Grande mídia foi câmara de eco da desinformação de Bolsonaro

Artigo
6 mar 2023
Autor
Bolsonaro e a ema

 

Enquanto o ex-presidente Jair Bolsonaro atuava como pivô da desinformação no primeiro ano da pandemia de COVID-19, a grande mídia brasileira serviu de câmara de eco para seu discurso, ajudando a ampliar o alcance e a repercussão de suas sandices. É o que aponta o estudo All the President’s Lies: How Brazilian News Media Addressed False and Inaccurate Claims in Their Titles (“Todas as Mentiras do Presidente: Como a Mídia Brasileira Lidou com Alegações Falsas e Imprecisas em Seus Títulos”, em tradução livre), publicado recentemente no periódico Journalism Practice (íntegra aqui).

No estudo, Marília Gehrke, do Centro para Democracia Digital da Universidade do Sul da Dinamarca, em conjunto com Marcelo Träsel, Álvaro Ramos e Júlia Ozorio, todos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), analisaram as manchetes de 111 matérias relacionadas a 21 episódios de desinformação emitida por Bolsonaro, veiculadas por seis das maiores organizações jornalísticas do país – os sites dos jornais Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado de S.Paulo, classificados por eles como “mídia tradicional”, e os portais de notícias G1, Terra e UOL, consideradas empresas “nativas digitais” – em 2020, primeiro ano da pandemia. 

A análise mostrou que na maior parte dos casos (60,36%) as manchetes se limitaram a reproduzir as declarações do ex-presidente, raramente oferecendo uma contextualização (26,13%) ou uma correção (13,51%) de suas falas. Além disso, em pouco mais da metade delas (53,15%) os títulos citaram diretamente Bolsonaro usando aspas, o que, segundo os pesquisadores, indica ou desconforto dos profissionais em usar suas próprias palavras para descrever os disparates presidenciais, ou uma estratégia conhecida como “objetividade ritualística”, na qual, para se protegerem de erros ou confrontos com fontes oficiais, eles “reproduzem acriticamente as alegações e opiniões das autoridades”.

Os pesquisadores tampouco encontraram grandes diferenças na cobertura entre a mídia tradicional e as empresas nativas digitais, com os sites dos jornais da primeira usando títulos reproduzindo as falas do ex-presidente em 56,9% de seus artigos, contra 64,15% das manchetes nos portais de notícias. E embora as empresas nativas digitais tenham contextualizado menos as falas de Bolsonaro (16,98%, contra 34,48% da mídia tradicional), elas as corrigiram mais frequentemente: 18,87% das vezes, comparadas a 8,62%. 

A análise também não identificou diferenças significativas entre as manchetes publicadas na primeira metade de 2020, quando a pandemia de COVID-19 ainda estava no começo e poderia haver algumas dúvidas sobre a doença e seus possíveis impactos e tratamentos, e na segunda metade daquele ano, quando então o conhecimento sobre ela já havia avançado. Em ambos os casos, a maioria dos títulos ainda poderia ser caracterizada como meras reproduções das falas de Bolsonaro: 58,18% e 62,5%, respectivamente. A contextualização, no entanto, aumentou, indo de 9,09% das manchetes na primeira metade de 2020 para 17,86% na segunda, sugerindo uma maior percepção do discurso enganoso do ex-presidente.

“Os resultados de nosso estudo indicam que a mídia tradicional e as organizações nativas digitais falharam em corrigir ou ao menos contextualizar alegações falsas ou enganosas do presidente Bolsonaro ao longo de 2020”, escrevem os autores do estudo. “Considerando os resultados apresentados, podemos afirmar com confiança que o jornalismo declaratório não foi abandonado nem suprimido significativamente nem mesmo durante uma perigosa pandemia".

O artigo continua: "Manchetes são poderosos atalhos para o consumo rápido de informações em plataformas digitais, mecanismos de buscas e aplicativos de mensagens. Por esta razão, elas são um ativo estratégico na luta contra a desinformação. A negligência ao escrever – sem mencionar a eventual caça a cliques – pode ser perigosa para a sociedade em crises como a pandemia de COVID-19. Observamos que ao oferecer para suas audiências manchetes apenas declaratórias, as organizações jornalísticas amplificam a desinformação online – mesmo quando o corpo dos textos não segue esta lógica. Dado que uma grande proporção dos consumidores não lê a história inteira, argumentamos que não é ético reproduzir alegações falsas ou enganosas sem algum tipo de esclarecimento ou criticismo nas manchetes”.

 

Jornalismo declaratório

Esta não é a primeira vez que os danos à sociedade do jornalismo declaratório ficam evidentes. A questão já foi abordada em outras ocasiões aqui mesmo na Revista Questão de Ciência. Sob a desculpa de “equilíbrio”, “objetividade” ou “imparcialidade”, falsas controvérsias ganham atenção e tração junto ao público, prejudicando a conscientização e o combate a problemas como as mudanças climáticas e a hesitação vacinal, além de abrir espaço para a promoção de pseudociências na saúde.

Como lembra o filósofo Lee McIntyre em seu livro “Post-Truth” (“Pós-Verdade”, em tradução livre), de 2018, e resenhado por Carlos Orsi, editor-chefe desta revista, em texto de 2019 no seu blog “Apocalipse Now”, o ponto de equilíbrio entre a verdade e a mentira ainda não é a verdade e, portanto, é uma mentira. “Quando os erros são predominantemente responsabilidade de um dos lados, fingir que todos os lados são iguais é um desserviço à verdade”, cita. Desta forma, ao buscar obsessivamente mostrar o “outro lado” de uma questão, qualquer questão, a grande mídia acabou por, mesmo involuntariamente, reforçar a polarização da sociedade.

Em texto mais recente nesta revista, Orsi e o físico Marcelo Yamashita, diretor científico do Instituto Questão de Ciência (IQC), voltaram a criticar o mito do jornalismo imaculadamente objetivo e imparcial, destacando como isso atrapalhou na luta contra a COVID-19, mantendo viva a ideia de que cloroquina e hidroxicloroquina seriam possíveis tratamentos mesmo diante de evidências da falta de plausibilidade biológica e da fragilidade desta hipótese e dos estudos que a sustentavam.

E foi justamente pensando na capacidade do ambiente digital de transformar títulos ordinários em manchetes enganosas com alto potencial de se espalhar por redes sociais e aplicativos de mensagens que os pesquisadores liderados por Gehrke defendem mudanças no formato e padrões para sua composição para além da otimização de resposta nos mecanismos de buscas, conhecida no jornalismo pela sigla SEO (do inglês “search engine optimization”).

“Acreditamos que o jornalismo declaratório resulta em um conteúdo de má qualidade e, às vezes, antiético”, concluem no estudo. “O jornalismo digital tem poucas limitações em termos de espaço quando comparado com os jornais. Desta forma, não deve ser desafiador ser explícito e criar títulos diretos e manchetes que informem as pessoas. Do nosso ponto de vista, atitudes de transparência, como ser aberto sobre as fontes de receita e contar para a audiência como as notícias são produzidas, ou mesmo sobre as limitações de uma fonte em particular, podem ser valiosas para a prática jornalística. Usar verbos corretivos nos títulos também parece ser de fundamental importância no contexto que analisamos. Por fim, publicar jornalismo declaratório no lugar de informações contextualizadas e verificadas pode minar a credibilidade do jornalismo, contribuindo para a hegemonia de populistas e discursos políticos extremistas”.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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