O psicanalista e o mangusto falante

Apocalipse Now
23 set 2023
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Fotograma de "Nandor Fodor e o mangusto falante"

 

De todos os filmes recentes que se dizem “baseados em fatos reais”, talvez nenhum tenha por inspiração um “fato real” mais bizarro e surpreendente do que a comédia dramática britânica lançada, agora em setembro, pela Amazon Prime: “Nandor Fodor and the Talking Mongoose” (“Nandor Fodor e o Mangusto Falante”, em tradução literal). Com todas as liberdades que o roteiro toma – e são inúmeras –, o ponto central da história é, indiscutivelmente, um fato real, exaustivamente documentado: a investigação, conduzida pelo advogado, jornalista, parapsicólogo e psicanalista húngaro Nandor Fodor, a respeito da alegação de que uma fazenda na llha de Man, litoral britânico, era habitada por um mangusto falante.

Parte do elenco do filme, escrito e dirigido por Adam Sigal, é praticamente uma lista de convidados de honra de convenção de cultura nerd (ou geek): Nandor Fodor é interpretado por Simon Pegg (dos filmes mais recentes de “Star Trek” e da série “The Boys”), seu amigo Harry Price, por Christopher Lloyd (da trilogia “De Volta para o Futuro”), e a voz de Gef – o mangusto – é dublada por ninguém menos do que o premiado escritor de fantasia e roteirista de quadrinhos Neil Gaiman.

Assim como Fodor, Harry Price foi uma pessoa real, que investigou fenômenos supostamente paranormais ou sobrenaturais no Reino Unido entre as décadas de 1920 e 1950, tendo produzido diversos livros e artigos (um texto seu sobre assombrações chegou a ser publicado no Brasil pela revista carioca “O Cruzeiro”, em 1942). Tratado como “doutor Price” no filme, ele na verdade não tinha formação acadêmica: era jornalista, mágico e fotógrafo, autodidata em todas as três vocações. Era um gênio do marketing pessoal e não estava acima de cometer atos de puro charlatanismo para chamar atenção – bem distante da figura do professor discreto e respeitável encarnada por Christopher Lloyd –, que criou para si mesmo o título profissional de “caça-fantasmas”.

O filme é divertido, visualmente muito bonito e os atores estão todos muito bem – destaque para Pegg e Paul Kaye (de “Game of Thrones”), no papel do impagável Maurice, prefeito do vilarejo onde ocorrem os fenômenos “sobrenaturais” –, mas sucumbe ao clichê de apresentar o investigador “cético” (no caso, Nandor Fodor) como um turrão de mente fechada que, no fundo, se divide entre o medo e o desejo de abraçar o fantástico. É o típico “ateu que gostaria de ter fé”. Esta é uma das muitas liberdades que o roteiro toma com os fatos. A realidade, no entanto, é muito mais complexa, e interessante.

 

O mistério de Gef

O animal falante teria se manifestado pela primeira vez na fazenda de Doarlish Cashen (“Cashen’s Gap”, ou “Clareira de Cashen”, em manês, a língua étnica da Ilha de Man) em 1931. Ali viviam James (Jim) Irving, sua esposa Margaret (Maggie) e a filha mais nova do casal, Voirrey, então com 13 anos. Inglês, James Irving havia sido o próspero representante comercial britânico de uma fábrica de pianos canadenses, mas a I Guerra Mundial pôs fim ao negócio de exportação de instrumentos musicais das Américas para o Reino Unido, o que o levou a comprar a fazenda e se mudar para a ilha em 1917, levando para lá seus filhos adolescentes Gilbert e Elsie.

O boom econômico do pós-guerra permitiu que a família prosperasse por algum tempo, mas a fase de bonança chegou ao fim na segunda metade da década de 1920. Quando Gef se fez notar pela primeira vez, Gilbert e Elsie já haviam abandonado a Ilha de Man para tentar ganhar a vida na Grã-Bretanha. O folclorista Christopher Josiffe, uma autoridade no caso, descreve a cena em Doarlish Cashen, no momento em que as cortinas se levantam para o primeiro ato do mistério (ou farsa) do mangusto falante, como de “pobreza abjeta”, “numa casa sombria de fazenda, sem luz elétrica, sem rádio e sem telefone”.

