"Duas Culturas", versão século 21

Apocalipse Now
30 set 2023
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fantasma

 

Falecido há quase dez anos, em dezembro de 2013, o romancista, filósofo, jornalista, crítico e ensaísta britânico Colin Wilson foi um intelectual famoso e respeitado, chamando a atenção do público e da academia logo na publicação de seu primeiro livro, o volume de ensaios “The Outsider”, em 1956. A despeito de sua estatura no mundo das letras, quando o assunto era ciência, Wilson jamais foi, ao que tudo indica, capaz de encontrar um charlatão por quem não acabasse se apaixonando perdidamente. Não só abraçou como legítimos os truques do ilusionista israelense Uri Geller, como em 2008, ao defender o legado do “caça-fantasmas” britânico Harry Price, declarou-se convicto de que “há tanta evidência a favor da paranormalidade quando há a favor de átomos e elétrons”.

É o tipo de alegação que, vinda de um intelectual respeitado, faz correr um calafrio na espinha de qualquer pessoa dotada de um mínimo de letramento científico. Se átomos e elétrons não fossem reais, o mundo contemporâneo, com seus computadores, viagens espaciais, energia nuclear e medicamentos sintéticos, para ficar em apenas alguns exemplos óbvios, seria impossível. Em contraste, se a paranormalidade não for real, o mundo contemporâneo seria... bem, seria exatamente como é. O raciocínio equivale ao de afirmar que ETs são tão reais quanto borboletas, porque é possível encontrar gente honesta que jura ter visto exemplares das duas “espécies”.

Refletir sobre a declaração de Wilson, feita no prefácio que escreveu para um livro enciclopédico sobre a suposta casa mal-assombrada inglesa Reitoria de Borley, “The Borley Rectory Companion”, traz à mente o lamento feito pelo físico e escritor britânico Charles Percy (C.P.) Snow em sua famosa palestra de 1959, “As Duas Culturas”, na qual se queixa da ignorância arrogante mantida pela elite “culta” – no sentido literário-humanístico do termo – em relação às ciências físicas. Snow refere-se ao fenômeno como um “ouvido duro” para ciência, numa referência às pessoas que não gostam de música. Um parágrafo frequentemente citado da palestra diz:

“Tal como acontece com os duros de ouvido, eles não sabem o que estão perdendo. Riem de dó quando ficam sabendo de cientistas que nunca leram uma obra importante da literatura inglesa. Consideram-nos especialistas ignorantes. No entanto, suas próprias ignorância e especialização são igualmente surpreendentes. Muitas vezes, estive na companhia de pessoas que, pelos padrões da cultura tradicional, são consideradas altamente instruídas, e que têm expressado, com considerável entusiasmo, incredulidade face ao analfabetismo dos cientistas. Uma ou duas vezes, provocado, perguntei aos colegas quantos deles poderiam descrever a Segunda Lei da Termodinâmica. A resposta foi fria: também foi negativa. No entanto, eu estava perguntando algo que é o equivalente científico de: você já leu uma obra de Shakespeare?

Faz mais de 60 anos que “As Duas Culturas” veio ao mundo, o que fica bem aparente no texto – a idade se faz notar, por exemplo, no elitismo (alguns poderiam dizer esnobismo) explícito. Também fica em aberto a questão de o que fazer a respeito. Como escreve o crítico literário Stefan Collini, no prefácio de uma edição de 1993 do manifesto de Snow, qual a solução? Obrigar físicos a ler Dickens e críticos literários a demonstrar teoremas? Collini propõe, em vez disso, “o equivalente intelectual do bilinguismo, uma capacidade não só de exercitar a língua das nossas respectivas especialidades, mas também de assistir, aprender e, no fim, contribuir para conversas culturais mais amplas”.

 

Conteúdo ou método

Uma crítica comum ao argumento de Snow (ou, mais especificamente, ao modo como foi apresentado) diz respeito à ênfase na questão dos conteúdos: saber citar “as obras de Shakespeare” ou “as leis da termodinâmica”. Mas talvez a clivagem mais relevante entre as duas culturas não seja de textos, proposições, teorias etc., e sim de modos, métodos e padrões.

Voltando a Colin Wilson, ele provavelmente seria capaz de enunciar a Segunda Lei da Termodinâmica (que, aliás, é citada em seu romance “Os Parasitas da Mente”), mas esse conhecimento conteudista não lhe deu a capacidade de distinguir entre diferentes níveis de evidência empírica, de pesar corretamente, na balança das probabilidades, alegações extraordinárias e explicações mundanas; de reconhecer e adotar padrões adequados para separar o sugestivo do convincente.

O “ouvido duro”, aí, é de outro nível. O vão a ser transposto não é aquele entre o livro de poesia e o de física, mas entre diferentes concepções quanto a que tipo de hábito mental deve ser adotado para tentar explicar o mundo e identificar corretamente o que faz (ou não) parte dele – é o salto necessário do olhar subjetivo para o objetivo, do apriorístico para o evidencial, da autoridade para o fato, da adequação retórica à adequação empírica

 

Culturas modernas

Falando em qualidade da evidência, até agora só apresentei um único caso – “evidência anedótica”, no jargão – e em referência a um sujeito que já está morto, ainda por cima. Esse problema é real, enfim, ou não? Sendo real, é significativo? Existe ainda algo que possa ser visto como um vale ideológico entre as “duas culturas” de C.P. Snow?

Muitas reações à pandemia de COVID-19 sugeriram que não – que o respeito aos padrões adequados de evidência e o sadio ceticismo quanto a supostas relações de causa e efeito estavam já sedimentados na vida intelectual.

De lá para cá, no entanto, acumulam-se sinais de que essa suposta maturidade epistêmica universal era apenas uma ilusão, causada pela convergência entre o negacionismo pandêmico e forças políticas muito específicas, o que levou o campo oposto a abraçar, por questões de táticas, o argumento do respeito a padrões adequados de evidência. Finda a utilidade retórica do expediente, voltaram à toda velocidade os subjetivismos, vieses, distorções, bom-mocismos e vícios de antanho, como já amplamente documentado.

O que estou chamando de vão ideológico, diferentemente do vão de conteúdo descrito na palestra original de Snow, não representa um corte seco e reto – entre, digamos, “Cultura Científica” e “Cultura Humanística” –, mas tem contornos muito mais complexos, como apontei em outro artigo. Se há um fosso a ser transposto, ele separa modos de interpretação e validação que, por falta de terminologia melhor, vou chamar de retórico e evidencial.

É possível ver modos retóricos em ação nas ciências, assim como modos evidenciais nas humanidades, e por isso os contornos do fosso são irregulares. São duas culturas, mas cada uma delas é, a seu modo, interdisciplinar e transpõe as supostas barreiras entre as velhas “duas culturas”, tal como concebidas por Snow. Outra diferença é que Snow falava sobre “culturas” que eram igualmente imprescindíveis, e que por isso mesmo precisavam construir pontes entre si. Já o que venho chamando de modo retórico é mais uma patologia do que qualquer outra coisa; se o que está em jogo é a descrição correta da realidade e as formas mais eficazes e responsáveis de responder a ela, quem está do “lado de lá” do vão precisa, mais do que se comunicar conosco, ser convencido o quanto antes a vir para o “lado de cá”.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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