A mentira como ferramenta da ciência

Dossiê Questão
4 abr 2022
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Padrão ouro nas pesquisas de novos medicamentos, os ensaios clínicos randomizados duplo cegos controlados (RCTs, na sigla em inglês) pressupõem a divisão aleatória dos participantes em grupos os mais homogêneos entre si em características como gênero, idade, comorbidades, etc. (daí o “randomizados”), que então, sem que médicos ou pacientes saibam (daí o “duplo cego”), receberão ou não o remédio estudado (daí o “controlado”). No caso de fármacos, este controle geralmente é feito com a administração de um chamado “placebo”, uma pílula, cápsula ou qualquer outra apresentação com as mesmas características físicas (formato, cor etc) do medicamento em questão, mas sem qualquer substância ativa, ou seja, inócuo (algo como uma drágea homeopática).

Este tipo de dissimulação não só proporciona o cegamento como a possibilidade de observar se qualquer evolução positiva no estado dos participantes é fruto não da ação do remédio, mas da incrível capacidade humana de experimentar melhoras reais de sintomas apenas com a sugestão de receber tratamento. Conhecida como “efeito placebo” (do latim placere, ou “agradar”), esta capacidade é tão poderosa que, por milênios, foi a base de ação de muitas práticas clínicas.

“Um dos médicos mais bem-sucedidos que conheci me assegurou que usou mais ‘pílulas de pão’, gotas de água colorida e pó de cinzas de nogueira (em sua carreira) que todos outros remédios somados”, relatou o ex-presidente americano Thomas Jefferson (1743-1826) em carta a um amigo médico em 1807. “Foi certamente uma fraude piedosa”.

Nos ensaios clínicos modernos, no entanto, ninguém está sendo enganado ou vítima de fraude, desde que seguidos os princípios da Declaração de Helsinque. Promulgada pela Associação Médica Mundial (WMA, na sigla em inglês) em 1964, na esteira das atrocidades cometidas por médicos e cientistas japoneses e nazistas na Segunda Guerra Mundial, e com diversas revisões desde então, a Declaração de Helsinque visa regular experimentos envolvendo seres humanos tanto do ponto de vista ético quanto de segurança.

Para começar, entre suas diretrizes principais está a de que a participação na pesquisa deve ser voluntária e sob consentimento informado, isto é, com o conhecimento pelo paciente “dos objetivos, métodos, fontes de financiamento, quaisquer possíveis conflitos de interesse, aflições institucionais do pesquisador, os benefícios esperados e potenciais riscos do estudo e o desconforto que ele possa provocar”. Mais que isso, porém, a última revisão da declaração, acordada em Assembleia Geral da WMA realizada em Fortaleza, Ceará, em 2013, incluiu toda uma seção dedicada ao uso de placebos, com provisões para assegurar que a não intervenção não constitua risco de “danos graves ou irreversíveis” aos participantes e recomendando “extremo cuidado” para “evitar abuso desta opção”, além de garantia de acesso, caso a intervenção se mostre benéfica.

 

 

Editores e cobaias

Se na pesquisa médica a linha do consentimento é clara (embora algumas vezes continue a ser desrespeitada, como no recente caso dos experimentos com a proxalutamida para tratamento da COVID-19 no Brasil), em outros campos – e especialmente nas Humanidades – os limites da ética no uso da dissimulação e do engano como ferramentas da ciência vão ficando mais tênues. Em alguns casos, o engano pode ser parte da própria estrutura do experimento, sem o qual ele não seria possível, e portanto torna-se mais “aceitável”. Por exemplo, quando o ardil provê um tipo de “cegamento” quanto à verdadeira natureza de experimentos em psicologia social. Ou pode ser encarado como um “mal menor” se serve a um “propósito maior”, como ajudar no processo de autocorreção da ciência, seja pela revelação de falhas no sistema de revisão por pares ou pela denúncia de periódicos predatórios.

Exemplos deste último tipo de uso do engano como ferramenta chamaram a atenção e dividiram a comunidade científica nas últimas décadas no contexto do que ficou conhecido como a “Guerra das Ciências”. Deflagrado nos anos 1990, este debate contrapôs os adeptos do chamado “realismo científico”, com sua defesa da capacidade da ciência em produzir um conhecimento objetivo da realidade, aos pensadores da filosofia pós-modernista construtivista, com sua rejeição da objetividade científica e defesa da influência da política, economia e sociologia na produção e desenvolvimento de teorias científicas.

Um dos marcos desta “guerra” é o que ficou conhecido como o “Escândalo Sokal” (“Sokal Affair”, em inglês). Em 1996, Alan Sokal, professor de física da Universidade de Nova York e da University College London, crítico da visão pós-modernista da prática científica, submeteu artigo de sua autoria no periódico acadêmico Social Text, voltado a estudos e debates envolvendo cultura e pós-modernidade.