Inicialmente, a criatura era descrita como um furão ou doninha, com o nome de “Jack”. Com o passar do tempo, o animal adotou para si a identidade de “mangusto indiano” e o nome Gef (pronuncia-se “Jeff”).  James Irving declarou diversas vezes que não desejava fama ou publicidade, mas o fato é que alguém avisou a imprensa da insólita assombração de Doarlish Cashen, e já em 1931 o dono da casa estava concedendo um sem-número de entrevistas.

Assim como o nome e a taxonomia, a personalidade de Gef sofreu mudanças com o tempo. Se no início as manifestações tinham mais a forma de gritos, gemidos e ameaças (“vou assombrar vocês”!), com o tempo as falas foram ficando cada vez mais parecidas com o que se esperaria de um comediante: sarcásticas, às vezes com duplo-sentido, exageradas (“Eu sou a quinta dimensão! Eu sou a Oitava Maravilha do Mundo! Eu vou partir o átomo!”). No início, Gef parecia muito apegado a Voirrey; depois, tornou-se companheiro de James.

O fenômeno Gef se manifestou em Doarlish Cashen entre 1931 e 1942. Em 1945, James Irving morreu. Maggie vendeu a propriedade, mas seguiu vivendo na Ilha de Man, onde morreu em 1960. A casa de fazenda foi demolida em 1971. Voirrey deixou a ilha em 1958, vindo a falecer na Inglaterra, em 2005. Deu poucas entrevistas sobre o caso. Nunca desmentiu a existência de Gef ou confessou fraude.

 

Os investigadores

O caso de Doarlish Cashen chegou à atenção de Harry Price em 1932, e ele despachou para lá um assistente, o capitão Harold Dennis. Price visitou a propriedade pessoalmente em 1935, acompanhado pelo editor da BBC Richard Lambert, que como se vê na imagem abaixo chegou a ter seu emprego ameaçado por participar da investigação. Em 1936, os dois publicaram em coautoria o livro “The Haunting of Cashen’s Gap” (“A Assombração da Clareira de Cashen”), obra em que não é difícil encontrar, lendo nas entrelinhas, a conclusão de que tudo não passava de uma fraude.

jornal britânico

Os motivos são claros. Gef se recusava terminantemente a se deixar ver ao vivo, ou fotografar com clareza. As únicas testemunhas frequentes e consistentes das proezas de Gef eram os Irvings. Na maioria esmagadora dos casos em que a voz do mangusto se fazia ouvir de forma clara por terceiros, visitantes ou investigadores, pelo menos uma das mulheres da família (Maggie ou Voirrey) estava ausente da cena, fechada em algum outro aposento ou, supostamente, fora da casa. Analisadas, as evidências físicas de Gef (tufos de pelo, pegadas) mostraram-se falsas – o pelo pertencia a um cão que morava na fazenda, e as pegadas eram fabricações. Outros feitos extraordinários de Gef, como “adivinhar” se uma moeda havia caído cara ou coroa, podiam ser facilmente simulados com truques simples de mágica. Price e Lambert também citam o relato de um jornalista que, tendo visitado a fazenda em 1932, flagrou Voirrey simulando a voz de Gef para tentar enganá-lo.

Nandor Fodor, que visitou Doarlish Cashen em 1937 e cuja passagem pela fazenda é ficcionalizada no filme, chegou à conclusão diametralmente oposta. “Enganação deliberada por parte da família é inconcebível como solução para o mistério”, escreve ele em seu livro “Haunted People” (“Gente Assombrada”). “Que ‘alguma coisa’ chamada Gef existe e fala, considero provado”. Seria Gef realmente um animal falante? “Todas as probabilidades são contra, mas toda a evidência é a favor”, sentencia Fodor.

