Lei de Murphy traz tempero baiano

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21 set 2021
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Muitos anos antes do engenheiro aeroespacial e militar americano Edward Aloysius Murphy, Jr. (1918 – 1990), várias pessoas já haviam concluído que “se algo pode dar errado, dará”. Não exatamente com estas palavras, mas com o mesmo sentido, em diferentes momentos, culturas e situações.

Entre estas pessoas, pode-se citar o astrônomo inglês Nevil Maskelyne (1732 – 1811): “tudo que pode dar errado vai dar errado” (“everything that can go wrong will go wrong”); ou o matemático e lógico inglês Augustus de Morgan (1806 – 1871): “tudo o que pode acontecer irá acontecer” (“whatever can happen will happen”); o engenheiro e empreendedor naval inglês Alfred Holt (1829 – 1911): “tudo que pode dar errado no mar geralmente dá errado mais cedo ou mais tarde” (“it is found that anything that can go wrong at sea generally does go wrong sooner or later”), ao se tratar de navios a vapor e os riscos envolvidos; ou o artista americano Adam Hull Shirk (1881 - 1931): “é um fato estabelecido que em nove casos entre dez tudo o que pode dar errado em uma performance mágica irá dar errado” (“it is an estabilished fact that in nine cases out of tem whatever can go wrong in a magical performance will do so”).

O ponto a ressaltar é que não existe um regramento do tipo Maskelyne ou De Morgan com tanta presença no imaginário popular quanto aquele atribuído a Murphy. O responsável por tal divulgação foi o médico e militar americano John Paul Stapp (1910 – 1999). Nascido na Bahia, filho de um reverendo, Charles Franklin Stapp (1881 – 1956), e de Mary Louise Shannon Stapp (1879 – 1940), missionários batistas que ainda tiveram mais dois filhos (um deles também soteropolitano). Stapp passou sua infância e início da adolescência em Salvador. Formou-se em zoologia e em química nos Estados Unidos, e obteve um Ph.D. em biofísica. Obteve ainda o título de médico, uma aspiração antiga, pois aos 18 anos havia presenciado um acidente com uma criança da família que havia falecido.

Foi pioneiro nos estudos dos efeitos das forças de aceleração e desaceleração no organismo humano, sendo conhecido como “o homem mais rápido da Terra”, ao participar de experimentos que permitiram compreender melhor o comportamento do corpo humano ao ser acelerado e desacelerado bruscamente. Desta forma, desafiou corajosamente a velocidade pilotando um trenó sobre trilhos com propulsão por foguetes, atingindo velocidades de 320 km/h em 610 metros, sendo depois desacelerado violentamente. Testes posteriores atingiam velocidades três vezes maiores.

Seus estudos, iniciados no pós-guerra, e facilmente encontrados nas redes sociais, permitiram propor mecanismos de segurança em carros e aviões, além do lançamento de astronautas. Também estudou efeitos da descompressão e voos de altas altitudes. Para se ter ideia dos seus feitos científico-militares, foi capa da célebre revista Time de 12 de setembro de 1955. Mas o seu feito mais impactante em termos culturais foi disseminar a famosa “Lei de Murphy”, além de defender a obrigatoriedade da presença de cintos de segurança em automóveis.

Stapp, que era um excelente frasista, além de extremamente corajoso por se permitir participar dos testes de aceleração extrema, trabalhou com Murphy em pelo menos um projeto crucial, de onde a “lei” teria saído.

Há um segundo relato, feito pelo engenheiro aeroespacial George Edmund Nichols (1920 - 2012), amigo de Stapp, que se apresentava como testemunha dos fatos, parte do qual foi publicado na primeira edição do livro “Murphy’s Law”, do humorista americano Arthur Bloch (n. 1948), lançado em 1977. Certa feita, em um dos testes sobre aceleração extrema conduzidos por Stapp em 1949, foram utilizados acelerômetros especiais projetados por Murphy. No entanto, a fiação dos aparelhos foi feita de forma errada, e eles não mediram nada.

Segundo Nichols, Murphy teria posto a culpa num técnico – “se tiver um jeito errado de fazer, ele fará” – e assim teria nascido a lei, depois refinada em sua forma atual. Ainda de acordo com Nichols, e também com outro engenheiro aeroespacial que trabalhava no mesmo projeto, David Hill (1920 - 2004), a frase ganhou mundo quando Stapp a utilizou numa entrevista coletiva, para explicar como os testes de aceleração, altamente perigosos, jamais haviam apresentado acidentes graves. Nesse contexto, “se alguma coisa pode dar errado, dará” é uma advertência para que projetistas e engenheiros esforcem-se ao máximo a fim de prever todas as falhas possíveis, e garantir que nenhuma delas aconteça.

No entanto, nem o jornalista e cineasta Nick T. Spark (n. 1970), autor de um livro sobre a história da “lei” (e que conhecia David Hill), nem o editor Fred Richard Shapiro (n. 1954), responsável por organizar um dicionário de frases célebres e provérbios publicado pela Universidade Yale, conseguiram localizar qualquer registro dessa suposta entrevista. Segundo a pesquisa da equipe de Shapiro, a aparição mais antiga da frase, com o nome de “Lei de Murphy”, por escrito, está numa entrevista do físico Howard Percy Robertson (1903 - 1961) publicada em 1951.

Da parte de Murphy, há registros que deixam margem de dúvida quanto à história oficial. Numa entrevista à revista People em 1983, Murphy chegou a afirmar: “se houver mais de uma maneira de fazer um trabalho, e uma delas resultará em desastre, então alguém o fará” (“if there’s more than one way to do a job, and one of those ways will result in disaster, then somebody will do it that way”).

Depois, em entrevista radiofônica, afirmou que Stapp havia criado a expressão “Lei de Murphy”, para sintetizar a ideia expressada por Murphy diante do fracasso dos acelerômetros, de que todas as possíveis fontes de erro devem ser levadas em consideração, e admitiu que ele próprio havia falhado ao não prever que a fiação poderia ser colocada de modo a inviabilizar o experimento; de fato, negou que tivesse posto a culpa num técnico. Segundo Spark, Nichols e Murphy tiveram um rompimento exatamente por causa das diferentes versões de cada um sobre a origem da “lei”.

Por sua vez, Stapp nunca entrou nessas disputas. O mais correto, portanto, seria atribuir ao ditado o nome de ambos, tendo a certeza de que é obra com tempero baiano.

 

Marcio Luis Ferreira Nascimento é físico e professor de engenharia na Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia

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