Ministério da Saúde abre 2021 empurrando cloroquina e desinformação

Artigo
6 jan 2021
Autor
Frankenstein

 

nota publicada no site do Ministério da Saúde e divulgada em redes sociais logo no primeiro dia do ano, defendendo o “tratamento precoce” da COVID-19 com hidroxicloroquina combinada ao antibiótico azitromicina, é uma peça de fantasia, uma miragem elaborada para defender as insustentáveis recomendações oficiais do Governo Federal para o manejo da doença,  a despeito da opinião contrária dos principais especialistas brasileiros e dos resultados de estudos internacionais.

O texto do ministério tem como base a publicação recente de artigo no periódico científico “The American Journal of Medicine” no qual os autores defendem a adoção de estratégias de terapia profilática para evitar o agravamento da infecção pelo SARS-CoV-2, coronavírus causador da COVID-19, incluindo a imagem de um proposto “algoritmo de tratamento” para monitoramento e manejo dos pacientes. O fluxograma publicado cita tanto a hidroxicloroquina quanto a azitromicina. Segundo a pasta, a publicação serve como “comprovação” da eficácia do tratamento precoce por um “renomado” periódico científico, justificando a posição do Governo Federal a respeito.

O problema é que nada disso corresponde à realidade. De fato, o artigo citado aparece na primeira edição de 2021 de “The American Journal of Medicine”, mas está longe de ser recente, tendo sido publicado inicialmente online ainda no início de agosto do ano passado, pouco depois, portanto, de saírem os estudos que descartaram a eficácia da hidroxicloroquina "precoce". A nota estranhamente não traz um único link sequer para o artigo (que aparece nesta página), cuja publicação a pasta tanto comemora.

Pior que isso, porém, o Ministério da Saúde distorce o caráter do artigo e exagera a importância do periódico em que foi publicado. Puramente argumentativo, o artigo não descreve nenhum resultado experimental ou teste clínico que comprove a eficácia do tratamento preventivo da COVID-19 com hidroxicloroquina e azitromicina. Aliás, datado que é de 5 de agosto do ano passado, propõe um “algoritmo de tratamento” que está obviamente defasado, principalmente diante da rapidez do acúmulo de estudos sobre a doença publicados desde então.

O próprio “The American Journal of Medicine” está longe de ser um dos mais “renomados” periódicos científicos da área, como alardeia o Ministério da Saúde. Pesquisa no ranking da Scimago, serviço internacional de avaliação da relevância e importância de variados atores do ecossistema científico, como governos, instituições e publicações, aponta o “The American Journal of Medicine” apenas na 928ª posição entre os periódicos do campo da Medicina em geral, muito longe do topo como a pasta tenta fazer parecer. Em comparação, o "New England Journal of Medicine", onde saiu um dos primeiros artigos apontando que o tratamento precoce com hidroxicloroquina é inútil, ocupa a oitava posição nesse mesmo ranking.

“A nota realmente foi uma péssima forma de o Ministério da Saúde abrir o ano”, diz Alison Chaves, doutor em microbiologia e imunologia pela Unifesp e pós-doutorando no Instituto Butantan. “A nota, mais do que errada como recomendação clínica, é contraproducente pelo seu efeito prático. Isso porque a atenção básica de saúde brasileira tem um histórico de seguir as orientações e recomendações do Ministério da Saúde, como deveria ser. Acontece que, neste momento de pandemia, vimos uma dança das cadeiras com a entrada de militares em posições de comando na pasta. Isso acabou com a credibilidade do Ministério da Saúde, cujas orientações deveriam ter base técnico-científica”.

Assim, Chaves classifica a nota do ministério como nada mais que uma peça de propaganda em defesa própria, que peca já pelo título, numa tática de desinformação similar à adotada recentemente pelo governo federal quando da apresentação dos resultados de um estudo envolvendo o uso do remédio para vermes nitazoxanida (Annita) no tratamento da COVID-19.

“Não há dúvida de que a nota é uma propaganda para defender condutas recomendadas pelo ministério envolvendo estes medicamentos, seus ‘Kits Covid’, que há tempos não têm qualquer demonstração que funcionem, alimentando um falso debate por questões politicas”, avalia. “Revistas científicas não atestam nada. Mesmo se tivessem impacto altíssimo, o que não é o caso. Elas publicam estudos, e a partir daí a comunidade científica discute o assunto e forma um consenso sobre se a conduta deve ser adotada ou abandonada, por exemplo. Então, a equipe de propaganda do ministério ou é extremamente incompetente em entender o básico do ecossistema científico, ou é uma desonestidade intelectual pura e simples. Sabem que é uma farsa e mesmo assim fazem uma propaganda deste tipo porque ao mesmo tempo também sabem que as pessoas não vão ler e não vão entender o estudo, que também não está fácil de encontrar”.

Com isso, diz Chaves, o Ministério da Saúde volta a tentar levantar uma falsa controvérsia de uma disputa que não existe sobre a eficácia do tratamento precoce da COVID-19. 

“Na verdade, a questão é ‘cadê as evidências?’, e o ministério não mostra estas provas, que vêm de estudos de boa qualidade na forma de ensaios clínicos randomizados (RCT, na sigla em inglês), o padrão ouro para este tipo de demonstração”, lembra.

O artigo motivador da nota do Ministério da Saúde não só é equivocado como “simplesmente ruim”, destaca Felipe Nogueira, doutor em ciências médicas pela UERJ e divulgador científico.

“O artigo tem questões peculiares”, aponta Nogueira. “Não só não é um experimento ou estudo em si, mas é basicamente um texto de opinião. E não diz só de hidroxicloroquina, também aborda outras supostas alternativas de tratamento precoce, como azitromicina, doxiciclina e favipiravir, que são classes de medicamentos totalmente diferentes: tem antibiótico, tem antiviral e um que se pode dizer que tem função imunomoduladora, mas na verdade é um antimalárico. Ele atira para todos os lados, e mesmo assim todos eles têm uma coisa em comum: não temos evidências de qualquer deles funciona contra a COVID-19”.

Segundo Nogueira, mesmo à época da publicação do artigo os autores já poderiam ter citado estudos de qualidade na forma de ensaios clínicos randomizados que refutavam o uso da hidroxicloroquina para a doença, como o Recovery, conduzido pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, que então já havia divulgado seus resultados iniciais.

“O artigo me parece uma forçação de barra para argumentar a favor de algo que já não tem evidências, com argumentos ainda por cima ruins, sendo usado pelo Ministério da Saúde com a mesma finalidade”, considera. “E infelizmente estamos vendo isso praticamente desde o início da pandemia. Talvez sejamos hoje o único país em que o governo ainda insiste em usar cloroquina contra a COVID-19, quando a vacina devia ser a nossa maior preocupação. Deveríamos é para de falar e gastar tempo com cloroquina e focar na vacina, que é a única saída real da pandemia”.

Mas isto, ao que parece, infelizmente não é a prioridade do governo federal neste segundo ano da pandemia, lamenta Nogueira.

“A nota do ministério é mais uma peça de desinformação que de orientação”, conclui. “Ela usa um artigo ruim publicado por um periódico que não tem a qualidade que se esperaria para afirmação como a pasta faz – eu, sinceramente, acho que nunca tinha ouvido falar dele, e ‘renomado’ certamente ele não é mesmo – numa tentativa de argumentar em defesa de um ponto de vista que não tem evidências há muito tempo, desde que ele foi publicado seis meses atrás. E, numa pandemia como esta, seis meses é tempo mais que suficiente para finalmente entender que cloroquina não funciona contra a COVID-19”.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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