Negação do Holocausto segue cartilha das pseudociências

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27 jan 2020
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Auschwitz-Birkenau

 

"Os SS adoravam nos dizer que não tínhamos chance de escapar vivos, um ponto que faziam questão de enfatizar com especial deleite, insistindo que após a guerra o resto do mundo jamais iria acreditar no que aconteceu; haveria rumores, especulações, mas nenhuma evidencia irrefutável, e todos iriam concluir que um mal de tamanha magnitude jamais seria possível."  (Terence des Pres, “The Survivor”, citado em “Denying History” de Michael Shermer e Alex Grobman, traducao da autora)

 

Minha lembrança mais nítida da visita ao Yad Vashem (Museu do Holocausto) em Israel não é das imagens chocantes dos campos de concentração, ou dos vídeos emocionantes dos sobreviventes. Embora, obviamente, todos os itens do museu tenham deixado marcas e memórias profundas, a cena que mais me marcou foi ver meu pai, na saída do Museu, chorando copiosamente, como uma criança. Eu tinha 11 anos, e ainda não entendia que para o meu pai, além dos horrores da guerra, e de imaginar que todos os tios, primos e avós que ele não conhecera poderiam estar ali, naquelas fotos, ele carregava também a culpa típica dos filhos da Segunda Guerra: a culpa do sobrevivente. 

Meu avô morava com a família em Berlim nos anos 30, antes da guerra, mas por tempo suficiente para sentir, de perto, o crescente antissemitismo. Ele contava que seu pai, meu bisavô, não acreditava que haveria guerra, ou que os judeus corriam risco. “Isso vai passar”, ele dizia. “Isso é modinha, os judeus sempre viveram em harmonia na Alemanha”. Quando a família percebeu que a situação caminhava para o inevitável, meu avô fugiu para o Brasil. O resto da família morreu na guerra. 

Meu pai nunca conheceu seus avós, tios e primos. Meu avô carregou a culpa do sobrevivente, nas cartas que recebia da família até, de repente, pararem. Segundo meu pai, ele lia as cartas à noite e chorava. Minha avó tinha tanta raiva da angústia que as cartas causavam ao meu avô que, após sua morte, jogou tudo fora. 

Talvez minha avó tivesse guardado as cartas se imaginasse que um dia, passadas poucas gerações, grupos políticos organizados e grupos antissemitas iriam iniciar um movimento dizendo que o Holocausto nunca aconteceu. O negacionismo do Holocausto, à primeira vista, parece uma piada tão sem graça quanto o movimento terraplanista. Quem, em sã consciência, disputaria a existência de um dos eventos mais bem documentados da história, do qual há ainda hoje, centenas de milhares de testemunhas pelo mundo? Mas, assim como a negação da ciência, negar a história é uma arte perversa. Envolve distorcer os fatos e diminuir sua importância.  As consequências podem ser graves. Por isso movimentos negacionistas devem ser levados a sério, e combatidos. 

O que eles negam? 

Existem dois tipos de negacionistas do Holocausto: os que afirmam que o massacre nunca aconteceu, que a narrativa dos 6 milhões de mortos é invenção dos judeus para garantir seu próprio Estado; e os que concordam que havia um forte movimento antissemita na Alemanha nazista, que os campos de concentração eram reais, mas afirmam que não eram campos de extermínio e sim campos de trabalho, e que não existia um plano de eliminação dos judeus. 

Judeus – e outros levados aos campos: homossexuais de qualquer etnia, ciganos e demais "indesejáveis" aos olhos dos nazistas – teriam morrido de fome e doença, como consequência natural da guerra, e o número de 6 milhões estaria exageradamente inflado: a cifra “real” não passaria de 300 mil a, no máximo, um milhão. 

Os argumentos são muito semelhantes aos construídos por defensores de  pseudociências. Tomam-se um ou dois fatos reais, e distorcem o restante para construir um simulacro de narrativa plausível:  as câmaras de gás tinham sistema de ventilação, por isso não poderiam ter sido projetadas para o extermínio. Nem todos os campos de concentração tinham câmaras de gás, então isso prova que não havia um plano para assassinato em massa. O gás utilizado era para desinfecção, e não para ser usado em humanos. 

A tática mais usada pelos negacionistas é mirar em um fato isolado, distorcer ou neutralizar o fato, retirando-o do contexto adequado, e usar essas manobra como base para uma ampla generalização. 

Um bom exemplo envolve o gás Zyklon-B, o mais utilizado nas câmaras da morte. O Instituto de Revisionismo Histórico, uma organização negacionista, usa a confissão de Rudolf Hoss, comandante nazista de Auschwitz, como ponto de partida. Ross teria dito, em sua confissão, que os soldados fumavam cigarros enquanto removiam os corpos dos judeus mortos, dez minutos após o extermínio. Mas o gás Zyklon-B é inflamável. Então, como isso poderia ser verdade? Teria explodido tudo ao redor, raciocinam. Portanto, a confissão de Hoss é falsa, e as câmaras de gás nunca foram usadas para matança. 

Contextos omitidos: tudo depende da concentração do gás. Em partes por milhão, como era utilizado, e com os sistemas de ventilação implantados pelos nazistas, justamente para dispersar o veneno após ele ter cumprido seu papel, não havia perigo de explosão.

