“Fakeada”, filosofia e fiasco

Apocalipse Now
24 set 2021
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Juiz de Fora

 

O documentário “Bolsonaro e Adélio: Uma Fakeada no Coração do Brasil”, produzido pelo Brasil247, busca dar plausibilidade à hipótese de que o atentado sofrido pelo então candidato à Presidência do Brasil Jair Messias Bolsonaro, em 6 de setembro de 2018, foi uma encenação usada para, primeiro, acobertar o fato de que o candidato precisava operar um tumor no intestino e, segundo, garantir sua condução ao Palácio do Planalto.

Escrevo “dar plausibilidade” em vez de “estabelecer” porque nem mesmo o jornalista Joaquim de Carvalho, responsável pela apuração dos fatos mostrados – e que também atua como apresentador e narrador do vídeo –, afirma ter provas daquilo que o documentário insinua.

Não há confissão de nenhum “conspirador”, nem evidência física – imagens, documentos, gravações – que permitam afirmar a realidade da suposta tramoia. A hipótese da cirurgia de câncer meio que cai do céu aos 41 minutos do programa, sem que seja citada fonte ou evidência.

Carvalho nem chega a afirmar que foi isso – remoção de tumor – o que realmente teria ocorrido, mas refere-se ao médico que operou Bolsonaro, o cirurgião Antônio Luiz de Vasconcellos Macedo, como “oncologista” (especialista em câncer) e diz que isso “reforça a narrativa de uma doença pré-existente”. De onde essa narrativa vem? Há alguma fonte confiável por trás dela? Não somos informados.

 

Meias-verdades

Tratar Macedo como oncologista, no entanto, é enganoso. Embora atue em casos de câncer, sua verdadeira especialidade é cirurgia geral e gastrocirurgia, sendo um nome respeitado na área. Seu registro no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) apresenta-o como especializado em “cirurgia do aparelho digestivo”, não câncer. Além disso, Macedo é médico de confiança de Jair Bolsonaro.

Outras meias-verdades e informações estrategicamente descontextualizadas presentes no documentário já foram apontadas em diferentes resenhas, como esta, da Folha de S.Paulo, que chama atenção para o fato de que o programa sugere que Adélio Bispo de Oliveira, o autor da facada, teria sido filiado ao PSD, um partido de centro-direita. Para tanto, o documentário apresenta um pedido de desfiliação feito por ele em 2016.

Mas a verdade, apurada pela Polícia Federal, é de que Adélio achou que alguém o havia filiado ao PSD sem sua autorização, o que era falso, e por isso fez o pedido. O fato é que a única filiação partidária de Adélio, devidamente registrada na Justiça Eleitoral, foi ao PSOL, e vigorou de 2007 a 2014.

Assim como a especialização de Antônio Luiz de Vasconcellos Macedo em cirurgia gástrica (e não oncologia) está disponível gratuitamente ao público no site do CREMESP, o histórico partidário de Adélio pode ser acessado e conferido por qualquer um no TSE. Se a história da “filiação” ao PSD reforça alguma narrativa, é a de que Adélio tem problemas mentais: há algo de paranoico em acreditar-se, fantasticamente, filiado a um partido contra a própria vontade.

O documentário também tenta tirar leite conspiratório do fato de que Adélio participou de um curso de tiro numa escola de Santa Catarina frequentada por filhos do atual presidente da República. Crucialmente, Adélio e um dos filhos de Bolsonaro estiveram na escola num mesmo dia, ao mesmo tempo.

O que se perde, no recorte feito em “Fakeada”, é que, como a escola era frequentada assiduamente por Carlos e Eduardo Bolsonaro, qualquer um que passasse alguns dias lá acabaria tendo uma chance razoável de esbarrar num deles: quem vai de vez em quando ao restaurante favorito de uma celebridade cedo ou tarde acaba dando de cara com ela. E se Adélio já estava obcecado com Bolsonaro, ele pode muito bem ter procurado a escola de tiro (que era ativamente promovida pelos Bolsonaros em suas redes sociais) exatamente para isso – ver de perto a família.

 

Contradições

A única afirmação que o documentário efetivamente faz – em oposição a apenas insinuar ou sugerir – é a de que, sem a facada, Bolsonaro jamais teria sido eleito. Claro que, sem máquina do tempo, fica difícil testar uma alegação contrafactual, sobre “o que teria acontecido se”, mas a afirmação é, muito provavelmente, falsa: a série histórica de pesquisas Datafolha para o pleito presidencial de 2018 mostra Bolsonaro já liderando em todos os cenários “sem Lula” (isto é, caso Luiz Inácio Lula da Silva fosse, como de fato foi, impedido de concorrer) meses antes do atentado. E, na reta final para a votação em segundo turno, as intenções de voto no candidato da extrema direita vinham até caindo. Aqui, outro contrafactual, este de minha lavra: se a campanha tivesse durado mais duas semanas, Bolsorano teria sido derrotado.

Algumas das insinuações presentes no programa contradizem-se entre si. Num momento, chama-se atenção para o fato de que a segurança de Bolsonaro não notou a presença de Adélio Bispo, que rondava uma passeata/comício do então candidato, em Juiz de Fora (MG), no dia do atentado, demonstrando nervosismo, em atitude suspeita e vestindo um casaco pesado demais para o clima de então. Em outro, insinua-se que o atentado (supostamente, falso) teria sido previamente combinado com assessores e familiares de Bolsonaro.