Intitulado “Transgressing the Boundaries: Towards a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity” (“Transgredindo Fronteiras: Por uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica”, em tradução livre), o artigo foi publicado pelo Social Text justamente em uma edição dedicada à “Guerra das Ciências” como um exemplo da “rendição” das ciências naturais às demandas da pós-modernidade – posteriormente, os editores do periódico, que à época não adotava revisão por pares, contaram tê-lo visto como “uma mudança de posição, ou uma flexibilização da resolução intelectual” de Sokal, com o artigo representando “uma sincera tentativa de um cientista profissional em buscar algum tipo de validação da filosofia pós-moderna para os desenvolvimentos em seu campo”.

O problema é que o texto é um amontoado de clichês pós-modernistas entremeados com conceitos das ciências naturais, que chega a negar a própria existência da realidade física – que não passaria de “um construto social e linguístico” –, na verdade uma farsa montada por Sokal. Seu objetivo era denunciar a falta de rigor intelectual de muitas publicações acadêmicas no campo das Humanidades, em especial as dedicadas a “estudos culturais”, conforme revelou o físico semanas depois, em relato publicado na extinta revista literária americana Lingua Franca.

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“Então, para testar os padrões intelectuais correntes, decidi tentar um modesto (e reconhecidamente não controlado) experimento: um importante periódico de estudos culturais norte-americano – cujo coletivo de editores inclui luminares como Fredric Jameson e Andrew Ross – publicaria um artigo deliberadamente temperado de nonsense se (a) ele soasse bem e (b) adulasse as percepções ideológicas de seus editores? A resposta, infelizmente, é sim”, escreveu. “É compreensível que os editores do Social Text não fossem capazes de avaliar criticamente os aspectos técnicos de meu artigo (e é exatamente por isso que eles deveriam ter consultado um cientista). Mas o que é mais surpreendente é que eles prontamente aceitaram meu argumento de que a busca pela verdade na ciência deve ser subordinada a uma agenda política, e o quanto ignoraram a falta de lógica geral do artigo”.

Segundo Sokal, a aceitação de seu artigo pelo periódico foi uma demonstração da “arrogância intelectual” no campo da teoria literária pós-moderna.

“Não é nenhuma surpresa que (os editores do Social Text) não tenham se preocupado em consultar um físico”, afirmou. “Se tudo é discurso e ‘texto’, então o conhecimento do mundo real é supérfluo. Mesmo a Física se torna apenas mais um ramo dos estudos culturais. Se, mais que isso, tudo é retórica e jogos de linguagem, até a lógica interna também é supérflua: uma pátina de sofisticação teórica serve tão bem quanto. Incompreensibilidade se torna uma virtude; alusões, metáforas e trocadilhos substituem evidências e lógica. Meu próprio artigo é, se for alguma coisa, um exemplo extremamente modesto deste bem estabelecido gênero literário. Os editores de Social Text gostaram de meu artigo porque gostaram de sua conclusão: que ‘o conteúdo e metodologia da ciência pós-moderna são um poderoso apoio intelectual para o projeto político progressista’”.

A revelação da fraude por Sokal provocou polêmica na comunidade científica. Enquanto alguns aplaudiam o físico e sua jogada para evidenciar problemas da produção e publicação acadêmica no campo das Humanidades e as tentativas de ingerência da filosofia pós-modernista na condução das pesquisas em ciências da natureza, outros criticavam o caráter anedótico do experimento e o fato de ter feito dos editores do periódico cobaias involuntárias, com as consequentes implicações éticas disso. Problema que foi reconhecido pelo próprio Sokal já no artigo em que relatou o caso, na revista Lingua Franca.

“Claro, não estou cego às questões éticas em torno do meu um tanto heterodoxo experimento. Comunidades profissionais trabalham largamente baseadas na confiança; e a fraude fragiliza esta confiança” admitiu o físico antes de justificar o que o levou a seguir em frente com o experimento: “Mas é importante entender exatamente o que fiz. Meu artigo é um ensaio teórico inteiramente baseado em fontes disponíveis publicamente, todas meticulosamente referenciadas por mim. Todos os trabalhos citados são reais, e todas as citações rigorosamente acuradas. Nenhuma foi inventada”.

O desconforto foi acusado pelos então coeditores do Social Text, Bruce Robbins (na época da Universidade Rutgers e hoje professor do Departamento de Inglês e Literatura Comparada na Universidade de Colúmbia) e Andrew Ross (sociólogo e professor de Análise Social e Cultural da Universidade de Nova York), em artigo que relatam sua visão do caso, publicado no próprio periódico logo após a revelação, por Sokal, de sua fraude.

