Publicação de impublicáveis é um novo modelo de negócio?

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4 out 2021
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escritório medieval

 

As universidades têm investido cada vez mais no estabelecimento de políticas institucionais que apontem para a produção de artigos e livros com acesso aberto. É desejável que um material de boa qualidade, revisados por pares, esteja acessível para toda a sociedade. Ações de universalização desse conteúdo intelectual não têm ficado restritas às instituições de ensino: revistas de editoras tradicionais têm cada vez mais incentivado a publicação de artigos de acesso aberto.

A publicação desse material acessível a qualquer pessoa com acesso à internet envolve, porém, custos. O pagamento de parte dos valores de publicação aberta é repassado aos autores dos artigos, com preços que podem ficar em torno de R$ 20 mil. A navegação pelos sites de algumas editoras, para entender como é feita a precificação dessas publicações, não satisfaz e fica difícil entender o porquê dos altos valores, já que hoje a publicação é digital e o processo de arbitragem de artigos não é remunerado.

Não é possível demonstrar que empresas tradicionais de publicação científica tenham abdicado, de maneira institucional, da qualidade dos artigos publicados em troca do dinheiro – mesmo que seja verdade, é muito pouco provável que encontremos uma confissão no expediente de alguma revista –, mas não é raro encontrar artigos de péssima qualidade publicados em periódicos associados a grupos importantíssimos.

O grupo Nature, por exemplo, publica a revista Scientific Reports. Trata-se de um balaio onde é possível encontrar artigos excelentes, razoáveis e outros em que o leitor precisa piscar várias vezes para ver se é verdade que tamanha besteira foi publicada. Como diferencial de marketing que talvez ajude a atrair clientes pagantes (isto é, autores em busca de um espaço de publicação), quando um artigo é publicado em Scientific Reports o link gerado para compartilhamento dá a impressão de que o trabalho saiu na Nature – uma das revistas de ciência mais importantes do mundo. A sensação, porém, ao abrir o link é parecida com a de abrir um pote de sorvete no freezer e encontrar feijão.

 

Equações e pandemia

Um outro grupo tradicional criado em 1842 é a Springer, que a partir de 2015 passou a se chamar Springer-Nature por causa da fusão dessas duas gigantes do mercado editorial. A Springer é a responsável pela publicação Nonlinear Dynamics - An International Journal of Nonlinear Dynamics and Chaos in Engineering Systems, uma revista que cobra £ 2.560,00/US$ 3.860,00/€ 3.060, 00 (valores correspondentes a cerca de R$ 21 mil) de custos de processamento para artigos de acesso aberto.

Na página da revista Nonlinear Dynamics existe um aviso no site de que o pagamento dessa taxa não influencia na aceitação do artigo, e de que a revista está comprometida com o mais alto nível de integridade do material publicado. Parece ser um aviso puramente retórico, porque não deveria ser aceitável encontrar ali algo como o péssimo artigo Complex scenarios with competing factors, de autoria de M. P. Brandão, diretor de defesa e segurança da Secretaria de Estudos Estratégicos do governo federal.

Títulos e prêmios não impedem que pessoas digam besteira, mas vendo o currículo do autor, é pouco provável que ele não tenha percebido que o artigo é vazio e que as equações são apenas reproduções de textos básicos de cursos de exatas dos primeiros anos de graduação.

De modo bem resumido, o artigo busca usar equações de livro-texto para dar um verniz de respeitabilidade científica à ideia (importante para quem paga o salário do autor) de que a melhor maneira de minimizar o número de mortes causadas pela pandemia seria minimizar também as restrições à atividade econômica – lockdowns, por exemplo.

 As conclusões e inferências ao longo do texto, com falas contrárias ao isolamento social ("para salvar vidas é preciso aumentar a ênfase na economia"), não encontram nenhum lastro no próprio artigo, onde nenhuma conta relevante é feita.

O modo como as equações – que envolvem uma matemática um pouco mais avançada do que a comumente encontrada no ensino médio e, com isso, podem impressionar quem não seguiu carreira na área de exatas – distribuem-se ao longo do texto sugere que o principal objetivo de estarem ali é confundir, e dar a impressão de que corroboram as conclusões.

As fórmulas podem dar um ar de sofisticação ao conjunto, mas só o que dizem é que, para minimizar uma quantidade qualquer que desejamos reduzir, pode ser preciso ajustar diversos outros parâmetros. Por exemplo: imagine que você gostaria de chegar à casa de um amigo no menor tempo possível, ou seja, a grandeza que se quer minimizar é o tempo de viagem.

Um motorista pode escolher ir por vários caminhos e correr mais ou menos com o carro. Pode ir por um caminho com mais semáforos, com mais faixas de pedestres ou ir por algum outro mais longo, mas com menos interrupções. Pode ser que, se correr muito, fique mais tempo parado nos semáforos, e se for mais devagar, encontre mais faróis abertos.

Deve haver, portanto, alguma combinação de fatores que faça com que o tempo de viagem seja o menor possível. O cálculo da minimização de algumas quantidades pode ser bem complicado. A conta pode envolver uma série de parâmetros, e encontrar a melhor combinação dos fatores que retorna a melhor estratégia demanda, às vezes, um bom tempo de cálculos computacionais.

 

Chancela duvidosa

É certo que vários fatores podem influenciar na política pública de combate à pandemia e minimização da quantidade de vítimas: infraestrutura de clínicas e hospitais; distribuição geográfica da população; critérios de logística na distribuição de medicamentos e insumos; velocidade de vacinação; isolamento social; estabelecimento de protocolos de saúde para as pessoas etc. O cálculo da melhor estratégia é, portanto, complicadíssimo.

O artigo de Brandão apresenta as equações, mas não as utiliza em nenhum cálculo relevante. É um típico trabalho pseudocientífico, que se disfarça de ciência, para propagar as ideias tresloucadas do governo federal contra medidas sanitárias e de isolamento social ou, como diz o próprio autor na sua conta pessoal do Linkedin, que o artigo foi publicado para "repensarmos a libertação do Brasil".

Não é surpresa nenhuma a propagação de notícias falsas pelo atual governo, mas é preocupante que periódicos vinculados ao grupo Nature, que publica uma das revistas mais prestigiadas do meio científico, comecem a chancelar sistematicamente artigos de péssima qualidade. Se, de fato, não existem interesses econômicos que estimulem a publicação de impublicáveis, como menciona o site da revista, então é importante que se leve mais a sério o processo de aceitação dos artigos.

 

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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