Carnaval, a ciência e a política da religião

Artigo
3 mar 2023
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Xilogravura medieval

 

Celebrando a diversidade religiosa, o samba-enredo da Gaviões da Fiel deste ano juntou Cristo com Oxalá, Chico Xavier com Irmã Dulce e amém com axé. E, em alusão à doutrina da Trindade, a canção menciona o Pai, os Filhos, os Espíritos e os Santos. Em vez de ganhar a disputa carnavalesca, a Gaviões recebeu uma nota de repúdio da Frente Parlamentar Evangélica (FPE). Na visão desses políticos, "não se compara Cristo e Oxalá … em hipótese alguma", e só existiria um Pai, um Filho e um Espírito Santo. Por interpretar esse sincretismo artístico como um ato imoral, vilipendioso, a FPE ameaça acionar a Justiça contra a escola de samba.

Não somos teólogos nem advogados. Somos cientistas. É por isso que, a fim de nos posicionarmos a favor da arte, da laicidade e da liberdade de expressão, elaboramos uma singela "resposta científica" à nota da FPE. Se os sambistas incomodaram os evangélicos fundamentalistas por multiplicarem as entidades, apresentaremos um ponto de vista cético que trabalha com a subtração: a possibilidade de não existir nem Pai, nem Filho, nem Espírito algum.

 

Pai

Há muitos casos em que é impossível demonstrar a veracidade de uma proposição negativa. Não existem evidências científicas de que não há vida em outros planetas, de que não existe um mosassauro nadando pelos oceanos ou, como provocava o filósofo britânico Bertrand Russell, de que não um bule de chá orbitando o Sol. Afinal, como os cientistas poderiam provar todas essas "ausências"? Analogamente, reunir evidências de que divindades não existem seria uma tarefa ingrata, infrutífera – e é por isso que os pesquisadores estão mais preocupados com outras questões.

Mas o caso é que, de vez em quando, algumas dessas questões estimulam estudos cujas respostas têm implicações teológicas interessantes. Por exemplo, a Deus é frequentemente atribuída a criação de todos os seres vivos. Mas hoje, graças a uma série de descobertas científicas, sabemos que as formas de vida atuais surgiram gradualmente, derivadas de outras que já estão extintas, e que todas têm ancestrais em comum. Não há nenhum questionamento científico sério sobre isso, e por uma razão simples: as evidências da evolução das espécies são absurdamente numerosas e coerentes entre si (Dawkins, 2009; Pirula & Lopes, 2019).

Já as narrativas religiosas referentes às nossas origens, além de serem racional e empiricamente frágeis, são mutuamente excludentes e geralmente não dialogam com os avanços da ciência. Pelo contrário, a teoria da evolução refuta a existência de uma divindade que teria planejado e criado, num curto intervalo de tempo, todas as espécies exatamente como são hoje. Na verdade, parece não haver qualquer fenômeno – seja ele físico, químico, biológico ou psicológico – cuja explicação científica/naturalista seja menos plausível do que a explicação religiosa/sobrenaturalista.

Obviamente, há muitas questões ainda não respondidas pela ciência. Por exemplo, não conseguimos demonstrar experimentalmente (por enquanto, pelo menos) como processos inorgânicos podem dar origem à vida. Mas não temos razão alguma para esperar que a resposta correta virá de alguma religião. Precisaríamos encontrar evidências extraordinárias para abraçar uma alegação religiosa/sobrenaturalista cuja finalidade é explicar algum fenômeno natural – e afirmações como "Deus fez" ou "É um mistério de Deus" não explicam nada.

É preciso ressaltar que não estamos tentando provar a inexistência de divindades. Isso nem seria possível. Pode até ser que algum deus exista e interfira timidamente no curso dos acontecimentos, mas suas digitais jamais foram detectadas pelos cientistas. Nem mesmo as experiências pessoais – como as curas espirituais – são úteis para se investigar a existência de milagres divinos, pois elas raramente são replicáveis e sabemos que as pessoas frequentemente se confundem ou mentem sobre isso (Orsi, 2021; Shermer, 2011; Wiseman, 2020). E, ainda que uma divindade inerte ou indiferente esteja se escondendo por aí – como aquela apregoada pela filosofia deísta do século 18, que propunha um deus que teria “dado partida” no Universo e se retirado em seguida  –, isso não conflita com o pressuposto científico de que o mundo funciona por conta própria, sem necessidade da supervisão de um Pai Celestial.

 

Espírito

Também não há evidências de que espíritos existam. Em primeiro lugar, os avanços das neurociências têm fortalecido cada vez mais a tese de que a mente é inteiramente estruturada pela atividade do encéfalo (Harris, 2015; Damásio, 2015; Wiseman, 2020). Parece não haver um "fantasma na máquina". Viemos do pó, somos pó e permaneceremos pó – este é o melhor palpite que a ciência nos permite dar, pelo menos.

Em segundo lugar, as aparentes manifestações de demônios, de espíritos e do próprio Espírito Santo podem ser experiências totalmente psicológicas. Por exemplo, em seu "Livro dos Milagres", Orsi (2021) descreve hipóteses científicas que visam explicar fenômenos como o dom de falar em línguas estranhas, a possessão demoníaca e a aparição de Jesus a Paulo na estrada de Damasco. Mesmo que a ciência ainda não explique toda a variedade de eventos comumente atribuídos ao sobrenatural, isso nem de longe significa que as alternativas religiosas sejam verdadeiras.