“Todos ficamos incomodados com os meios traiçoeiros que Sokal escolheu para mostrar seu ponto de vista. Esta violação da ética é uma questão séria em qualquer comunidade acadêmica, e tem consequências danosas quanto acontece na publicação acadêmica”, escreveu a dupla.

 

À caça dos predatórios

Isso não impediu, no entanto, que variações da armadilha de Sokal voltassem a ser usadas nas últimas décadas com diferentes finalidades, e evocando diferentes reações quanto às implicações éticas. Em 2013, por exemplo, o biólogo e jornalista científico americano John Bohannon chamou a atenção para o problema dos chamados “periódicos predatórios” – que publicam artigos “científicos” mediante pagamento por seus autores, muitas vezes sem revisão por pares, ou com um arremedo da prática – na literatura científica, submetendo versões de um falso estudo sobre a suposta descoberta de uma molécula milagrosa capaz de curar câncer a 304 publicações científicas de acesso aberto nos campos de ciências médicas, biológicas ou química.

Embora, nas palavras de Bohannon, o conteúdo dos estudos fosse estruturado de modo que “qualquer revisor com um conhecimento de química de ensino médio e a capacidade de entender um gráfico de dados básico pudesse capturar suas deficiências”, com “falhas científicas tão graves e óbvias que deveriam ser prontamente rejeitados pelos editores”, mais da metade dos periódicos – 157 no total – aceitaram o trabalho para publicação, enquanto apenas 98 recusaram e 49 ainda avaliavam o material quando o jornalista revelou sua impostura em reportagem para a prestigiosa revista científica Science, intitulada “Who’s Afraid of Peer Review?” (“Quem tem medo da revisão por pares?”, em tradução livre).

Diferentemente do que Sokal fez em seu artigo para a Social Text, com citações e referências reais e públicas, e assinando o próprio nome, porém, os estudos submetidos por Bohannon eram inteiramente falsos, dos experimentos descritos aos nomes dos autores e instituições às quais estariam supostamente filiados, num grau extra de impostura que expôs ainda mais ao ridículo os editores dos periódicos que os aceitaram.

Apesar disso, as críticas ao ardil do jornalista se concentraram mais em um possível conflito de interesse, por ele ter focado exclusivamente em expor periódicos de acesso aberto, enquanto produzia reportagem para uma publicação fechada, protegida por paywall – e com uma das assinaturas mais caras da literatura científica moderna. O próprio artigo-denúncia de Bohannon, apesar de originalmente publicado com acesso livre, hoje só pode ser lido por quem se disponha a pagar US$ 30 (cerca de R$ 150) pelo arquivo digital.

Dois anos depois, Bohannon voltaria à carga, desta vez tendo como alvo a má ciência nos campos da nutrição e dietas e a divulgação sensacionalista de seus resultados pela imprensa generalista, por meio de suas editorias de ciência.

Sob o pseudônimo “Johannes Bohannon” e ao lado de três pesquisadores também usando nomes falsos do fictício “Institute of Diet and Health”, na Alemanha, o jornalista assinou artigo sobre um estudo deliberadamente ruim e mal conduzido, que ao final afirmava ter descoberto que o consumo diário de uma barra de chocolate com alto teor de cacau ajudaria na perda de peso, e o enviou para 20 periódicos predatórios de acesso aberto. Vários deles aceitaram, mas foi o International Archives of Medicine que acabou publicando o paper, intitulado “Chocolate with high Cocoa content as a weight-loss accelerator” (“Chocolate com alto teor de cacau como um acelerador da perda de peso”, em tradução livre), em maio de 2015.

Tendo a “chancela” da publicação do estudo em um periódico científico “com revisão por pares”, Bohannon produziu um comunicado à imprensa (press release) incensando a “descoberta” e o distribuiu para vários veículos da mídia, que prontamente embarcaram na história com manchetes do tipo “emagreça comendo chocolate!”. Entre eles, os tabloides alemão Bild, australiano Daily Mail e britânico Daily Star, o jornal irlandês Irish Examiner, o indiano Times of India e os sites do Huffington Post de Alemanha e Índia, além de um programa de TV matinal da Austrália e outro nos EUA, muitos limitando-se a reescrever e/ou reproduzir o texto do comunicado.

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E apesar de o “alter ego” de Bohannon ter sido contatado por alguns repórteres para repercutir o estudo, a maioria se limitou a fazer perguntas superficiais, passando direto pelas suas muitas limitações e pela fragilidade de seus resultados.

“Quase ninguém perguntou quantas pessoas foram testadas, e ninguém relatou este número. Nenhum repórter parece ter contato um cientista independente. Nenhum foi citado”, conta Bohannon em reportagem sobre o caso, no site Gizmondo. “Estas publicações, embora atraiam grandes audiências, não são exatamente modelos da virtude jornalística. Então, não é surpresa que simplesmente agarrassem um pedaço de isca digital para a manchete, colhessem as pageviews e seguissem em frente”.

