Ciência previu a pandemia, mas ninguém ouviu

Artigo
24 jul 2020
máscaras na China

As palavras, hoje proféticas, estão no final de um paper publicado em Clinical Microbiology Reviews em outubro de 2007: “A presença de um grande reservatório de vírus semelhantes ao SARS-CoV em morcegos-de-ferradura, somada à cultura do sul da China de comer animais exóticos, é uma bomba-relógio”.

O alerta – feito 13 anos atrás, e quatro anos depois de a primeira onda de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) matar quase 800 pessoas no planeta – foi um dos primeiros a prever a emergência de algo como o SARS-CoV-2, o vírus causador da atual pandemia.

Outros se seguiram.

Durante anos, houve muitas evidências de que uma pandemia iminente e letal por coronavírus estava a caminho, e especialistas em coronavírus – uma grande família de patógenos encontrados especialmente em aves e mamíferos, e que pode passar de outros mamíferos para seres humanos e causar várias doenças – se esforçavam para alertar o público para o risco. Enfrentando ceticismo e financiamento insuficiente para pesquisas, esses cientistas afirmam que foram impedidos de desenvolver medicamentos e vacinas contra a SARS — muitos dos quais poderiam ser úteis na pandemia atual. Segundo Michael Buchmeier, virologista da Universidade da Califórnia em Irvine, muito que se aprendeu sobre a SARS poderia ser aplicado na crise atual. “Os vírus são muito semelhantes”.

Essas lições, porém, demoraram muito, em parte porque prever a próxima pandemia é muito difícil, e os esforços para conter uma nova pandemia seguiam outra direção. Tanto a SARS como sua prima muito mais letal, a MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), também causada por um coronavírus, foram vistas como grandes ameaças. Mas os demais coronavírus, que causam resfriados, não. E, além disso, os surtos da SARS e da MERS desapareceram em menos de um ano. Quando os casos dessas doenças caíram, os responsáveis pela saúde pública se voltaram para outras emergências virais, como o ebola e a zika, e o financiamento da pesquisa sobre coronavírus caiu barbaramente.

Isso deixou muitos pesquisadores que estavam trabalhando em tratamentos para SARS sem recursos, num momento em que laboratórios de todo mundo registravam descobertas assustadoras: grupos de coronavírus semelhantes ao SARS em morcegos precisavam de apenas algumas mutações para poder infectar células humanas.

O que teria acontecido se o mundo tivesse prestado atenção a esses alertas é mero exercício de imaginação, claro. Mas, para alguns especialistas cujo trabalho é caçar patógenos em potencial, antes que se disseminem entre a população humana, esses anos em que não houve uma preparação para um surto de coronavírus foram trágica e desnecessariamente desperdiçados.

“Estávamos lá em campo após a SARS trabalhando com coronavírus em colaboração com os colegas chineses”, conta Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, um grupo sem fins lucrativos sediado em Nova York que participou do Predict, um esforço financiado pelo governo federal para buscar novos vírus com potencial pandêmico em animais selvagens de 31 países, incluindo a China. Esse projeto perdeu seu financiamento no segundo semestre do ano passado, pouco antes do início do surto de SARS-CoV-2.

“Mas nós éramos o único grupo de pesquisadores ocidentais”, acrescenta. “Como podíamos ser as únicas pessoas procurando esses vírus, quando estava claro que o perigo era grande?”

A comunidade que pesquisa coronavírus é pequena, mas unida e interativa. “Somos um beco sem saída no fim da estrada da virologia”, diz Buchmeier, que estuda os coronavírus desde 1980. Cientistas são atraídos para este campo por algo fascinante: coronavírus desenvolveram estratégias para se proteger contra erros genéticos durante a replicação, o que os faz diferentes de todos os outros.

Eles podem produzir infecções letais em algumas espécies animais, particularmente em gatos e porcos. Mas no campo da medicina humana, sempre tiveram fama de serem “fraquinhos que só causam doenças leves”, diz Albert Osterhaus, fundador e diretor do Research Center for Emerging Infections and Zoonoses, em Hanover, na Alemanha. Por isso, conta, quando a SARS apareceu, em 2002, houve “um descrédito generalizado entre médicos que um coronavírus pudesse causar um surto tão grande”.

À medida que a epidemia de SARS se disseminou, a área se encheu de novos pesquisadores, mais financiamento foi dado aos estudos de forma crescente. “Todo mundo queria saber de onde o vírus tinha vindo”, explica Ralph Baric, microbiólogo da Gillings School of Public Health, da Universidade da Carolina do Norte. Os primeiros achados apontaram para civetas selvagens e cães-guaxinins, vendidos, respectivamente, como comida e pelas peles, em mercados chineses. Evidências posteriores começaram a indicar os morcegos-de-ferradura como fonte inicial da infecção. Pesquisadores, cujas carreiras antes da SARS se concentravam na biologia básica dos coronavírus, passaram a trabalhar em terapias e vacinas e durante anos fizeram progressos nessas áreas.

