Perigosas epidemias de castração imaginária

Apocalipse Now
11 nov 2023
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feiticeiras medievais

 

Desde setembro e pelo menos até o fim do mês passado, a Nigéria vinha passando por uma onda de encolhimentos e desaparecimentos de pênis que já deixou alguns mortos – supostos “feiticeiros” ladrões de virilidade, vítimas de linchamento – e pelo menos um cidadão torturado pela polícia para devolver o membro subtraído, segundo reportagem da revista internacional New Lines Magazine. Ondas anteriores de pânico social em torno de “roubo de pênis” no país já ocorreram em décadas passadas, com surtos em 1975, 1977, 1990 e 2001. Nessa última ocasião, pelo menos doze “ladrões” foram mortos em linchamentos.

Segundo o jornal nigeriano Punch, até meados de outubro haviam sido registrados oficialmente 62 casos de “masculinidade desaparecida” na região do país que inclui a capital, Abuja, e 51 pessoas que haviam acusado outros de furto peniano tinham sido presas por “espalhar desinformação e perturbar a paz”. O colunista Ugoji Egbujo, escrevendo para o jornal nigeriano Vanguard, descreve um caso ocorrido no momento em que um passageiro descia de um moto-táxi na cidade de Lagos:

“O motociclista agarrou-o, gritando: ‘Meu pênis! meu pênis! meu pênis!’ Antes que o homem pudesse compreender a histeria do motociclista, uma multidão se juntou. O agora trêmulo motociclista, que segurava a virilha na mão, disse que seu pênis havia desaparecido e que estava morrendo. O júri não precisou de mais informação do que isso. Como o motociclista dissera que o passageiro havia roubado seu pênis ao pagar pela viagem, o passageiro tornara-se um ladrão genital”.

Esse passageiro, confuso e amedrontado, apanhou da multidão até morrer.

 

 

Base cultural

A ilusão do encolhimento ou desaparecimento do pênis – em geral, sob a forma da impressão de que o órgão e os testículos se retraem até desaparecer no interior do corpo – é descrita pela primeira vez no Clássico Médico do Imperador Amarelo, tratado chinês datado do século 3 AEC. Ali o fenômeno é abordado como uma condição real, provocada por um desequilíbrio entre o chi (“energia vital”) masculino e feminino. Nessas condições, diz o Clássico Médico, pode ocorrer “contração e encolhimento dos testículos e genitais, e uma sensação febril nas coxas”. 

As primeiras descrições de surtos coletivos e epidemias dessa ilusão vêm da Ásia, onde o problema é conhecido como koro (palavra malaia que significa “tartaruga”, num símile entre o movimento da tartaruga de recolher a cabeça à carapaça e o desaparecimento do pênis) ou suk-yeong (“encolhimento do pênis”, em chinês). O primeiro médico a oferecer uma descrição e interpretação formal da condição, na literatura científica, foi o psiquiatra de Hong Kong Pow Meng Yap. Ele publicou, em 1965, artigo no British Journal of Psychiatry que, embora datado pelo uso de conceitos e jargões psicanalíticos hoje ultrapassados, oferece uma boa primeira aproximação ao problema. Yap define a condição como um distúrbio de imagem, e especula que a síndrome estaria ligada necessariamente à mentalidade chinesa (cunhando a expressão “psicose psicogênica presa à cultura”), por meio da forte crença em forças vitais masculina e feminina. Ele escreve:

“O paciente koro não perdeu contato com realidade no que diz respeito à convicção de retração peniana (...) Esta convicção não é um mero delírio, pois é reforçada pela existência de uma crença popular na existência e possibilidade de uma perigosa doença koro”.

Yap estava certo ao identificar os laços entre a ilusão do sumiço do pênis e o meio cultural em que suas vítimas estão inseridas, mas errado ao acreditar que se tratava de algo específico da cultura chinesa ou asiática, como os surtos na África e em outras partes do mundo bem demonstram. De fato, casos de desaparecimento do pênis – mais do que isso, do desaparecimento do pênis causado sobrenaturalmente, por feitiçaria – são documentados num livro europeu do final da Idade Média, o infame Malleus Maleficarum do frade dominicano e inquisidor Heinrich Kramer (1430-1505), e talvez também de seu colega, outro dominicano e inquisidor, Jacob Sprenger (1436-1495).

(Existe alguma disputa entre historiadores sobre se Sprenger realmente participou da elaboração do texto ou se Kramer, geralmente visto como um grande canalha, incluiu o nome do outro, teólogo respeitado, apenas para escorar a reputação do livro. O historiador Christopher S. Mackay, autor da mais recente tradução acadêmica da obra para o inglês, defende a tese de autoria conjunta.)