Mas, se estava tudo combinado com Adélio, por que ele estaria nervoso e em atitude suspeita? Se ele sabia que era tudo uma farsa e teria acesso livre ao candidato, por que esgueirar-se?

Em outro ponto, o documentário sugere que o atentado teria sido coreografado quase como uma cena de balé – com direito a cúmplice fazendo “corta-luz” para distrair um fotógrafo (apenas um, entre os vários presentes) no momento exato do golpe, cronometrado com contagem regressiva.

E em outro ainda, que Adélio teria tentado atacar Bolsonaro num momento anterior ao da “suposta facada”, cedo demais, perdendo a oportunidade em meio ao caos da multidão. Mas afinal: era coreografia cronometrada, com cúmplices-“bailarinos” regendo a multidão, ou oportunismo caótico? As inconsistências internas sucedem-se sem que, em momento algum, busque-se resolvê-las. Nesse sentido, “Fakeada” confirma estudos sobre teorias de conspiração que mostram que os aderentes desse tipo de narrativa são capazes de acreditar em “fatos” mutuamente excludentes, desde cada um deles, ao seu modo, pareça reforçar a narrativa-mestra.

 

Pior explicação

De um ponto de vista um pouco mais filosófico, “Uma Fakeada no Coração do Brasil” é uma tentativa de exercitar um certo tipo de inferência para a melhor explicação: dado um conjunto de fatos f {F1,F2,F3,F4...} considerado inesperado ou surpreendente, a melhor explicação – entendida como aquilo que mais reduz o grau de surpresa diante dos fatos, aquilo que torna f mais ordinário, ou plausível – é uma dada hipótese h. No caso, o documentário esforça-se para nos convencer de que a “melhor explicação”, a “hipótese h” para a série de eventos expostos por Joaquim de Carvalho, é a de que Adélio Bispo não esfaqueou realmente Bolsonaro, e de que o candidato foi operado de um câncer.  

Esse caminho, no entanto, enfrenta dois problemas. O mais evidente é que, assim que esvaziamos o documentário de seus falsos eventos, esclarecemos as meias-verdades e descontamos as meras insinuações – por exemplo, a especialização do médico, a filiação partidária de Adélio, a “coreografia” do atentado, a “conspiração” na escola de tiro – sobra muito pouca coisa que ainda parece surpreendente ou requer explicação, e para dar conta desse resíduo, a ideia de uma “falsa facada” é terrivelmente inadequada. 

Que resíduo é esse? A irresponsabilidade de Jair Bolsonaro em deixar-se carregar nos ombros de seus apoiadores por um calçadão lotado, sem colete à prova de balas, e a aparente incompetência de seus seguranças. O primeiro ponto se explica muito melhor por um misto de arrogância e cálculo político. O segundo é simples viés de retrovisor.

O evento de 6 de setembro de 2018 havia sido obviamente planejado para gerar imagens de campanha eleitoral para TV: havia até um drone a postos para fazer vídeo aéreo. A ausência de colete se insere nessa finalidade, mostrar um candidato destemido, de peito aberto. Bolsonaro acreditava estar, e estava mesmo, “jogando em casa”: desfilando por uma rua estreita, num corredor com edifícios altos dos dois lados, nenhum ovo, casca de banana ou tomate podre chegou a atingi-lo.

Quanto aos seguranças, é muito fácil, revendo vídeos do episódio em câmera lenta, identificar momentos cruciais em que a equipe encarregada de proteger o candidato poderia ter detido Adélio antes da facada, ou conduzido Jair Bolsonaro de forma mais segura. Mas isso é olhando pelo retrovisor, já sabendo, de antemão, qual será o desfecho da história.

Quando a história ainda estava em aberto – quando ainda havia uma infinidade de desfechos possíveis, em meio à pressão da multidão, aos gritos, diante de um cliente (Jair Bolsonaro) arisco e que se recusava a seguir as recomendações mais sensatas, com centenas de rostos e de pares de mãos para observar e avaliar a cada instante –, a coisa é bem diferente. Azar, agravado pela imprudência calculada do candidato, passa a ser a melhor explicação.

O segundo problema é que mesmo se todas as meias-verdades apresentadas no documentário – a “filiação” ao PSD, o médico “oncologista” – fossem verdades completas, ainda assim a hipótese do falso atentado não seria a melhor explicação, simplesmente porque manter inviolada uma conspiração desse tamanho, envolvendo diversos médicos, e suas equipes; a maioria, se não todos, dos seguranças que atuaram em Juiz de Fora; a família Bolsonaro e assessores; supostos co-conspiradores infiltrados na multidão; agentes federais, e o próprio Adélio Bispo, seria altamente implausível.

Mal comparando, conspirações como os testes clínicos irregulares que teriam ocorrido no grupo Prevent Senior, ou as falsificações em atestados de óbito, denunciadas recentemente, foram expostas, com evidências mais sólidas – documentos vazados, depoimentos de envolvidos diretos – em um breve intervalo de tempo. A suposta “fakeada”, por sua vez, teria já completado três anos sem que nenhum envolvido viesse a público, sem que nenhuma conversa reveladora de WhatsApp ou Telegram viesse à tona. O quanto isso é provável?

Em outras palavras, se realmente tivesse acontecido uma encenação e não um atentado, seria de esperar que “Fakeada”, o documentário, tivesse muito mais fatos do que insinuações, e oferecesse uma narrativa com algum estofo, não um castelo de cartas mal-ajambrado.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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