico dos mais poderosos”.

Além do pulo maroto que vai de “energia” (eletromagnética, realidade física) para “energia” (fofa/mística/espiritual), há outro salto tão injustificável quanto, agora de natureza lógica, que busca estabelecer a necessidade do “tratamento reflexológico” para “reorganizar as energias do corpo”. Mesmo que o corpo energético (mágico? eletromagnético?) realmente exista, nenhum motivo racional é dado para aceitar que massagens nos pés possam afetá-lo. Ou que o eventual efeito, caso exista, seja benéfico. Ou que o tipo específico de massagem preconizado pela reflexologia seja eficaz. E assim por diante.

 

 Defesa

Sendo uma ur-falácia, uma falácia primordial, o Homo erectus, ancestral comum, das falácias, o machete das pseudociências pode se manifestar de diversas formas, como o apelo à ignorância (“se não sabemos a causa exata, então poderiam ser duendes”), a inversão do ônus da prova (“se você não tem como provar que absolutamente não existem porcos voadores, então é razoável aceitar que eu vi um”), o alvo móvel (“ok, todos os ensaios feitos até agora com esse produto mostram que ele é seguro para consumo humano, mas alguém já testou misturado com cianeto?”), o non-sequitur (“se a Lua afeta as marés, Vênus deve afetar minha vida amorosa”) e muitas outras.

Não importa o aspecto, no entanto, a finalidade é sempre a mesma: usar uma afirmação inicial que tem pelo menos um verniz de razoabilidade para abrir um espaço em que o irracional possa ser tratado com um mínimo de consideração. É o equivalente retórico de esconder o raticida num pedaço de queijo. 

A melhor proteção, claro, é rastrear as supostas conexões lógicas entre as partes do argumento e detectar os saltos injustificados e as equivocações, antes que tenham tempo de surtir efeito. E digo “surtir efeito” porque a meta do machete é emocional: produzir um estado misto de confusão, complacência e aceitação, uma cascata de distrações.

Um truque comum, usado por promotores de teorias de conspiração, é empilhar fatos reais e, no fim da lista, acrescentar uma conclusão paranoica absurda. Exemplo rápido: “A Independência do Brasil foi proclamada num dia 7 de setembro. Promécio, um elemento químico radioativo, tem o número atômico número 61. Seis mais um é sete. Um lote de desenhos animados de Tom e Jerry começou a ser produzido nos Estados Unidos em 7 de setembro de 1961. Logo, os desenhos de Tom e Jerry foram criados pelo imperialismo americano para sabotar o programa nuclear brasileiro”.

A ideia é que, à medida que o leitor vai concordando com a lista de verdades (porque, afinal, são verdades) também vai relaxando a guarda – verdades são inofensivas – e, assim, desenvolve uma tendência inconsciente de concordar com a conclusão, numa espécie de derrota do senso crítico por WO. O machete opera de modo análogo, e a melhor defesa é a atenção aos detalhes – exatamente o recuso que o truque tenta minar.

P.S.

Esta é a última coluna do ano. Os textos semanais nesta seção da Revista Questão de Ciência voltam na segunda quinzena de janeiro.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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