A conta chegou no clima?

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5 out 2023
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Um dos grandes desafios na luta contra o negacionismo climático tem sido demonstrar a ligação entre eventos extremos e o aquecimento global provocado pela atividade humana. Apesar dos seguidos alertas da comunidade científica de que o aumento na temperatura média do planeta e as consequentes mudanças climáticas levariam a uma ocorrência mais frequente e/ou severa de fenômenos como ondas de calor, secas, tempestades e inundações, não faltaram vozes a alegar que "furacões sempre aconteceram", que "não é de hoje que chove muito ali", ou que "acolá sempre teve estiagem". Fora os que apelam para a falácia da evidência anedótica, confundindo tempo com clima, como se um dia frio num local contrariasse o aquecimento global - e invernos mais rigorosos não fossem outro sinal das mudanças climáticas.

Deste problema surgiu o campo de estudos de atribuição de eventos climáticos extremos. Também chamado de "ciência da atribuição", teve seus atos inaugurais ainda nos anos 1970, quando o oceanógrafo e climatologista alemão Klaus Hasselmann criou os primeiros modelos associando tempo e clima e, posteriormente, métodos para identificar o impacto de variações naturais e causadas pela Humanidade no sistema climático da Terra. Por seu trabalho, Hasselmann foi um dos agraciados com o Prêmio Nobel de Física de 2021.

Mas os primeiros estudos formais de atribuição, com revisão por pares, só vieram a público já nos anos 2000. Em janeiro de 2004, artigo publicado na prestigiosa revista Nature foi um dos pioneiros ao indicar que o aquecimento global estaria por trás da onda de calor sofrida pela Europa no verão do ano anterior. No mesmo mês, outra pesquisa publicada no periódico Geophysical Research Letters questionava se o evento extremo provavelmente se tornaria o "novo normal" do continente. Até que, ainda em dezembro de 2004, um terceiro estudo, novamente na Nature, apontava diretamente para a contribuição humana para a ocorrência do fenômeno.

De lá para cá, centenas de estudos de atribuição já foram publicados, e até uma iniciativa internacional sobre o assunto lançada, a World Weather Attribution (WWA). Criada em 2015, ela reúne cientistas de instituições como o Imperial College de Londres, o Real Instituto Meteorológico da Holanda, o Laboratório de Ciência do Clima e do Meio Ambiente da França e o Centro de Clima da Cruz Vermelha e Crescente Vermelho que, trabalhando em conjunto com climatologistas e pesquisadores dos países e regiões afetados por eventos extremos, buscam determinar a dimensão da influência humana na frequência e intensidade de sua ocorrência. É por isso que, em geral, os estudos de atribuição apresentam seus resultados como probabilidades e tempos de retorno, isto é, quanto tempo teríamos que esperar para ver aquele fenômeno se repetir.

 

A ciência

Para isso, os cientistas seguem uma série de passos. Primeiro, é preciso escolher que evento estudar. Desastres naturais, infelizmente, não são raros, e quase todo dia há notícias de algum acontecendo em alguma parte do mundo. Assim, no caso da WWA, são seguidos critérios como quantidade de mortes, ou quantas pessoas foram afetadas em números absolutos ou em proporção da população do local.

Além disso, nem todos eventos climáticos extremos são passíveis de serem objetos de estudos de atribuição, pelo menos com a metodologia atual. Limitações espaciais e temporais impedem, por exemplo, análise de fenômenos pontuais como a recente tempestade que atingiu Nova York, com o bairro nova-iorquino do Brooklyn recebendo, em apenas três horas, a chuva esperada para um mês inteiro. Inversamente, áreas muito grandes e períodos muito longos dificultam separar o que é influência das mudanças climáticas provocadas pela Humanidade e o que é a variabilidade natural.

Assim, um dos passos mais importantes é a definição do evento que será estudado. Isso inclui a variável meteorológica, os limites geográficos e intervalos de tempo, de forma a evitar vieses de seleção, que podem ter grande influência nos resultados. No caso da onda de calor recorde de 2003 na Europa, por exemplo, o estudo original levou em conta a temperatura média no continente ao longo de todo o verão no Hemisfério Norte (junho a agosto), chegando a um alto tempo de retorno, com a previsão de que até 2040 mais da metade dos verões serão mais quentes do que o de 2003. Este, por sua vez, até o fim do século seria considerado um verão anormalmente frio.

outro estudo de 2016, que se concentrou nos dez dias mais quentes apenas em Londres e Paris, detectou impactos mais específicos e graves, apontando a influência humana como responsável por um aumento de 70% no risco de vida na capital francesa e de 20% na capital inglesa, durante a onda de calor de 2003 na Europa, que estimativas indicam ter provocado mais de 70 mil mortes prematuras no continente.

Definido o evento, é hora da análise, que atualmente envolve o uso simultâneo de três métodos básicos. No primeiro, dados do mundo real, como registros históricos de estações meteorológicas, ajudam a avaliar o quanto o evento extremo foi incomum, e a identificar tendências de sua repetição e intensificação. Já simulações usando diferentes modelos climáticos permitem aos cientistas observar quantas vezes aquele evento se repete nas condições atmosféricas atuais, com maior concentração de gases do efeito estufa, e quantas ele ocorreria se nenhuma emissão destes gases tivesse ocorrido desde o fim do século 19, permitindo isolar a influência humana no clima.

Depois, novas simulações, com diferentes modelos climáticos, levam em conta o aumento gradativo na concentração atmosférica dos gases-estufa, ajudando novamente a identificar tendências e isolar ainda mais o impacto da ação humana. Por fim, todas estas análises são combinadas, promovendo resultados mais robustos e confiáveis aos estudos de atribuição.

