Manifesto mundial ataca uso da pseudociência na saúde

Questão de Fato
19 out 2020
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ilustração alquímica

Um grupo de quase 3 mil médicos, cientistas e outros especialistas de 44 países lançou nesta segunda-feira, 19 de outubro de 2020, o primeiro manifesto mundial contra a pseudociência na saúde. A iniciativa, coordenada por mais de dez instituições de defesa da medicina baseada em evidências e do pensamento crítico e cético sediadas na Europa, traz um alerta para os perigos da oferta e promoção de tratamentos ditos “alternativos” à medicina convencional - como homeopatia, reiki, iridiologia, biomagnetismo e terapia ortomolecular, entre outros – para os pacientes e pede a revogação de leis e regulamentações que permitem e estimulam a disseminação destas práticas nos países do continente.

“Sejamos claros: as pseudoterapias matam. E não apenas isso: também são praticadas com impunidade graças às leis europeias que as protegem”, diz o texto, disponível em uma dúzia de línguas, entre elas o português, para depois listar casos de pessoas que morreram na Europa ao serem instadas a tratar infecções com homeopatia no lugar de antibióticos, câncer com vitaminas, ou a largar as terapias convencionais que usavam para doenças como asma ou problemas cardíacos em troca de soluções “alternativas”. “A Diretiva Europeia 2001/83/CE permitiu — e ainda permite — que centenas de milhares de cidadãos e cidadãs europeias sejam enganados diariamente", denuncia o manifesto. "Importantes lobbies tiveram, assim, a oportunidade de redefinir o que é um medicamento e agora vendem açúcar a pessoas doentes, fazendo-as crer que se podem curar ou melhorar o estado de saúde. Isto resultou em mortes, que continuarão a ocorrer até que a Europa admita uma realidade indiscutível: o conhecimento científico não se pode vergar aos interesses econômicos de uns poucos, muito menos se isso implicar enganar pacientes e violar os seus direitos”.

O documento lembra que a Europa – assim como muitos outros lugares ao redor do mundo, inclusive o Brasil – já enfrenta problemas graves de saúde pública o bastante, do financiamento insuficiente ao excesso de medicalização e o surgimento de bactérias super-resistentes, para também ter que se preocupar com a atuação de “gurus, falsos médicos ou até médicos formados” que afirmam poder curar câncer ou outras doenças por meio de coisas como “manipulação de chakras, da ingestão de açúcar ou da aplicação de ‘frequências quânticas’”.

“A Europa deve não só travar a promoção da homeopatia, como também deve lutar de forma ativa para a erradicação de fraudes de saúde pública envolvidas em mais de 150 pseudoterapias presentes no nosso território. A vida de milhares de cidadãos e cidadãs disso depende”, acrescenta o texto, que cita estudos recentes que apontam que 25,9% dos europeus, ou cerca de uma em cada quatro pessoas no continente, recorreram a pseudoterapias no último ano, “ou seja, 192 milhões de pacientes enganados”.

Ainda de acordo com o manifesto - que tem entre seus signatários Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC), que publica esta Revista Questão de Ciência -, é falsa a noção de que a luta pela eliminação das pseudoterapias atenta contra a liberdade de escolha de tratamento médico pelos pacientes. 

“Mentir aos doentes para lhes vender produtos inúteis, que os podem matar, viola seu direito de receber informação verídica sobre a sua saúde”, argumentam os especialistas. “Por isso, embora um cidadão ou cidadã tenha o direito a renunciar um tratamento médico estando corretamente informado, também é certo que ninguém tem o direito de lhe mentir para obter um ganho econômico à custa da sua vida. Só num mundo onde considerássemos que mentir a um doente para lhe extrair dinheiro é ético, é que poderíamos permitir que se continue a vender homeopatia — ou qualquer outra pseudoterapia”.

Mas mais do que a simples substituição de um tratamento eficaz por outro falso ou enganoso, destacam os signatários, esta oferta de soluções “alternativas” também pode atrasar a prescrição e adesão a terapias de fato potencialmente capazes de salvar os pacientes caso fossem adotadas de imediato.

“Para além disso, verifica-se um óbvio atraso na atenção terapêutica dada aos pacientes que, perante os primeiros sintomas de doença, recebem produtos falsos em vez de medicamentos. Muitas vezes, quando chegam à medicina, já é demasiado tarde”, ressaltam no texto.

O manifesto encerra reafirmando que os postulados das pseudoterapias, como a homeopatia, não são compatíveis com o conhecimento científico, de forma que as leis europeias que protegem e amparam esta e outras práticas “são inadmissíveis numa sociedade científico-tecnológica que respeita os direitos dos pacientes a não serem enganados”. E, diante disso, os especialistas cobram uma ação contrária, na forma de “medidas para travar as pseudoterapias porque não são inócuas e dão origem a milhares de afetados”, com a Europa trabalhando “ no sentido de criar leis que ajudem a parar este problema”.

 

Ação também no Brasil

Apesar de ter suas reivindicações focadas em alterações na legislação europeia, o manifesto recém-lançado também serve como um chamado para a ação contra a pseudociência na saúde aqui no Brasil - onde 29 destas chamadas "práticas integrativas complementares" (PICs) são oferecidas no Sistema Único de Saúde (SUS) - e outros países do mundo, avalia Natalia Pasternak. Segundo ela, não é raro os adeptos destas práticas citarem justamente as regulamentações e aceitação delas lá fora como justificativas e defesa para seu uso e promoção aqui.

“As associações brasileiras destas terapias alternativas citam muito a Europa como se fosse uma referência para legitimar suas posições”, lembra a presidente do IQC. “Há um movimento muito forte nos países europeus para banir a pseudociência, como a homeopatia, de seus sistemas de saúde pública, que ainda não estava muito claro para o resto do mundo. Este manifesto mostra como a Europa não está contente com a pseudociência, então é importante também usarmos ela como referência na nossa luta aqui”.

Segundo Natalia, um exemplo disso é a batalha do IQC pela remoção do ensino da homeopatia do currículo das universidades públicas brasileiras.

“É dinheiro público sendo gasto com a promoção da pseudociência”, diz. “Ensinamos um pensamento mágico para nossos alunos de medicina e depois queremos que sejam cientistas. Assim fica difícil”.

Ainda de acordo com Natalia, a assinatura do manifesto por ela e outras dezenas de médicos, cientistas e especialistas das Américas são um estímulo para produzir iniciativa semelhante aqui, reforçada pela recente parceria da RQC com a argentina revista Pensar, também dedicada à missão de desmistificar pseudociências e oferecer aos leitores a informação necessária para escapar das armadilhas de desinformação que podem custar caro para a saúde e para o bolso.

“Esta parceria pode ser a semente para expandirmos um movimento continental”, avalia. “Isto porque o manifesto europeu é muito claro: a pseudociência mata. Não é exagero, não é frescura, não é algo que possa ser diluído ou minimizado com argumentos do tipo ‘mas mal não faz’. Faz sim, e faz muito mal. A pseudociência impede pessoas de procurar tratamento para doenças graves acreditando em ‘curas naturais’, ensina um pensamento mágico que faz com que pais não vacinem seus filhos e faz mal ao bolso na população, que gasta um dinheiro que muitas vezes não tem, ou pode fazer falta, com tratamentos supostamente ‘milagrosos’. Então não é brincadeira, nem algo inócuo. É garantir acesso a informação científica de qualidade para que o paciente possa entender e fazer sua escolha de tratamento de maneira consciente e informada”.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência 

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