Quanto às implicações éticas de mentir deliberada e abertamente para os jornalistas que o consultaram, no entanto, nenhuma palavra. E, assim, deste ponto de vista o episódio se tornou apenas mais um da longa lista de “barrigas” da imprensa na cobertura de ciência, não muito diferente da história do “boimate”, “pegadinha” de primeiro de abril que foi parar nas páginas da prestigiada revista brasileira Veja em 1983 que virou um clássico do anedotário jornalístico científico brasileiro, e uma lição de humildade e alerta para os profissionais que se aventuram na área.

 

Os “estudos do ressentimento”

Esta tolerância ao engano como ferramenta de correção da ciência, porém, parece ter encontrado um limite quando envolve temas “sensíveis” no campo das Humanidades, como gênero, raça e sexualidade, em especial no contexto dos chamados “estudos culturais”, ou identitários. É o que sugere a repercussão e desfecho de uma recente “operação” do tipo que ficou conhecida no meio acadêmico justamente como “Sokal Squared” (algo como “Sokal ao quadrado” em inglês), executada pelo filósofo Peter Boghossian, então professor da Universidade Estadual de Portland (EUA), com o matemático James A. Lindsay e a escritora Helen Pluckrose.

No início de 2017, Boghossian e Lindsay já haviam usado artifício semelhante para publicação, sob os pseudônimos “Jamie Lindsay” e “Peter Boyle”, do inexistente “Southeast Independent Social Research Group”, de um artigo propositalmente ridículo e absurdo – “O pênis conceitual como um construto social” (“The conceptual penis as a social construct”, no original em inglês) - no periódico Cogent Social Sciences. Nele, argumentavam que o pênis não deveria ser visto apenas como o órgão genital masculino, mas também uma “construção social prejudicial”, símbolo de uma “hipermasculinidade tóxica” que seria responsável até pelas mudanças climáticas.

“Sokal expôs o fascínio com a vaidade acadêmica que caracteriza todo projeto acadêmico pós-modernista. Nosso objetivo era menor, porém mais pontual”, escreve a dupla em relato do caso que eles próprios classificaram como uma “fraude ao estilo de Sokal”, publicado na edição de maio de 2017 da Skeptic Magazine. “Pretendíamos testar a hipótese de que a adulação da arquitetura moral da esquerda em geral, e da ortodoxia moral dos estudos de gênero em particular, é de longe o maior determinante para publicação em um periódico acadêmico neste campo. Isto é, procuramos demonstrar que o desejo por validação de uma certa visão moral do mundo poderia sobrepor-se à avaliação crítica necessária de legitimidade acadêmica. Particularmente, suspeitávamos que os estudos de gênero estão academicamente minados por uma predominante e quase religiosa crença de que a masculinidade é a fonte de todo mal. E, pelas evidências, nossas suspeitas eram justificadas”.

Acontece que o Cogent Social Sciences é um periódico de acesso aberto que cobra dos autores pela publicação de seus artigos ao estilo dos predatórios e com revisão por pares “amiga” denunciados por Bohannon – no caso do artigo sobre o “pênis conceitual”, ela saiu por módicos US$ 625 (cerca de R$ 3,1 mil, ao câmbio atual), e foi efetivada apesar de suas múltiplas deficiências. Diante disso, Boghossian e Lindsay não puderam creditar a publicação exclusivamente ao que veem como falta de integridade intelectual e vieses ideológicos e morais nos estudos de gênero que pretendiam denunciar. Talvez o periódico estivesse aceitando mais o dinheiro deles do que o artigo. E também poderia ser apenas mais um exemplo extremo das possíveis falhas no sistema de revisão por pares.

Assim, entre o fim de 2017 e começo de 2018, o agora trio de pesquisadores produziu mais 20 artigos falsos, propositalmente absurdos, e os enviaram para o que consideraram periódicos relevantes e influentes nas linhas temáticas dos subcampos das Ciências Humanas de “estudos culturais”, “estudos de identidade” e “teoria crítica”, que apelidaram de “Estudos do Ressentimento” (“Grievance Studies”, no original em inglês) por seu “objetivo comum de problematizar aspectos da cultura em detalhes ínfimos, numa tentativa de diagnosticar desequilíbrios de poder e opressão baseados na identidade”.

A ideia era fazer uma “etnografia” da área a partir da discussão e aceitação de teses ridículas como o comportamento de cães e donos em parques para cachorros e sua relação com a cultura do estupro e a homofobia (artigo chegou a ser “premiado” como um dos destaques do ano pelo periódico que o publicou, Gender, Place and Culture); uma paródia feminista de um trecho de “Mein Kampf” (“Minha luta”), o manifesto nazista original de Adolf Hitler; ou uma crítica ao caráter machista e patriarcal da astronomia ocidental, com uma defesa da inclusão na ciência astronômica de “astrologias” (sim, a mesma dos horóscopos) feministas, gays e indígenas, entre outros.

