O que Galileu pode ensinar sobre cloroquina

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20 jul 2020
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Tenho recebido diversos e-mails de leitores pedindo que a Revista Questão de Ciência comente o artigo científico, publicado por um grupo dos Estados Unidos e apelidado de “estudo Henry Ford”, que descreve um aparente sucesso no uso de hidroxicloroquina (HCQ), sozinha e em combinação com azitromicina (AZ), no combate aos efeitos da COVID-19 em pacientes hospitalizados.

No geral, tento manter uma política de não comentar estudos específicos – o que importa, ao fim e ao cabo, é o consenso da comunidade científica, não resultados isolados: é possível encontrar “papers” individuais, publicados até em bons periódicos, demonstrando praticamente qualquer coisa, por exemplo, que é possível ver o futuro, ou até que, com orações, pessoas são capazes de mudar o passado.

Resumindo, para estabelecer a verdade científica sobre um assunto não basta escolher a dedo o resultado, ou o punhado de resultados, que mais agrada a esta ou aquela tribo, e sim ver qual o rumo geral da literatura científica de melhor qualidade sobre o tema.

Homeopatia é o caso clássico, mas está longe de ser o único: existem centenas, talvez milhares de estudos a respeito, muitos com desfecho positivo. O que acontece é que, quando esses trabalhos são analisados em conjunto e arranjados por nível de qualidade, uma tendência clara se estabelece: quanto melhor e mais completo o estudo, menor o efeito real que pode ser atribuído à terapia. No limite, esse efeito se torna irrelevante – impossível de distinguir do placebo – ou cai a zero. A cloroquina, quando usada para COVID-19, vai pelo mesmo caminho.

Citar “papers” específicos, ignorando o contexto mais amplo da área de pesquisa em questão, é uma manobra de retaguarda comum entre defensores de causas (pseudo)científicas perdidas. Ela costuma vir acompanhada da exigência, impossível de atender, de uma prova negativa perfeita: e daí que nenhuma foto de disco voador jamais foi autenticada pela ciência? Os cientistas ainda não conseguiram provar que todas as fotos de disco voador já tiradas em todo o mundo, nos últimos 100 anos, são falsas!

(Se algum dia essa improvável prova coletiva vier, a exigência vai se expandir para todas as pinturas de parede de caverna, e assim por diante.)

Bom, e o estudo Henry Ford? Antes de entrar nas especificidades, vamos lembrar outro ponto – por que, afinal, conduzimos pesquisas clínicas: qual a lógica por trás delas? Meu exemplo favorito não é da Medicina, mas da Física, e vem de um livrinho escrito por Galileu Galilei (1564-1642), “O Ensaiador” (“Il Saggiatore”), publicado em 1623.

Esse livro fez parte de uma polêmica entre Galileu e o matemático jesuíta Orazio Grassi (1583-1654). Lá pelas tantas, Galileu resolve tirar sarro de um argumento de Grassi sobre a confiabilidade dos autores antigos – o jesuíta havia citado uma fonte clássica que afirmava que os babilônios cozinhavam ovos girando-os no ar. Galileu deita e rola com o absurdo:

"Se nós não conseguimos efetuar alguma coisa que os outros conseguiram efetuar, significa que nos faltou aquilo que originou o sucesso dos outros, e se nos falta só uma coisa, torna-se óbvio que aquela coisa é a causa do fenômeno. Mas não faltam ovos para nós, nem fundas, nem homens fortes que as façam girar, e os ovos não cozinham, pelo contrário, se estiverem quentes esfriam rapidamente; e pois que não nos falta outra coisa a não ser a Babilônia, então ser babilônio é a causa do cozinhar os ovos, e não o atrito do ar".

De forma mordaz, o pai da Revolução Científica apresenta a lógica por trás dos estudos que se propõem a estabelecer relações de causa e efeito: se os eventos A,B,C,D... etc. estão todos possivelmente implicados na ocorrência de um evento Z, a única forma de determinar se um deles é a verdadeira causa, ou ao menos a causa principal, é “controlá-los”, um a um, e ver o que acontece com Z em resposta.

O problema é que, quando o assunto é saúde humana, a lista de fatores candidatos (idade, dieta, peso, doenças pré-existentes, etnia, atividade física, etc., etc.) é grande demais para que esse tipo de microgerenciamento funcione. Por isso, considera-se que o método ideal é o teste clínico controlado e randomizado: dividem-se voluntários em grupos montados de forma aleatória, de modo que se possa considerar esses grupos equivalentes em tudo, exceto no tratamento recebido.

O estudo Henry Ford não é desse tipo. É um estudo observacional, em que o grupo não tratado e os grupos tradados com HCQ, AZ ou HCQ+AZ são muito diferentes entre si. Por exemplo, idade: no grupo que não recebeu HCQ ou AZ, apenas 38% dos participantes tinham menos de 65 anos. Nos grupos medicados, mais de 50% eram mais jovens. Ainda: o grupo sem HCQ e sem AZT também foi o que menos teve acesso a outras medicações, como corticoides e imunossupressores.

Dadas as diferenças gritantes entre os grupos, não é possível atribuir, com algum grau de certeza, as diferenças de mortalidade registradas à cloroquina e não, digamos, à diferença de idade, do uso de outras medicações, à presença de comorbidades (11% do grupo que não recebeu HCQ ou AZ tinha problemas cardíacos; nos demais grupos, a taxa não chegava a 9%) ou alguma combinação maluca desses fatores.

Os autores apelam para técnicas estatísticas para tentar isolar o peso de cada fator, mas é bem duvidoso que tenham conseguido isso – ou que tenham identificado corretamente todos os fatores a considerar. Estatística é bom, mas não faz milagre, e um comentário extremamente crítico ao trabalho foi publicado no mesmo periódico. O próprio artigo diz que os resultados requerem confirmação em testes clínicos controlados e randomizados. E os melhores do tipo conduzidos até agora foram negativos.

Enfim: lançar estudos isolados, que destoam do sentido geral da literatura, para “demonstrar” alguma coisa é manobra retórica que, para citar um velho clichê a respeito de debates em geral, gera muito atrito e nenhuma luz. É importante ter em mente que o que conta – seja sobre discos voadores, ovos cozidos ou remédios – é a preponderância da evidência de melhor qualidade. O resto é só distração e jogo de cena.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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