 

Bruxas europeias

O Malleus, livro que segundo o historiador Diarmad McCulloch “deu credibilidade à necessidade urgente de uma guerra às bruxas” no século 16, descreve em detalhes como feiticeiras são capazes de, por meio de sortilégios e com a ajuda do Diabo, convencer homens de que seus órgãos genitais desapareceram, enganando ao mesmo tempo o tato e a visão. A obra sentencia que “o Diabo pode impor uma ilusão aos sentidos de um homem através da arte da magia e, portanto, não há dificuldade que o impeça de esconder o membro masculino”.

bruxas medievais

Em outro trecho, o autor (ou autores) descreve algumas “histórias reais” de casos do tipo. O Malleus é um livro notável por sua misoginia. Portanto, não surpreende que, ali, pênis sejam roubados por prostitutas gananciosas (que sequestram a genitália para obter “resgate”) ou amantes descartadas, em busca de vingança. Violência é apresentada como solução, como neste caso do jovem que, depois de perder os genitais, confrontou a ex-amante:

“Ele então a atacou e, amarrando um lenço em volta de seu pescoço, apertou-o, dizendo: ‘Devolva minha saúde, ou você morrerá em minhas mãos’. Então, porque não conseguia gritar e seu rosto inchado estava ficando preto, ela disse: ‘Solte-me e te farei saudável.’ Quando o jovem afrouxou o nó, a feiticeira tocou-o com a mão entre as coxas, dizendo: ‘Agora você tem o que deseja’.”

 

Poder e insegurança

Se, na tradição europeia, o roubo de genitália é atribuído a mulheres vingativas ou gananciosas, na africana os “culpados”, como no exemplo descrito no jornal Vanguard, tendem a ser homens em busca de algum tipo de poder sobrenatural. A revista britânica Fortean Times cita um nigeriano dizendo que “a demanda de mercado” em tempos recentes elevou o preço do pênis “para fins ritualísticos” a mais de mil libras (cerca de R$ 6 mil). 

O psiquiatra nigeriano Sunny Ilechuckwu, autor de dois artigos sobre o assunto publicados em Transcultural Psychiatric Research Review (um em 1988 e outro em 1992), pondera, no primeiro desses textos, que “vários grupos étnicos na Nigéria atribuem à genitália externa poder como objeto ritual e mágico, capaz de trazer fertilidade ou prosperidade material para os inescrupulosos. Diz-se frequentemente que pessoas assassinadas em rituais têm essas partes faltando. Estas especulações podem ser um terreno fértil para experiências culturais e para a construção inconsciente de sintomas por indivíduos predispostos”.

Os surtos coletivos tendem a ocorrer em momentos de insegurança política e instabilidade econômica. A mídia também desempenha um papel, e Ilechuckwu menciona debates promovidos por jornalistas em que curandeiros tradicionais, astrólogos e intelectuais se pronunciavam sobre epidemias de koro, com os curandeiros defendendo a possibilidade real de “enfraquecer” a virilidade masculina por meios mágicos. Ilechuckwu distingue a versão nigeriana do koro asiático clássico, notando que na África a sensação é de que o órgão foi removido, enquanto na síndrome asiática a impressão é de que o órgão encolhe e se retrai no abdome.

Escrevendo sobre a epidemia de 1990, o psiquiatra menciona, como motivos citados no discurso público para o suposto roubo em massa de pênis, o uso dos órgãos em rituais de magia para influenciar o eleitorado, ou como combustível em fábricas mágicas de dinheiro.

 

Perigo

Há ainda registros de ondas de koro na China e em outras partes da Ásia datando de poucas décadas atrás, e nem sempre a causa apontada para a ilusão é algum tipo de “mágica” perversa, ou relaciona-se à crença cultural nos perigos do desequilíbrio entre yin e yang (energias vitais feminina e masculina, respectivamente). Também aparecem ansiedades de origem mais moderna, como o consumo de alimentos importados ou conspirações comunistas.

feiticeiras medievais

Em alguns desses casos, mulheres também são afetadas, com a ilusão de que os seios ou a vulva estão encolhendo ou desaparecendo. Ilechuckwu menciona casos na Nigéria em que mulheres acreditam que seus seios, e às vezes os fetos em seus úteros, foram roubados.

Saindo da perspectiva médica para um olhar mais filosófico e social, algo que fica claro nisso tudo – algo que não me canso em repetir neste espaço – é que não existe crença irracional inofensiva. Assim como acontece com o princípio da explosão na lógica clássica, segundo o qual qualquer contradição, por mais inocente que possa parecer, abre caminho para que se deduzam os maiores absurdos, de uma crença sem contato com a realidade pode-se derivar qualquer comportamento – incluindo comportamentos que custam vidas. Deixados ao sabor do senso-comum e de idiossincrasias e vieses culturais, os próprios conceitos de “absurdo” e “razoável” ganham elasticidade infinita.

Neste século, o Brasil já assistiu ao linchamento de uma mulher por bruxaria, e pânicos morais envolvendo falsas ameaças à segurança de crianças não são incomuns. Doenças psicogênicas também acontecem no país. A forma exata das ilusões perigosas pode mudar de cultura para cultura, e é mais fácil ver o absurdo das ilusões enraizadas na cultura dos outros, mas nenhuma está livre.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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