Dos 20 artigos, oito traziam autor e afiliação reais – Richard Baldwin, do Gulf Coast State College, acadêmico que concordou em “emprestar” suas credenciais para o experimento, mas não participou da elaboração de nenhum dos artigos –, enquanto nos 12 restantes tanto autores quanto instituições que pareciam filiados eram totalmente fictícios. Do total, sete acabaram aceitos para publicação, sete ainda estavam em revisão e os seis últimos tinham sido recusados pelos respectivos “periódicos-alvo” quando da revelação do esquema pelo trio, em outubro de 2018, precipitada pela repercussão e posterior descoberta da fraude justamente do “premiado” estudo envolvendo parques caninos e a cultura do estupro, que virou matéria em The Wall Street Journal em outubro daquele ano.

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“Com dois grandes veículos jornalísticos e (até então) dois periódicos pedindo provas das identidades de nossos autores, a ética se desviou de uma defensível necessidade de investigação para mentir descaradamente”, contam no relato da revelação da operação, publicado na revista digital Areo Magazine (da qual Pluckrose era editora). “Não achávamos que isto era certo e decidimos tornar público nosso projeto. Como resultado, contamos a verdade ao Wall Street Journal no começo de agosto e começamos a preparar um sumário o mais rápido possível, mesmo ainda tendo diversos artigos avançando de modo promissor nos processos de revisão”.

 

Repercussão e punição

O que o trio não contava, porém, foi com a forte reação ao seu “experimento” de todos os lados. Com a “Guerra das Ciências” transmutada em “guerra cultural” no cenário atual de crescente polarização política e ideológica, em especial nos EUA, a “direita” do espectro enquadrou o projeto como uma prova de como a academia, a ciência e, por consequência, a produção de conhecimento americanas estão tomadas pela “esquerda”. Generalização forçada e intelectualmente desonesta, mas mesmo assim usada como munição para reforçar seu discurso negacionista em campos sem a mínima relação com as áreas cobertas pelos periódicos atingidos, como mudanças climáticas.

“A razão pela qual Lindsay e colegas conseguiram executar uma versão tão maciça do Escândalo Sokal 22 anos depois é que desde então departamentos inteiros de universidades foram tomados por acadêmicos tão compromissados com políticas identitárias e ativismo que publicarão quase qualquer coisa que sirva à sua agenda política”, afirmou reportagem sobre o caso publicada na revista de extrema-direita americana The Federalist poucos dias depois de sua revelação e ligando-o à polêmica indicação para a Suprema Corte dos EUA de Brett Kavanaugh, acusado de assédio sexual por uma colega de escola, pelo então presidente americano Donald Trump.

Enquanto isso, à “esquerda”, o outro lado do espectro político criticava o trio justamente por dar munição para o discurso anticiência da direita e as discussões sobre gênero e sexualidade.

“Não há nada de errado com acadêmicos colocarem uns aos outros sob escrutínio – isto é saudável e necessário. Mas apesar de suas alegações de estarem fazendo uma crítica em ‘boa-fé’, está claro que Pluckrose, Lindsay e Boghossian na verdade têm como objetivo fragilizar campos aos quais têm objeções políticas – e não acadêmicas”, escreveu Alison Phipps, professora de estudos de gênero da Universidade de Sussex, no Reino Unido, em artigo para o Times Higher Education.

“A revelação da fraude (pelo trio) termina com uma demanda de que todas as grandes universidades revejam várias áreas de estudo (estudos de gênero, teoria crítica racial, teoria pós-colonial e outras disciplinas como sociologia e antropologia) ‘de forma a separar disciplinas produtoras de conhecimento e acadêmicos daqueles gerando sofismas construtivistas’. Esta é uma declaração de arrepiar que certamente vai alimentar ataques da direita aos estudos de gênero”.

As críticas mais contundentes, no entanto, vieram de dentro da própria instituição para qual Boghossian trabalhava na época. Em carta publicada no PSU Vanguard, jornal tocado pelos estudantes da Universidade Estadual de Portland, um grupo de professores e um aluno de doutorado da PSU criticou o trio por desperdiçar o “tempo, esforço e boa vontade de pelo menos 40 revisores e 20 editores” com sua iniciativa. Mais que isso, porém, acusaram Boghossian de “desonestidade acadêmica” e “bullying ao estilo da política dos tempos de Trump”, lembrando seu histórico de provocador nas aulas, para as quais convidava palestrantes com posições polêmicas, pseudocientíficas e negacionistas – nas palavras do próprio Boghossian, “de terraplanistas a apologistas cristãos a céticos do clima e ativistas do Occupy Wall Street”.