E que “evidência” seria essa? Os mesmos testemunhos que Price e Lambert haviam considerado suspeitos ou inconclusivos, além de histórias de moradores da região que atribuíam toda sorte de evento misterioso (o roubo do almoço de um mecânico da garagem de ônibus, por exemplo) a Gef, e informações que Gef teria passado aos Irvings sobre acontecimentos da ilha que a família “não teria como saber” (Price e Lambert também citam alguns casos assim, mas notam que, em vários deles, Gef estava errado em suas fofocas, o que sugere invencionice baseada em tentativa e erro).

No fim, Fodor considera uma impossibilidade neurológica e anatômica – um mangusto (ou doninha, ou furão) capaz de processar linguagem como um ser humano e se expressar com voz humana – mais aceitável do que a hipótese de fraude por parte da família Irving, auxiliada por vieses cognitivos simples e pelo poder da sugestão: uma vez introduzida ideia do mangusto mágico no imaginário da população local, por que não atribuir a ele todo e qualquer evento estranho, aparentemente inexplicável ou travessura de autoria incerta?

Mas afirmar a realidade do animal falante foi apenas a primeira solução proposta por Nandor Fodor para o caso. Anos mais tarde, ele revisaria a conclusão, agora com um forte toque freudiano.

 

Mangusto no divã

Em relato autobiográfico publicado no livro “The Haunted Mind: A Psychoanalyst Looks at the Supernatural” (“A Mente Assombrada: Um Psicanalista Contempla o Sobrenatural”, em tradução livre), Nandor Fodor relata como se interessou por psicanálise ao entrevistar o discípulo húngaro de Sigmund Freud, Sandor Ferenczi, em 1926. A conversa o impressionou o suficiente para que se lançasse ao estudo da doutrina. Fodor se tornou um psicanalista profissional em 1939.

Ele desenvolveu uma carreira intelectual produtiva e respeitada na área, atuando como coeditor de um dicionário acadêmico de psicanálise, publicado em Nova York, em 1950; também escreveu um volume sobre interpretação de sonhos, lançado em 1951; publicou artigos acadêmicos no American Journal of Psychotherapy e editou a revista The Psychoanalytic Review.

A virada psicanalítica levou Nandor Fodor a se afastar da comunidade britânica de pesquisa paranormal – ou a comunidade de pesquisa paranormal a se afastar dele. Ao investigar um caso de poltergeist na Inglaterra em 1938, no qual a médium envolvida havia sido flagrada tirando objetos (que depois ela pretendia “materializar” magicamente, atribuindo o feito a espíritos) da vagina, Fodor sugeriu que esse comportamento poderia refletir memórias inconscientes de abuso sexual sofrido na infância.

A instituição que patrocinava o trabalho não aceitou a conclusão, e Nandor Fodor acabou apelando diretamente para Sigmund Freud, que então vivia na Grã-Bretanha. Em resposta, recebeu uma carta de apoio, assinada pelo pai da psicanálise. Freud escreve que “é altamente lamentável que o Instituto Internacional de Pesquisa Psíquica não esteja disposto a segui-lo nessa direção. Além do mais, considero o resultado a que você chegou, neste caso particular, muito provável”.

A conversão à psicanálise levou o pesquisador a rever alguns dos mistérios que havia analisado quando ainda “pagão”, antes do batismo freudiano – incluindo o de Gef. O olhar psicanalítico levou-o a concluir que a chave para o mistério deveria ser buscada no inconsciente de James Irving. “Seus sonhos, tenho certeza, teriam oferecido muitas pistas extremamente necessárias para entender o desenvolvimento intelectual de Gef e encontrar a fonte de seu poder dinâmico”, escreveu ele, num posfácio apensado, 14 anos depois, ao artigo original sobre os eventos da Ilha de Man. Fodor sugere que um animal – um mangusto inocente? – poderia ter sido possuído, ou “obcecado”, pela energia dos desejos e frustrações inconscientes do patriarca de Doarlish Cashen.

