Quando o conflito de interesse fica escondido

Questão de Fato
10 out 2022
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Conflitos de interesse são um fenômeno inerente ao moderno processo de produção científica. É o que já diziam os autores brasileiros de um artigo publicado em 2008, na Revista Brasileira de Educação Médica (RBEM). De acordo com eles, a responsabilidade de lidar com esse problema numa publicação científica é de todos os envolvidos, ou seja, autores, editores, conselho científico e patrocinadores do periódicos. Todos podem se encontrar em situações de conflito de interesse, e devem procurar identificá-las.

Até aí, tudo bem. Basta, em tese, deixá-los explícitos. “Eles fazem parte da natureza humana”, diz o doutor em Ciências da Saúde Daniel Umpierre, chefe do Serviço de Pesquisa Clínica no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “É impossível nos desvencilharmos disso. Portanto, nosso dever é revelar os potenciais conflitos de interesse, para que as outras pessoas possam melhor avalizar nossas posições e produções”.

O problema são aqueles não revelados, mesmo que o autor ou periódico saibam deles. Um exemplo vem do Journal of Oral and Maxillofacial Surgery (JOMS), que publicou um artigo, de autoria do cirurgião Walter Tatch, de Illinois, nos Estados Unidos, que diz que um produto homeopático seria capaz reduzir a necessidade do uso de opioides para controlar a dor dos pacientes após cirurgia oral e maxilofacial. O caso foi trazido à tona pelo Retraction Watch, um blog que informa sobre retratações de artigos científicos e temas relacionados.

De acordo com o texto do blog, o artigo do JOMS foi questionado pelo médico americano Stephen Barrett, fundador da Quackwatch, uma rede de sites e listas de discussão mantidas pelo Center for Inquiry (CFI) que se concentram em denunciar fraudes de saúde, mitos, modismos, falácias e má conduta científica. Ele e um colega enviaram um e-mail ao JOMS pedindo a retratação do artigo sobre o produto homeopático, alegando que o autor não divulgou toda a extensão de seu conflito de interesses, que o estudo foi mal planejado, tinha dados suspeitos e que sua empresa, a StellaLife, estava usando o artigo para promover seu produto. 

O editor da JOMS respondeu que não iria retratar o artigo, mas que havia informado os advogados do periódico sobre o uso do artigo para fazer promoção publicitária, e que eles solicitaram que a StellaLife parasse com isso. Barrett treplicou dizendo que  problema mais óbvio era a não divulgação do conflito de interesses de Tatch. O produto descrito é fabricado pela StellaLife e o artigo não revela que ele detém a patente e é membro do conselho de administração da StellaLife, e que sua esposa é diretora da empresa. 

Mesmo assim, o editor do JOMS não retratou o artigo, alegando que Tatch havia divulgado adequadamente seu conflito de interesses no momento em que o paper foi submetido. Além disso, justificou, não havia evidência de má conduta acadêmica numa escala que justificasse retratar a publicação.

Casos assim não são comuns, mas chamam muito a atenção quando ocorrem. “Conflitos de interesse financeiro, como a participação em ações de uma empresa beneficiada pelo estudo, participação em conselhos ou financiamentos diretos costumam ser revelados”, assegura o pesquisador Rodrigo Ferreira Moura, do Departamento de Ciências da Saúde na Universidade Federal de Lavras (UFLA). “Não é frequente omitir totalmente essa informação. Embora não haja um esforço das editoras em verificar esse tipo de conflito não revelado, comumente os pesquisadores revelam os financeiros, pois são facilmente rastreáveis e uma eventual descoberta após uma publicação acaba com toda a credibilidade do artigo”.

Esses conflitos relacionados a possíveis ganhos financeiros diretos ou indiretos para os autores, vindos de organizações particulares financiadoras da pesquisa, são os que mais recebem atenção pública. “Mas há outros tipos, que também podem provocar uma distorção da pesquisa ou viés do pesquisador, seja a expectativa de uma promoção, aprovação em concursos, reconhecimento e status entre os pares, ou ainda inclinações políticas, religiosas ou morais”, explica Moura. “Mas esses não costumam ser revelados”.