 

Filho

Sobre Jesus, os historiadores parecem não hesitar: ele existiu! Mas isso não significa que sejam verdadeiras as alegações de eventos sobrenaturais associadas à sua vida, tais como o nascimento virginal, os milagres e a ressurreição. Além de apresentarem relatos impossíveis de serem verificados, os Evangelhos provavelmente não foram escritos por testemunhas oculares. Nesse sentido, existe apenas fé na afirmação de que Jesus era O Filho de Deus. Conforme defendem pesquisadores como Bart D. Ehrman (2014a, 2014b), o judeu nazareno foi um profeta que sequer acreditava ter natureza divina. Somente no Evangelho de João ele parece se identificar com o Pai – mas esse é o texto "apostólico" com menos confiabilidade histórica.

Temos todas as razões para crer que Jesus tenha sido concebido como qualquer outro ser humano do seu tempo, e não há razões históricas para aceitar as alegações extraordinárias atribuídas a ele. Ao lidar com a Bíblia, historiadores procuram separar minuciosamente o joio do trigo. Há um Jesus histórico e um Jesus da fé. Abstraindo questões de gosto pessoal, apego emocional ou condicionamento cultural, a evidência disponível indica que é racional aceitar apenas a existência do primeiro.

 

Trindade

Sem evidências de que existem um Pai, um Filho de Deus e um Espírito Santo, a doutrina da Trindade é uma crença religiosa como qualquer outra – nem melhor, nem pior. E, como toda teologia, ela resulta de um processo de construção histórica. Em O que Jesus Disse? O que Jesus não disse? Quem mudou a Bíblia e por quê, Bart D. Ehrman (2015) comenta que a única base bíblica explícita da doutrina da Trindade é uma adulteração, ou seja, uma modificação tardia sofrida pelo texto.

Em 1 João (5:7-8), muitas bíblias contêm algo mais ou menos assim: "Porque três são os que testificam no céu: o Pai, a Palavra, e o Espírito Santo; e estes três são um. E três são os que testificam na terra: o Espírito, a água e o sangue; e estes três concordam num". No entanto, a primeira frase não é encontrada em manuscritos gregos anteriores ao século 12. Não havia Pai, Palavra nem Espírito Santo ali. Não havia Trindade. A fim de reforçar a crença de que Jesus – representado nesse versículo como "a Palavra" – era o próprio Deus de Israel, um escriba (ou um grupo deles) teria decidido fazer com que 1 João (5:7-8) passasse a dizer o que eles gostariam de ler.

Não, a doutrina da Trindade não constava nos textos originais. Não é por acaso que ela "foi amplamente discutida no cerne da Igreja Cristã e defendida como dogma após alguns Concílios", como comentam os parlamentares evangélicos em sua nota. Até o século 4, os cristãos se dividiam sobre a natureza de Jesus, e a Bíblia não dava muito suporte àqueles que acreditavam em sua divindade. Disputas teológicas e políticas precisaram entrar em cena.

 

Justiça

Em vez de propor um novo Concílio, a Gaviões da Fiel aplaudiu a diversidade, cantou sobre o amor e reverenciou a tolerância religiosa. Isso é civilidade. Isso é arte. Isso é liberdade de expressão.

A FPE repudiou o samba-enredo e ameaçou processar a escola de samba, mas representar Jesus artisticamente não é crime, e a doutrina da Trindade não é ato ou objeto de culto para ser vilipendiada. Tampouco houve escarnecimento de fiéis ou da fé cristã. A Gaviões apenas representou artisticamente o sincretismo religioso que pulsa no coração de tantos brasileiros há séculos. No nosso entendimento, depois dessa nota, os sambistas têm muito mais razões para acionar a Justiça do que a FPE.

E, é claro, nem a Gaviões nem nós desejamos reformular a doutrina da Trindade. Ainda assim, tanto eles quanto nós temos o direito de refletir artística ou cientificamente sobre qualquer crença (religiosa ou de outro tipo) e apresentar os resultados dessas reflexões ao público. Não vivemos em uma teocracia autoritária, ditatorial.

O cristianismo não está acima de tudo e de todos. É possível que exista só um Pai, um Filho e um Espírito Santo; é possível que haja Pais, Filhos, Espíritos e Santos; e é possível que não exista nada disso. Nenhuma dessas posições deve ser silenciada. Precisamos vigiar para que a arte, a laicidade, a liberdade de expressão, a ciência e a tolerância religiosa não sejam injustamente ameaçadas.

 

Daniel Gontijo é graduado em Psicologia, Dr. em Neurociências, divulgador científico no YouTube e professor no Instituto Ponto Azul

Pirula é biólogo, Dr. em Zoologia na área de Paleontologia, youtuber de divulgação científica e ceticismo

 

 

REFERÊNCIAS

Damásio, A. (2015). O mistério da consciência: Do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Companhia das Letras.

Dawkins, R. (2009). O maior espetáculo da Terra: As evidências da evolução. São Paulo: Companhia das Letras.

Ehrman, B. D. (2014a). Jesus existiu ou não? Rio de Janeiro: Agir.

Ehrman, B. D. (2014b). Como Jesus se tornou Deus. São Paulo: LeYa.

Ehrman, B. D. (2015). O que Jesus disse? O que Jesus não disse? Quem mudou a Bíblia e por quê. Rio de Janeiro: Agir.

Harris, S. (2015). Despertar: Um guia para a espiritualidade sem religião. São Paulo: Companhia das Letras.

Orsi, C. (2021). O livro dos milagres: O que de fato sabemos sobre os fenômenos espantosos da religião. São Paulo: Editora Unesp Digital.

Pirula, & Lopes, R. J. (2019). Darwin sem frescura: Como a ciência evolutiva ajuda a explicar algumas polêmicas da atualidade. Rio de Janeiro: HarperCollins.

Shermer, M. (2011). Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas: Pseudociência, superstição e outras confusões dos nossos tempos. São Paulo: JSN Editora.

Wiseman, R. (2020). Paranormalidade: Por que vemos o que não existe? Rio de Janeiro: BestSeller.

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