Mas depois de aumentar de 28, em 2002, para 103, em 2008, o número de financiamentos dos National Institutes of Health [órgão do governo dos Estados Unidos que é o principal financiador de pesquisa médica no mundo] para pesquisas sobre coronavírus entrou numa espiral descendente. “Além disso, as pessoas foram pesquisar outras coisas”, analisa Susan R. Weiss, virologista da Faculdade de Medicina da Universidade da Pensilvânia. “Eles correram para os coronavírus e depois desapareceram, depressa”.

Na verdade, alguns pesquisadores que trabalhavam com grandes financiamentos e vários colaboradores mantiveram suas bolsas. Baric e seu colega Mark Denison da Vanderbilt University, por exemplo, mantiveram sua verba e passaram a estudar o redirecionamento do uso do remdesevir, originalmente desenvolvido para hepatite C, que hoje é a primeira droga aprovada para uso emergencial contra a COVID-19.

Mas, segundo Linda Saif, virologista e imunologista especializada em mucosas da Ohio State University, em Wooster, a queda no financiamento afetou profundamente pesquisadores individuais que não faziam parte desses grandes consórcios. Indústrias farmacêuticas que desenvolvem vacinas e medicamentos também reduziram os investimentos em pesquisa de coronavírus e, poucos anos depois do surto de SARS, as agências de fomento dos EUA e de outros países “deixaram de considerar os coronavírus como uma grave ameaça à saúde pública comparados a outras doenças”, Saif escreveu em email para a Undark.

A própria Saif estava estudando as consequências respiratórias da administração de esteroides em porcos infectados por coronavírus, já que os sintomas se assemelham aos de pacientes da SARS. “Depois que os coronavírus deixaram de ser considerados patógenos importantes para seres humanos, ficou muito difícil obter financiamento para prosseguir nessa área”, afirma. Outra cientista que passou pela mesma situação foi Brenda Hogue, virologista da Arizona State University, em Tempe. Hogue devotou sua carreira ao estudo dos coronavírus, com foco na sua maquinaria de proteínas. Depois da SARS, ela e parte de seus colegas se voltaram também para o desenvolvimento de vacinas. Mas quando o financiamento caiu, em 2008, o projeto da vacina foi abandonado e a equipe investiu em outras áreas de pesquisa.

Embora o apoio à pesquisa sobre coronavírus tenha aumentado um pouco em 2012, com o surto de MERS, esse impulso teve curta duração. Como o surto foi rapidamente contido, a doença não despertou maiores preocupações e o financiamento de pesquisas diminuiu mais ainda.

Ironicamente, enquanto caíam as verbas para desenvolvimento de medicamentos e vacinas, as evidências de que outros coronavírus estavam à espreita se fortaleciam. Durante anos, cientistas encontraram linhagens virais geneticamente semelhantes ao vírus da epidemia de SARS em outros animais. Mas dados de sequenciamento genético têm suas limitações. Para demonstrar que um vírus é realmente perigoso para seres humanos, cientistas precisam isolar e cultivar o vírus e mostrar que infectam culturas de células humanas em laboratório.   

Os coronavírus usam espículas de proteína, presentes em sua superfície, para se ligar aos receptores celulares dos animais que infectam. O SARS-CoV se liga a um receptor chamado ACE2, que normalmente ajuda a regular a pressão arterial.  

No entanto, dez anos se passariam até que pesquisadores mostrassem que outros vírus semelhantes aos SARS também se ligavam aos receptores ACE2. A evidência veio de uma equipe do Instituto de Virologia de Wuhan, a primeira a isolar um vírus semelhante ao SARS em morcegos-de-ferradura. Liderados pelo virologista Zheng-Li Shi, em 2013, os pesquisadores de Wuhan mostraram que esse vírus, chamado WIV1, se ligava aos ACE2 em civetas e em células humanas, e se replicava de forma eficiente dentro delas. “Esse foi o sinal de alerta,” diz Saif. Evidências anteriores sugeriam que o contato direto com esses morcegos poderia fazer com que esses vírus “saltassem” para os seres humanos. “Então, em 2013, tivemos prova de que poderiam mesmo”.

Os morcegos foram capturados numa caverna de Kunming, capital da província de Yunnan. Pelo menos outros sete vírus semelhantes ao SARS estavam presentes na mesma colônia, levando os pesquisadores a especular que esses coronavírus “continuam a ser uma ameaça global considerável para a saúde pública”.

Além de cultivar o WIV1, o time de pesquisadores de Wuhan sequenciou outros dois vírus semelhantes aos SARS nas fezes de morcegos, incluindo um chamado SHC014. Ele não foi cultivado, mas Baric e seus colegas fizeram um experimento para explorar seu potencial infeccioso. A equipe criou um micróbio híbrido ligando a proteína da espícula do SHC014 a um vírus semelhante ao SARS, previamente adaptado para infectar camundongos. Essa quimera – isto é, organismo que contém células com mais de um genótipo – não teve dificuldade em se ligar ao ACE2 e infectar células humanas. O time de Baric concluiu que, da mesma forma que o WIV1, qualquer vírus semelhante ao SARS que tivesse as espículas do SHC014 poderia saltar de outra espécie para a nossa, e ser uma ameaça para os seres humanos.