 

A prática

Todos estes passos também fazem com que alguns tipos de eventos extremos possam ser mais facilmente ligados às mudanças climáticas do que outros. Alvos dos pioneiros estudos de atribuição, as ondas de calor estão ficando tão comuns que até os relatórios mais recentes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC) já são taxativos em associar os fenômenos ao aquecimento global, com o capítulo sobre as bases físicas de sua sexta edição, lançado em 2021, afirmando que "há uma alta confiança que o aumento na frequência e severidade de extremos de calor é devido às mudanças climáticas provocadas pelos humanos".

"Alguns eventos extremos recentes seriam extremamente improváveis de acontecer sem a influência humana no sistema climático", continua o texto, com previsões de que ondas de calor que teriam ocorrido apenas uma vez a cada dez anos no período pré-industrial agora acontecem 2,8 vezes e são 1,2 ºC mais quentes, e se a temperatura média do planeta subir 2 ºC elas vão ocorrer 5,6 vezes a cada dez anos, ou seja, praticamente ano sim, ano não, e serão 2,6 ºC mais quentes. Pior, ondas de calor ainda mais severas, que aconteceriam apenas uma vez a cada 50 anos antes da Revolução Industrial, já devem ocorrer 4,8 vezes no mesmo período, e com 2 ºC de aquecimento global serão 13,9 vezes mis comuns, e 2,7 ºC mais quentes.

Chuvas intensas são outro fenômeno cuja atribuição também é mais clara, muito em função de uma fórmula física conhecida como equação Clausius-Clapeyron, segundo a qual para cada 1 ºC que a atmosfera fica mais quente, ela se torna capaz de reter 7% mais de água, na forma de vapor. E mais água na atmosfera é mais chuva que vai cair. Tanto que as recentes chuvas devastadoras na Grécia e especialmente na Líbia associadas à tempestade Daniel foram alvo do último estudo de atribuição feito pela WWA. No caso da Líbia, a quantidade chuva foi tamanha e tão sem precedentes que os modelos indicam que ela não aconteceria não fossem as mudanças climáticas, com um tempo de retorno calculado em uma vez a cada 1,9 mil anos ou mais.

Com furacões, tufões e ciclones a questão é similar. Embora os cientistas não estejam observando um aumento no número total de tempestades deste tipo, o aquecimento global provavelmente está, sim, contribuindo para que ganhem intensidade, como acontece com as chuvas, e os grandes ciclones se tornem mais frequentes. Um estudo de atribuição que analisou 15 grandes furacões que atingiram o Atlântico Norte nos últimos anos - como Katrina, Irma e Maria -, por exemplo, calcula que as mudanças climáticas aumentaram entre 4% e 9% as precipitações associadas a esses fenômenos, com cenários futuros de aquecimento global apontando para elevações que podem chegar à faixa de 25% a 30%.

Já nas secas e queimadas e incêndios florestais associados ao tempo mais seco, a influência das mudanças climáticas induzidas pela Humanidade é mais difícil de isolar. No caso das secas, por exemplo, elas podem se dar tanto pela falta de chuvas quanto pela sua concentração em poucos dias, com a água escoando rapidamente pelo solo árido, rumo aos rios e oceanos. Apesar disso, em algumas regiões do mundo já se observa um aumento de frequência que pode ser atribuído às mudanças climáticas, com o relatório do IPCC apontando como problemáticos o Oeste da América do Norte, Ásia Central e o leste do continente, o entorno do Mediterrâneo, grandes partes da África Central, oeste e sul do continente, o nordeste da América do Sul e o sul da Austrália.

Note-se que a Amazônia, que enfrenta nova seca histórica, não está entre estas áreas. Assim como em 2010, a maior seca já registrada na região até agora, os cientistas apontam para uma combinação entre temperaturas anormalmente altas das águas do Atlântico norte e o fenômeno do El Niño, caracterizado pelo aquecimento das águas do Oceano Pacífico.

 

ATUALIZAÇÃO:

Menos de uma semana após a publicação deste texto, a WWA divulgou nesta terça-feira, 10 de outubro de 2023, estudo que aponta a "forte influência" das mudanças climáticas na onda de calor que atingiu o centro-sul do Brasil e outras áreas da Argentina, Paraguai e Bolívia no mês passado. São Paulo, por exemplo, registrou no dia 30 a temperatura mais alta para o mês de setembro desde o início da coleta de dados na estação do Mirante de Santana, em 1943: 37,1º C. Antes disso, e apesar de ainda ser início da primavera, em 25 de setembro Belo Horizonte já tinha registrado o dia mais quente de sua história, com 37,1º C.

Segundo os pesquisadores, as análises indicam que a ação humana elevou a intensidade desta onda de calor entre 1,4 e 4,3 graus Celsius. Já quanto à probabilidade de sua ocorrência, os cálculos foram menos definidos, mas apontam um aumento de pelo menos 100 vezes no risco de fenômenos do tipo, definido como de aproximadamente um a cada 30 anos no clima de hoje.

Com a continuidade do aquecimento global, no entanto, tanto a severidade quanto a frequência destas ondas de calor vão aumentar ainda mais. De acordo com as projeções do estudo, com a elevação da temperatura do planeta a 2 graus Celsius acima da do período pré-industrial, uma onda de calor assim será outras cinco vezes mais provável, e outro 1,1 a 1,6 grau Celsius mais quente.

Por fim, os cientistas afirmam que embora o El Niño tenha influenciado os padrões de tempo de grande escala na região, sua contribuição direta para os extremos de temperatura vistos na onda de calor foi pequena quando comparada ao impacto das mudanças climáticas.

 É, talvez esta atualização também devesse remover o ponto de interrogação do título do texto...

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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