Magia, ciência e pagamento de contas

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19 nov 2020
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aprendiz de feiticeiro

 

Hoje tive uma vivência especial. Vou relatá-la em algum detalhe pois, em vez de vivê-la quase automaticamente, sem pensar, estive consciente, a cada passo, de uma experiência que poderia considerar mágica.

Contas devem ser pagas, é a vida real. Uma série de ações são possíveis quando chega a conta de um cartão de crédito.

Uma delas é jogar a conta no lixo, e fingir que nada chegou. Mas essa ação, ainda que admissível, tem riscos e, se se avalia a relação risco/benefício, é claro que não se trata de um ato conveniente.

Outra ação possível é se deslocar até uma agência bancária para fazer uma fila e pagar a conta no caixa. Se o banco não fica perto de casa, tem-se de optar por um meio de transporte. Vamos lembrar que, apesar do que pensa o presidente(?) Bolsonaro, estamos vivendo uma pandemia de COVID-19. Como sou de um grupo de risco cinco cruzes, a chance de me contaminar pela ida ao banco, num meio de transporte coletivo, é enorme. Então, porque eu pelo menos posso, vou de carro. Isso se o carro, depois de tantos dias parados, for partir. Supondo isso, teria de ir ao banco, mas enfrentar a fila de pessoas sem distanciamento. Nem pensar. Outra possiblidade perdida.

Olhando de novo a conta vejo que tem um claro código de barras. Lembro então que no meu telefone celular, no app do banco onde tenho conta, podem-se ler códigos de barra, no item pagamentos. Coloco a conta numa superfície plana, aponto o celular e pluft, aparece uma chamada para colocar a minha senha de alguns dígitos que, por sorte, ainda lembro. Coloco a senha e pimba, aparece o recibo, o copio para meu e-mail, e pronto.

Não joguei a conta fora, não liguei o computador, não fui ao banco e ainda paguei e o recibo está como anexo no meu e-mail. Conclusão possível: é magia ou intervenção direta dos deuses. Mas espera aí, o que é a tal da magia, e onde estão os deuses?

Numa tradução não certificada do conteúdo da Enciclopédia Britânica (sim, sou velho mesmo, às vezes prefiro essa enciclopédia ao Google), a magia se caracteriza como um “desempenho ritual ou atividade que acredita influenciar eventos humanos ou naturais por meio do acesso a uma força mística externa, além da esfera humana comum”.

Para melhor esclarecer, adiciono outras características da magia.

“Esta força constitui o núcleo de muitos sistemas religiosos e desempenha um papel social central em muitas culturas. Ao mesmo tempo, a magia foi considerada inteiramente distinta da religião por consistir em manipulação externa, ao invés de súplica. Muitos pensadores religiosos, antropólogos contemporâneos e historiadores da religião, entretanto, tendem a contestar isso, uma vez que tanto a magia quanto a religião estão preocupadas com os efeitos, sobre existência humana, de forças místicas externas. Assim, magia e religião são genericamente semelhantes e conectadas, com a diferença específica de que a magia é geralmente um assunto mais impessoal e mecânico, com ênfase na técnica”.

"O vocabulário esotérico de encantamentos pode representar o simbólico, uma vez que a natureza misteriosa do poder espiritual é, em um sentido prático, a restrição do acesso humano a ele. Nomes pessoais são comumente usados ​​em feitiços por mágicos para fazer bem ou mal. Indivíduos com esse poder são considerados, em algumas sociedades, como tão fortes que devem ser cultuados. Os espíritos são comumente considerados como tendo nomes mágicos especiais, conhecidos apenas por uns poucos escolhidos. Junto com os feitiços, podem ser incluídos os objetos materiais ou medicamentos usados ​​em muitas sociedades”.

Mas se isso é magia, nenhuma das minhas ações tem qualquer componente contemplado nessa definição. Usar o celular não precisou de rito, força mística ou apelo a seres superiores. Foi só apertar um par de teclas virtuais. Que é isso então que me permitiu pagar a conta?

A resposta é simples e se resume numa única palavra: ciência. Apesar do espaço deste artigo ser limitado, alguns elementos da imensa quantidade de ciência que foi necessária para chegar ao processo que me permitiu pagar a conta pelo celular devem ser apontados.

Partindo pelo mais elementar, nenhum componente físico do seu celular é natural (nem “orgânico”, na definição dos que gostam da comida dessa denominação). Essencialmente, todos os elementos foram sintetizados, em grande escala, pois existem quase tantos celulares como pessoas no Brasil, então se precisa de muito material. Também há uma quantidade enorme de produto da reflexão humana, pois a programação de todas as milhares de funções de um celular não cresce nas árvores. Sem a contribuição de gigantes como Albert Einstein - sim o velho que mostra a língua, numa foto famosa - seu celular não saberia onde está.

Os químicos e físicos que descreveram os assim chamados cristais líquidos, há muitas décadas, permitiram que a tela do celular tenha milhares de cores, bem definidas e precisamente colocadas. E poderia me alongar por muitas páginas para dar uma descrição sumária da quantidade de ciência que permitiu que eu pagasse a conta do meu cartão de crédito usando meu celular.

Não é da magia nem da intervenção de seres misteriosamente superiores que nascem coisas simples (???) como um celular, é do esforço de cientistas. Como a criação de conhecimento pelos cientistas está também nos carros elétricos, nos carros a álcool e tantos etc., etc., etc. ... me permito afirmar que você está totalmente rodeado por ciência. E que magia nenhuma permitiu que tudo isso o acompanhe hoje. E como não podemos esperar que apareçam soluções mágicas, somente continuando a investir em ciência e cientistas poderemos enfrentar desafios novos e conhecidos.

E amanhã? Como será o nosso entorno, qual será a forma em que nossos netos vão se comunicar? Não dá para prever. Só o  que sabemos é que para mitigar o dano já feito em nosso planeta, para criar melhores condições de vida, para diminuir a fome, a sede e a iniquidade que nos rodeia, só temos a ciência já feita, e a muita ciência a fazer.

Hernan Chaimovich é professor Emérito do IQ-USP

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