Para os autores do artigo de 2008 na RBEM, focar nos conflitos relacionados com financiamento das pesquisas representa uma compreensão limitada do problema. “Aos evidentes conflitos relacionados com os interesses dos financiadores de pesquisas e os interesses primários de um pesquisador como cientista somam-se, por exemplo, os relacionados com prestígio acadêmico, poder institucional, reconhecimento entre os pares e na sociedade, além dos decorrentes das vicissitudes dos relacionamentos humanos”, escreve. “Nestas situações, o julgamento científico de um pesquisador pode ser afetado por estes interesses concorrentes”.

Em síntese, dizem que em todas as fases de produção e divulgação científica é fundamental para todos os atores a preocupação com a identificação e controle das situações de conflito de interesse, para que a produção científica tenha credibilidade. “Devemos sempre ter em mente que os relevantes são aqueles que, quando revelados tardiamente, fazem com que um leitor razoável se sinta enganado”.

Produzir mal-estar no leitor não é a única consequência dos conflitos de interesse não revelados, no entanto. Sempre que isso acontece, há um atraso no avanço da ciência, diz Moura, um custo financeiro enorme aos cofres públicos e o impacto social é muitas vezes incalculável. “O público leigo passa a duvidar da ciência como um todo, e não entende uma pesquisa fraudulenta como algo isolado”, explica.

Ele cita vários exemplos recentes, como pesquisadores isolados negando as alterações climáticas sendo financiados por empresas de combustível fóssil, o estudo fraudulento que associou vacinas ao autismo, o gasto financeiro e o impacto social provocado pelas alegações da fosfoetanolamina como cura para o câncer e, principalmente, os estudos mal feitos e enviesados promovendo a cloroquina como medicamento para COVID-19.

E o pior, não há sanções ou punições à altura do estrago social que pesquisas assim provocam. O mais comum é esses cientistas perderem reconhecimento e credibilidade no meio acadêmico., Algumas vezes podem perder os cargos em universidades de renome e raramente, no caso de pesquisadores médicos, perderem a licença para exercício da profissão. “Mas até mesmo isso pode ser distorcido e vendido para seu público nas redes sociais, como marketing de um médico ou profissional da saúde que se diz perseguido por não poder revelar a verdade”, lamenta Moura. “A educação, o senso crítico geral e as punições não estão adaptadas a esta era da pós-verdade”.

O químico Emerson Rodrigues de Camargo, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), não é tão pessimista assim. Para ele, o fato de um autor deixar de declarar uma possível fonte de conflito de interesse não interfere no mérito científico de um estudo. “O objetivo de uma publicação científica é informar a comunidade sobre um resultado, que será revalidado por outros pesquisadores de modo independente”, explica. “Se os resultados forem corretos e as metodologias adequadas, eles serão confirmados por outros autores”.

Se o artigo tiver problemas, no entanto, isso também será identificado por outros cientistas. Portanto, acredita, não existem consequências para a ciência. “Já para os autores, isso vai depender das regras de onde o artigo foi publicado”, ressalva. “Eles assinam um termo no qual concordam com as normas de publicação. Se esse documento prever punições, caberá ao editor exercer o seu poder excluindo o artigo da revista, publicando uma carta de correção alertando, ou até excluindo definitivamente o autor daquela revista. É preciso lembrar que este tipo de conduta não é crime”.

Para evitar isso, Camargo diz que o melhor caminho é que a revista deixe claros quais são os casos de potenciais conflitos de interesse e, talvez, que além da declaração sucinta e obrigatória no texto do artigo, que os autores forneçam ao editor uma carta detalhada com eles. “A revista deve deixar claro que a existência de um potencial conflito de interesse não é razão para negar um artigo”, acrescenta. “O único motivo para não o publicar é quando o revisor identificar problemas metodológicos que tenham comprometido o resultado final.”

Embora não seja possível identificar todos os conflitos, Moura diz que os periódicos científicos devem cobrar com mais veemência as declarações daqueles que envolvam questões financeiras, políticas ou religiosas. Além disso, os casos em que os interesses cruzados levam deliberadamente a más a condutas científicas precisam ser punidos com sanções que desencorajem a prática e estejam à altura dos prejuízos financeiros e sociais provocados. “A educação dos cientistas em treinamento na pós-graduação deveria ser voltada a buscar por inconsistências nos artigos”, diz. “Minha sugestão imediata é que todos que pegam um artigo científico para avaliar comecem pela leitura da declaração de conflitos de interesse”.

Evanildo da Silveira é jornalista

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