O livro do ano

Apocalipse Now
29 ago 2020
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capa calling bullshit

 

É difícil encontrar uma boa tradução para Calling Bullshit, nome do livro lançado recentemente pela dupla de professores da Universidade de Washington Carl Bergstrom (Biologia) e Jevin West (Ciência de Dados e Sociologia da Ciência). A expressão do título cobre uma gama de significados que, em português, vai de “Apontando Bobagens” a “Denunciando Enganação”. O subtítulo tem um sentido mais fácil de traduzir: “A arte do ceticismo num mundo movido a dados”.

Numa definição rápida, a obra é uma espécie de cruzamento de O Mundo Assombrado pelos Demônios, de Carl Sagan, e Como Mentir com Estatística, de Darrell Huff, devidamente atualizado para a realidade contemporânea de polarização extrema e redes sociais. As editoras brasileiras estariam prestando um enorme serviço público caso se dessem ao trabalho de traduzi-lo o quanto antes.

O terreno coberto é extenso. Traz a “dieta básica” das obras de divulgação do pensamento crítico — falácias lógicas, o erro de confundir correlação e causa, o perigo de cair vítima do viés de confirmação — mas inclui ainda preocupações mais modernas, como os abusos da “Big Data” (que, do ponto de vista dos autores, é uma verdadeira fábrica de falsas correlações com verniz high-tech) e dos sistemas de inteligência artificial (algoritmos, advertem os autores, não transformam lixo em ouro: nenhuma IA, se alimentada com dados ruins, produzirá conclusões válidas).

Um exemplo ilustrativo sobre o mau uso da inteligência artificial: um algoritmo que, supostamente, seria capaz de distinguir características faciais de criminosos das de pessoas honestas, sugerindo, talvez, uma preponderância de diferenças genéticas por trás dos comportamentos antissociais.

O detalhe é que o sistema foi treinado com imagens de criminosos tiradas de suas fichas policiais e de cidadãos “honestos”, tiradas de redes como Facebook. O que a IA estava identificando, no fim, não eram detalhes da estrutura óssea ou do formato das orelhas que seriam “marcas hereditárias” de predisposição para a criminalidade, mas algo muito mais simples: nas fotos de redes social, as pessoas estavam sorrindo; nas fichas policiais, não.

A preocupação com os abusos da infografia — o uso de gráficos e tabelas para apresentar dados ou sugerir conclusões — já estava presente no clássico de Huff, mas Bergstrom e West levam a discussão a um patamar mais sofisticado. O livro também dedica um bom espaço ao uso de indicadores quantitativos para “ofuscar e intimidar” um público pouco acostumado a discutir números e modelos matemáticos.

Aqui, a dica dos autores é tratar procedimentos estatísticos e outros tipos de análise técnica como “caixas-pretas”: o importante, para o leigo que não quer ser enganado, é concentra-se menos nas engrenagens da caixa e focalizar a atenção crítica nos dados que entram (são representativos? Estão enviesados?) e nas conclusões e interpretações que saem (têm lógica? A interpretação realmente decorre da conclusão? A conclusão é algo que realmente poderia sair daqueles dados iniciais?).

 

 

Mazelas da ciência

Os autores não se furtam a apontar a extensa produção de bullshit — “bobagem”, “besteira”, “enganação” — que acontece dentro do meio científico. Discutem problemas como “p-hacking” (a manipulação de testes estatísticos para chegar a resultados “atraentes”), a disseminação de periódicos predatórios, que publicam qualquer bobagem por alguns trocados, o “efeito gaveta” que faz com que estudos com resultados negativos (sobre medicamentos, por exemplo) sejam publicados com frequência muito menor do que trabalhos com conclusões atraentes e lisonjeiras.

Esse “efeito gaveta” funciona da seguinte forma: imagine que dez estudos são conduzidos para testar uma hipótese (de que uma molécula X reduz a pressão arterial, por exemplo), e desses, nove chegam à conclusão, correta, de que a molécula não tem efeito e um, por azar, chega à conclusão errada. Por causa do viés de publicação, apenas este verá a luz do dia, enquanto os outros nove acabam engavetados. Interesses comerciais, claro, são um agravante.