“Nada em todo este escândalo sugere outra coisa que não desonestidade acadêmica e total desrespeito por seus colegas”, escreveram os integrantes do grupo, que por medo de retaliações se identificaram apenas com seus cargos na universidade. “É por isso que Boghossian não desenha e conduz estudos para avaliar biologia e gênero – no lugar disso, mantém um padrão de provocação iniciado em anos anteriores com o único objetivo de engrandecimento pessoal. Seu convite para que o ex-engenheiro do Google James Damore nos dissesse porquê mulheres são incapazes de atuar com excelência no campo da tecnologia certamente foi desrespeitoso a todos seus colegas que se identificam como mulheres – Damore se provou precariamente articulado, nada parecido com um acadêmico sério sobre questões de gênero”.

Na carta, o grupo também alertou para os impactos que as ações de Boghossian poderiam trazer para a instituição e suas carreiras:

“Neste contexto, as ‘fraudes’ são simplesmente mentiras vendidas para os periódicos sob o disfarce de artigos. Eles não foram desenhados para criticar, educar ou inspirar mudanças em sistemas falhos, mas para humilhar campos de estudos inteiros enquanto seus autores colhem publicidade para si mesmos, sem terem feito qualquer contribuição acadêmica. Comportamento antiacadêmico crônico e patológico dentro de uma instituição de ensino superior traz publicidade negativa para a instituição, assim como para os acadêmicos honestos que nela trabalham”.

E assim foi. Instada a agir, no início de 2019 a Universidade Estadual de Portland abriu investigação disciplinar de Boghossian – único do trio com uma posição acadêmica - por duas acusações de má conduta científica: inventar dados e conduzir experimentos com seres humanos – no caso, os editores e revisores dos periódicos-alvo da operação – sem autorização e supervisão de um comitê de ética. Apesar do apoio que recebeu de cientistas e acadêmicos renomados como Steven Pinker, Richard Dawkins e o próprio Alan Sokal – que em carta ao então vice-presidente para Pesquisa e Graduação das PSU, Mark McLellan, pediu que Boghossian “não enfrentasse nenhuma ação disciplinar por seu projeto” –, no início de 2019 o professor de filosofia acabou considerado culpado de ambas acusações pelo Comitê Institucional de Revisão (IRB, na sigla em inglês) da universidade, que o puniu com proibição de realizar pesquisas envolvendo seres humanos até que “completasse treinamento e demonstrasse ter entendido como respeitar os direitos de cobaias humanas”, sob pena de demissão se violasse estas determinações.

A polêmica, no entanto, continuou e, pressionado, em setembro do ano passado Boghossian renunciou à sua posição de professor-assistente de filosofia da PSU. Em carta à então reitora da universidade, Susan Jeffords, reclamou da perseguição que teria sofrido antes e depois do episódio, inclusive falsas acusações de agredir sua mulher e filhos, e restrições a seu trabalho.

“Os alunos da Universidade Estadual de Portland não estão sendo ensinados a pensar. No lugar disso, estão sendo treinados para mimetizar a moral de certas ideologias. Docentes e administradores abdicaram da missão da universidade de buscar a verdade, e ao invés disso estimulam a intolerância com opiniões e crenças diferentes”, acusou. “Para mim, os anos que se seguiram (ao caso dos ‘Estudos do Ressentimento’) foram marcados pelo assédio continuado. Cruzava com cartazes pelo campus comigo com um nariz de Pinóquio. Transeuntes cuspiram em mim e me amaçaram enquanto eu me encaminhava para as aulas. Fui informado por alunos que meus colegas diziam para que evitassem minhas aulas. E, claro, fui alvo de mais investigações. Gostaria de poder dizer que o que descrevo não me afetou pessoalmente. Mas teve exatamente os efeitos que pretendiam: uma vida profissional cada vez mais intolerável, e sem a proteção de uma cátedra”.

 

Discussão ética

Com a condenação de Boghossian, ganhou força a noção de imposturas como as dele, e também a original de Sokal, constituem sim violações da ética acadêmica e científica, mesmo que para evidenciar vieses e falhas na própria produção de conhecimento. Outrora apoiador da fraude de Sokal, o biólogo e professor de filosofia da ciência Massimo Pigliucci, da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY), foi um dos que mudou de opinião e se tornaram críticos da estratégia.