 

A verdade?

A segunda hipótese de Nandor Fodor não representa exatamente um progresso sobre a primeira, de que Gef seria um animal falante dotado de inteligência própria. Talvez dê algum significado ao dito lacaniano de que “o inconsciente se estrutura como linguagem” (a linguagem do mangusto, no caso). No fim, representa um belo exemplo ilustrativo da crítica de Karl Popper à psicanálise – de que o sistema de Freud se presta ao papel de “chave explicativa” para qualquer coisa imaginável entre o céu e a terra, e além: uma chave que encaixa em todas as fechaduras, ao preço de não abrir nenhuma.

Gef

Com a morte de Voirrey em 2005, qualquer possibilidade de se encontrar uma resposta definitiva para o que, exatamente, estava acontecendo em Doarlish Cashen na década de 1930 desapareceu de vez. O que não significa que não seja possível formular hipóteses e hierarquizá-las por grau de plausibilidade.

“Animal falante”, “telepatia inconsciente”, “possessão demoníaca” e “manifestação espiritual” devem ir lá bem para o fim da fila: não por preconceito contra “outros paradigmas”, “materialismo dogmático” ou o que quer que seja, mas porque a realidade desse tipo de fenômeno jamais foi estabelecida – e há razões de sobra, apoiadas em fatos bem documentados da zoologia, da física, da neurociência e de várias outras ciências para considerar fantasticamente baixa a probabilidade de algo assim de fato existir. Na prática, uma chance quase idêntica a zero.

As possibilidades que restam são ilusão inocente ou fraude. Contra a ideia de ilusão milita a duração do fenômeno, o envolvimento direto de todos três Irvings e o fato de a voz de Gef ter sido ouvida também por gente de fora da família. Contra a de fraude, as alegações de que James Irving jamais desejou publicidade ou tentou ganhar dinheiro com Gef, e de que alguns dos fenômenos descritos por testemunhas parecem desafiar a ideia.

A parte sobre publicidade e dinheiro é, no mínimo, ingênua. A notícia de que uma fazenda isolada na Ilha de Man era lar de um mangusto falante não brotou por geração espontânea nas redações dos jornais. E a correspondência entre Irving e Harry Price deixa bem claro que o fazendeiro esperava ser remunerado pelo “trabalho” de documentar as estripulias de Gef. Price pagou a Irving dez libras pelo direito de citar os diários de Doarlish Cashen em seu livro; essa quantia (aproximadamente 3.500 reais em dinheiro de hoje) correspondia, na época, a quase um terço da renda anual da família Irving. Fodor, por sua vez, desembolsou cinco libras por uma semana de hospedagem na fazenda.

Sobre os aspectos aparentemente “inexplicáveis” do fenômeno (como nas raras vezes em que Gef falou ou produziu efeitos enquanto todos os três Irvings estavam na presença de um observador externo), é mais prudente manter qualquer julgamento em suspenso – ou atribuir as ocorrências, tal como descritas, a engano ou distração da testemunha – do que saltar para a conclusão de que temos aí evidência palpável de ocorrências paranormais ou sobrenaturais.

É, mais uma vez, uma questão se sopesar probabilidades contra o pano de fundo do conhecimento disponível sobre as ciências físicas e a natureza humana. Como os bons espetáculos de mágica estão aí para nos lembrar, o fato de um observador não perceber que um truque está sendo executado não prova que não houve truque.

Minha hipótese particular é que tudo pode ter começado como uma brincadeira estilo “amigo imaginário” de Voirrey, encampada pela família como uma espécie de jogo, e que James Irving tentou (sem muito sucesso) converter em fonte de renda. Tanto Nandor Fodor quanto Harry Price chamam atenção para o profundo tédio da vida em Doarlish Cashen, algo que devia pesar muito tanto sobre James e Maggie, ambos vindos de um ambiente intelectual urbano, quanto sobre Voirrey, uma adolescente solitária. E talvez aí esteja a chave real do mistério do mangusto falante.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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