O fato de nem todos os campos terem câmaras de gás também é utilizado como argumento de que não havia um plano de extermínio em massa. Como se fuzilamentos e injeções letais fossem menos definitivos. 

É didático notar que a negação das ciências naturais segue modos retóricos e estruturas falaciosas parecidas. Vejamos o caso do Design Inteligente, em sua tentativa de negar a evolução darwiniana. Se é, aparentemente, impossível explicar como um flagelo de bactéria evoluiu – eis o fato isolado que parece notável por estar fora do contexto correto –, então toda a teoria da evolução é falsa. Há, no entanto, uma explicação para o flagelo, que não requer a intervenção de um ser divino, mas os criacionistas a ignoram, como já explicamos aqui.

Na maioria dos negacionismos, não há interesse em realmente levar a conversa até uma conclusão sólida, mas em plantar a dúvida. E, aos poucos, construir uma narrativa paralela que sustente uma máscara de plausibilidade. 

Como sabemos que o Holocausto aconteceu? 

Ao contrário do que os negacionistas afirmam, o Holocausto não pode ser reduzido a uma mera justaposição de fatos isolados. Existe uma convergência de evidências que apontam para uma mesma conclusão: a Alemanha nazista pôs em prática um plano de extermínio, de assassinato covarde e em escala industrial, para eliminar o povo judeu. Nesse processo, mais de 6 milhões de pessoas, desarmadas e indefesas, foram mortas. Em seu livro “Denying History”, Michael Shermer e Alex Grobman sumarizam a convergência, formada por:

 

Documentos escritos, cartas, memorandos, ordens militares, discursos, memórias e confissões;

Testemunhos e confissões de sobreviventes, de judeus sonderkommandos, que eram forçados a levar os demais às câmaras de gás e, depois, dispor dos corpos: foram encontrados seis diários de sonderkommandos, com descrições detalhadas do funcionamento das câmaras de gás; de soldados da SS; de comandantes nazistas, que falaram abertamente sobre o assunto em suas confissões; de habitantes dos arredores dos campos de extermínio; 

Fotografias, incluindo fotos militares oficiais, fotografias clandestinas tiradas por sobreviventes, fotografias aéreas, e fotografias não oficiais tiradas pelos militares alemães;

Os campos em si, de concentração, de trabalho, de extermínio;

Evidência inferencial, a partir dos dados demográficos de antes e depois da Guerra: se não foram mortos, o que aconteceu com os 6 milhões de judeus que desapareceram? 

 

Além da convergência de evidências, a historiadora Debora Lipstadt, em seu livro “Denying the Holocaust”, propõe um exercício: para que os negacionistas estejam certos, quem precisa estar errado, ou mentindo? 

Em primeiro lugar, as vítimas. Todos os sobreviventes, que partilharam conosco os horrores da guerra, teriam que ser mentirosos e conspiracionistas, parte de um plano secreto sionista. Em segundo lugar, os observadores, principalmente os poloneses, que viam seus vizinhos serem arrancados de suas casas e levados em trens para nunca mais voltar. E finalmente, os próprios nazistas. Nenhum oficial nazista negou o que aconteceu. Eles se defendiam dizendo que cumpriam ordens, que não tinham escolha, mas nunca dizendo que aquilo não aconteceu. 

Por que combater o negacionismo? 

A pseudo-história, assim como as pseudociências que tentam se passar por biologia, física, etc,, é perigosa. Por mais banal que possa parecer, por mais inofensiva, por mais risível –  afinal, quem vai acreditar que a Terra é plana? OU que o Holocausto não aconteceu? Sem contraponto, as mentiras crescem, ganham força. E o tempo passa. 

E quando 75 anos passam, pessoas esquecem. 

Assim como meu bisavô acreditava que o nazismo era apenas uma moda, que ia passar em causar danos, hoje acreditamos que o criacionismo disfarçado de ciência é uma doutrina tão boba que jamais chegará às escolas. Acreditamos que o movimento antivacinas nunca vai chegar ao Brasil, porque sempre tivemos uma tradição tão forte de excelentes campanhas de vacinação. Acreditamos que o antissemitismo organizado nunca vai voltar, porque o mundo aprendeu sua lição. E que a negação do Holocausto é tão absurda que jamais vai "colar". 

Mas assim como as pseudociências se travestem de ciência, criam periódicos e centros de pesquisa próprios e se escondem atrás de uma camuflagem acadêmica, a pseudo-história da negação do Holocausto também esconde sua essência racista atrás de jalecos, institutos de pesquisa e publicações “científicas”. Não nos deixemos enganar: negar o Holocausto, ou minimizá-lo, é antissemismo. Não se pode relativizar a verdade. 

“Nunca esquecer” é o lema do Dia Internacional em Memória das Vítimas de Holocausto, celebrado hoje, dia 27 de janeiro, marcando a data em que, há 75 anos, os russos libertaram o campo de Auschwitz. Hoje, lembro-me de meu avô chorando com as cartas da família que ele perdeu na Guerra, e recordo uma tirinha de quadrinhos que li há muito tempo. Retratava uma criança conversando com seu avô. O avô chorava. A menina perguntava “vovô, se dói tanto olhas essas fotos e contar essas histórias, por que o senhor faz isso?”. E ele respondia: “Para que você não esqueça”. 

 

Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência

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