Algumas teorias conspiratórias alegam que uma quimera poderia ter escapado dos laboratórios de alta segurança do Instituto de Virologia de Wuhan e causado a COVID-19 — e Baric reconhece a natureza arriscada da pesquisa. “Geralmente, não sabemos a transmissibilidade ou o potencial de virulência de qualquer vírus de morcegos ou quimeras”, explica. “Por isso, o melhor é manter e trabalhar com esses vírus em laboratórios de biossegurança nível 3, para maximizar a segurança”.

Ainda assim, Baric destaca que uma quimera exibiria uma assinatura genética que mostraria o que realmente é. As partes de fusão de uma quimera são identificáveis por um padrão lógico. Uma análise genética da quimera produzida no laboratório de Baric, por exemplo, mostraria um SARS adaptado a camundongo em toda parte, menos nas espículas, que é do SHC014. Esse padrão não existe no SARS-CoV-2, indicando que ele evoluiu naturalmente.

Teorias da conspiração à parte, enquanto Baric e outros produziam em laboratório evidências de que outros vírus semelhantes ao SARS poderiam infectar seres humanos, outro surto de coronavírus, dessa vez em porcos, matou 250 mil animais na província chinesa de Guangdong a partir de 2016. Esse vírus também foi encontrado em morcegos-de-ferradura, e Buchmeier descreve esse surto tanto como um importante salto entre espécies, como um alerta que nunca foi realmente compreendido pelas autoridades de saúde. “Disseram que era um vírus da área agrícola e não consideraram como um preditor de alguma coisa que poderia ocorrer com uma doença humana”.

Buchmeier destaca que como reação, depois do surto em porcos, autoridades de saúde e cientistas deveriam se empenhar na busca por coronavírus em mercados. Mas, à época, os recursos financeiros estavam indo para o extremo oposto, com o fim do programa Predict, que deveria monitorar o aparecimento de patógenos com potencial para causar pandemias, e que foi encerrado em setembro de 2019, meses antes do início da pandemia de COVID-19.

A EcoHealth Alliance, que tinha sido parte do Predict, manteve sua parceria com o Instituto de Virologia de Wuhan usando recursos financeiros do National Institutes of Health. Mas no dia 24 de abril, a administração Trump ordenou que o NIH cortasse a verba. Então, no dia 12 de maio, segundo The Wall Street Journal, o governo chinês pagou na mesma moeda, “interrompendo os esforços internacionais para encontrar a fonte do SARS-CoV-2, em meio à escalada da pressão dos Estados Unidos para culpar a China pela pandemia”.

Para especialistas na doença, essa disputa é um indicador preocupante, e até espantoso, de que alguns líderes globais ainda não entenderam o que os cientistas têm a dizer sobre a ameaça dos coronavírus e, segundo Baric, a atual pandemia mostra claramente a necessidade de melhor comunicação entre os países, e não seu isolamento. “Colaboração é fundamental, porque numa pandemia informação crítica precisa ser passada o mais depressa possível”, diz.

O mesmo vale para o diálogo entre autoridades da saúde pública e microbiologistas. Se os novos vírus semelhantes ao SARS tivessem sido encarados com o nível de urgência que mereciam, a comunidade de pesquisadores poderia estar bem mais avançada em termos de estratégias de enfrentamento, e vacinas que já tinham passado por testes de segurança poderiam ter avançado, há tempos, para as outras fases de testes clínicos, de acordo com Saif.

O Congresso americano aprovou a liberação de recursos da ordem de US$ 1 bilhão para pesquisa de vacinas, antivirais e diagnóstico como parte dos US$ 2 trilhões do Coronavirus Aid, Relief and Economic Security Act, autorizado em março. A maior parte desses recursos foi para as indústrias farmacêuticas que desenvolvem aqueles produtos. O NIH também passou a destinar recursos próprios e mais US$ 1,8 bilhão emergenciais para programas e projetos de pesquisa relativos à COVID-19.

Para Osterhaus, são boas notícias, mas um cenário já bem conhecido. De acordo com ele, com enorme frequência o dinheiro vai atrás dos surtos epidêmicos em vez de se adiantar a eles para contê-los ou minimizar seus efeitos.

“O correto teria sido dar atenção aos alertas dos cientistas da área e levá-los a sério”, diz. “Estaríamos mais bem preparados para enfrentar a pandemia”.

Charles Schmidt é ganhador do National Association of Science Writers’ Science in Society Journalism Award e seu trabalho foi publicado na Science, Nature Biotechnology, Scientific American, Discover Magazine e The Washington Post, entre outros. Este artigo foi publicado originalmente em Undark.

 

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