“Vejo estes episódios como jogadas publicitárias que provam pouco ou nada”, disse em entrevista por e-mail à Revista Questão de Ciência. “Claro, você ‘pegou’ um editor em particular que não fez seu trabalho direito. E daí? Editores de periódicos científicos legítimos também foram alvos de fraudes bem-sucedidas. Se você quer argumentar que todo um campo acadêmico é sem sentido, você tem que fazer isso da maneira mais difícil, escrevendo artigos, ensaios ou livros em que apresente seu caso a fundo. Por isso também mudei de opinião quanto à fraude de Sokal, e hoje não acho que devesse ter sido realizada. Mas Alan (Sokal) pelo menos foi original, enquanto Boghossiam e outros são apenas imitadores. E Sokal também foi muito honesto quanto às limitações de significado de sua jogada, enquanto Boghossian e Lindsay seguiram em frente e propalaram que prestaram um grande serviço para a causa da verdade. Não, não mesmo”.

Para Pigliucci, também é válida a argumentação de que os editores e revisores de periódicos alvo destas operações são cobaias humanas involuntárias de um experimento.

“Sim, considero fraudes deste tipo antiéticas”, afirmou. “E quando realizadas por acadêmicos, elas devem estar sujeitas às regulamentações padrão que governam experimentos com cobaias humanas”.

E embora concorde que o campo dos estudos identitários enfrente problemas de ordem técnica e mesmo “ideológica”, Pigliucci alerta para uma visão excessivamente “cientificista” de algumas áreas da produção de conhecimento.

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“Todos os campos acadêmicos sofrem de vieses sistêmicos e problemas estruturais, e alguns dos ditos ‘Estudos do Ressentimento’ não são exceções. Eles, por exemplo, tendem a descartar ou subestimar contribuições pertinentes vindas das ciências naturais”, disse. “Nada está além da crítica, mas a crítica pode e deve sempre ser feita considerando cautelosamente, e caridosamente, o que os autores que são nossos alvos de fato escreveram, e porquê. Muitas questões não são quantificáveis, mas a quantificação também não é a única maneira de estudar algo, mesmo dentro das ciências”.

Diante disso, Pigliucci reitera que a denúncia e evidenciação de falhas em campos acadêmicos devem ser feitas dentro das regras e métodos tradicionais do jogo acadêmico, num debate aberto e informado:

“Como disse, é fácil seguir o caminho que Boghossian e Lindsay seguiram. É preciso fazer o trabalho minucioso de engajar em debates com os melhores acadêmicos daqueles campos que se quer criticar e explicar exatamente, e com documentação, onde tais acadêmicos (supostamente) estão errados”.

 

Mentiras instrumentais

Isso não quer dizer, porém, que a dissimulação e a mentira não tenham mais lugar na ciência. Nos estudos em campos como a psicologia social, por exemplo, o engano não só é aceitável como muitas vezes necessário. Um exemplo disso é o clássico estudo sobre obediência e autoridade conduzido pelo psicólogo americano Stanley Milgram na Universidade de Yale, EUA, no início dos anos 1960.

Realizados na esteira dos horrores da Segunda Guerra Mundial, reavivados pelo julgamento, na época, do carrasco nazista Otto Adolf Eichmann, responsável pela logística de deportação de milhões de judeus para campos de extermínio na Europa Oriental, os experimentos de Milgram visavam avaliar se pessoas comuns são capazes de cometer atos hediondos quando sob ordens, argumento lançado pelo ex-oficial da SS em sua defesa, e que já havia sido usado por seus colegas nazistas nos julgamentos de crimes de guerra de Nuremberg.

Para isso, Milgram desenhou uma situação na qual ele ou colegas agiriam como “experimentadores”, supervisionando um estudo sobre aprendizado e memória, no qual os voluntários, atuando como “professores”, leriam uma série de pares de palavras para “alunos” em uma cabine numa sala separada e não visível para eles, testando sua retenção e administrando choques elétricos de crescente intensidade, até níveis claramente indicados como “perigosos” nos aparelhos, a cada erro de associação das palavras. Consultados por Milgram previamente à realização do experimento, psiquiatras e outros especialistas em comportamento humano previam que apenas cerca de 1,2% dos ditos “professores” aplicariam os choques potencialmente fatais em seus “alunos”. O psicólogo americano, no entanto, relatou que até 65% chegaram a esse ponto.

Tudo, no entanto, não passava de uma encenação, desde o “sorteio” que determinava quem seria o “professor” e o “aluno” no experimento – na verdade, “atores” cúmplices de Milgram, ou seus “confederados”, como são conhecidos na área – até os choques elétricos, claro, simulados, para testar a obediência dos voluntários no papel de “professores” a figuras de autoridade. No caso, os “experimentadores”, com seus jalecos brancos e pranchetas supervisionando o processo e instruídos a responder questionamentos dos “professores” se devem continuar a administrar choques com frases curtas e de crescente força de ordem - como “por favor, prossiga”; “o experimento requer que você continue”; “é essencial que você continue”; e “você não tem escolha e precisa continuar”.