A despeito de todos os problemas que não hesitam em apontar, os autores mantêm uma visão otimista da ciência: questionam, por exemplo, a ideia, popularizada pelo pesquisador John Ioannidis, de que a maior parte dos resultados publicados em pesquisa biomédica pré-clínica é falsa, fruto de “p-hacking” ou de viés de publicação. Notam que, para o viés de publicação ser um problema assim tão grave, a taxa de hipóteses falsas testadas teria de ser enorme. Mas cientistas têm incentivos para, na maior parte do tempo, testar hipóteses com alta probabilidade prévia de serem verdadeiras. Além disso, lembram que, à medida que uma hipótese se aproxima de ser aceita pelo consenso científico, resultados sólidos que a contradigam tornam-se cada vez mais “sexy” — e, portanto, publicáveis.

“Empiricamente, a ciência é um sucesso”, concluem. “Artigos individuais podem estar errados, e estudos particulares podem ser distorcidos pela imprensa, mas a instituição, como um todo, é forte. Devemos manter isso em perspectiva quando comparamos a ciência a muito dos outros conhecimentos — e bobagens — que existem por aí”.

 

 

Ciência na mídia

A relação entre ciência e imprensa também recebe análise crítica. Numa seção intitulada clickbait science, Bergstrom e West apontam que o viés de publicação que distorce a literatura científica, favorecendo a disseminação de estudos com resultados positivos sobre hipóteses “sexy”, acaba sendo amplificado pelo jornalismo. Muitas vezes, a imprensa gera a impressão de que artigos científicos são como tijolos na construção do Palácio do Conhecimento — uma vez registrada num artigo revisado pelos pares, uma hipótese como que se tornaria um “fato estabelecido”.

Mas não é assim que a ciência funciona, lembram os autores: o consenso científico é algo que se destila a partir de um sem-número de artigos, muitos com resultados contraditórios e diferentes graus de qualidade e confiabilidade, lidos e criticados no contexto maior do campo de estudo particular a que dizem respeito, e também da ciência em geral.

Ao destacar resultados pontuais e isolados desse panorama complexo, apresentando-os ao público como “grandes descobertas”, a mídia acaba minando a credibilidade da ciência — “mas afinal, vinho faz bem ou faz mal para o coração?”

 

Mas, veja bem…”

Bergstrom e West concluem o livro chamado atenção para o título, que é “Denunciando Enganação” e não “Identificando Enganação”. No mundo atual, denunciar publicamente as notícias falsas e a desinformação sobre ciência e saúde que circulam nas mídias, novas e velhas, é um dever cívico, argumentam.

Os autores ponderam, no entanto, que há diferentes modos de fazer isso — e alguns podem ser mais eficientes do que outros. Muitas das sugestões que oferecem ecoam resultados de estudos sobre comunicação da ciência como os conduzidos por Tim Caulfield, que sugerem, por exemplo, que é importante evitar deixar lacunas explicativas — se você vai tentar tirar de uma pessoa uma noção errada que a ajuda entender o mundo, é bom ter outra noção, correta, para oferecer — e a dificuldade que é lidar com peças de desinformação que as pessoas integram a seu senso pessoal de identidade.

Mas o ponto alto dos trechos finais do livro envolve menos ciência da comunicação e mais dicas de boas maneiras. Bergstrom e West notam, com razão e ironia, que a linha que separa o ceticismo da escrotidão é tênue. A meta legítima de denunciar enganação é prestar um serviço público, não gratificar o ego, ou servir de pretexto para praticar crueldade e submeter os outros a humilhação pública. “Apontar bobagens não é um jeito de sinalizar inteligência. Se você valoriza essas coisas, arrume uma carteirinha da Mensa”, sugerem.

Os autores descrevem uma personagem, o “cara do ‘mas, veja bem’”, basicamente um mala que insiste em interromper as pessoas para oferecer correções irrelevantes, que não interferem em nada com o argumento sendo feito. É o sujeito que implica com a expressão “forma esférica da Terra” num artigo sobre os erros do terraplanismo.

Bergstrom e West pedem, encarecidamente: não seja esse cara.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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