“Muitos fenômenos e processos comportamentais que estudamos na psicologia social, se não usarmos alguma forma de engano, basicamente não conseguimos fazer os testes de hipótese”, conta o psicólogo Ronaldo Pilati, professor de Psicologia Social da Universidade de Brasília (UnB). “Para isso, usamos o que chamamos de ‘histórias encobridoras’, como o que Milgram fez com seus ‘professores’ e ‘alunos’. É uma estratégia que busca minimizar a influência no comportamento do participante de uma resposta socialmente desejável. Eu, por exemplo, estudo desonestidade. Se eu falar para as pessoas que os meus experimentos são sobre desonestidade antes de começar a pesquisa, a probabilidade de elas maximizarem sua honestidade naquela situação que criei vai ser potencializada. As pessoas vão ficar atentas a isso, observar o que é que indica na situação algum tipo de comportamento desonesto, ou daquilo que está sendo estudado, e maximizar a forma como vão se apresentar de acordo com a desejabilidade social. Desejabilidade social é a pessoa se comportar do jeito que acha correto naquela situação. Se você dá a oportunidade de uma pessoa para ser desonesta numa situação experimental específica e diz para ela que é isso que está sendo observado, a chance de ela reagir contrário àquilo, ser mais honesta do que efetivamente seria, é muito grande”.

Desta forma, as histórias encobridoras serviriam como algo equivalente ao “cegamento” dos participantes em ensaios clínicos de medicamentos, não só dos voluntários como algumas vezes também dos auxiliares de pesquisa, os “confederados” do pesquisador, cuja atitude em determinadas ocasiões pode influenciar o comportamento dos sujeitos, caso estejam conscientes das reais hipóteses a serem testadas por meio do engano.

“As pesquisas em psicologia social muitas vezes dependem da atuação de um auxiliar de pesquisa, em que é ele que vai interagir com o participante e iniciar a situação social na qual você quer observar o comportamento do participante”, explica. “Então, muitas vezes é importante que o auxiliar do experimento também esteja cego da situação, pois o fato de ele estar consciente de qual é a condição experimental que está atuando pode levar a algumas demandas e trazer direcionamentos nos resultados. É a mesma ideia do cara na pesquisa clínica que vai administrar a substância em teste e não sabe se está aplicando o remédio ou o placebo”.

O objetivo final, resume Pilati, é criar uma situação de “realismo psicológico” de forma a fazer testes de hipótese de comportamentos que mais se aproximem das situações reais que se querem observar, medir e avaliar as reações dos sujeitos.

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“As situações sociais, na maior parte das vezes, sobretudo quando não temos muita familiaridade com elas, podem ser muito ambíguas. Você não sabe exatamente o que é esperado, ou como uma pessoa deve reagir”, lembra Pilati. “Assim, quando a gente quer testar algumas hipóteses específicas em psicologia social, montamos estas histórias encobridoras para criar uma situação social com um aspecto que vai ser ressaltado pelo participante, quando na verdade o que vamos observar é outra coisa no seu comportamento naquela situação experimental”.

O professor da UnB citou como outros exemplos do uso deste tipo de estratégia desde os experimentos clássicos sobre conformidade do psicólogo polonês-americano Solomon Asch – pioneiro da psicologia social que foi orientador de doutorado de Milgram – nos anos 1950 a mais recentes observações do chamado “efeito priming” – basicamente a influência que um estímulo inicial pode ter nas respostas psicológicas posteriores do indivíduo –, como as do psicólogo americano John Bargh, da Universidade de Nova York, em 1996, e posteriores tentativas de replicação por pesquisadores belgas 15 anos depois, em que o “cegamento” ou não do confederado afetou os resultados.

Isso não quer dizer, no entanto, que não existam limitações éticas à utilização do engano nas pesquisas mesmo num campo que ele se mostra tão fundamental como a psicologia social. A divulgação dos experimentos de obediência de Milgram, por exemplo, logo levantou questionamentos sobre o bem-estar psicológico dos voluntários, “obrigados” pela figura de autoridade a administrar o que acreditavam (ou deviam ter atentado que) eram choques elétricos potencialmente danosos ou até fatais em outra pessoa.

“A questão do engano é secular na psicologia. Há mais de um século temos relatos de pesquisas que fazem um uso maior ou menor de uma situação de engano”, conta Pilati. “Então existe todo um protocolo de conduta ética em pesquisa que leva isso em consideração. Na época do Milgram isso não era muito bem desenvolvido ainda. Mas talvez justamente por experimentos como os dele e outros posteriores, alguns mais famosos, outros menos, principalmente a partir das décadas de 1970 e 1980, alguns protocolos de conduta foram sendo estabelecidos quando ao uso de engano”.

Assim, destaca Pilati, dentro destes protocolos o primeiro questionamento que o pesquisador deve fazer é se é possível conduzir seu teste de hipótese sem recorrer a uma situação de engano. Uma opção muito comum em alguns desenhos de pesquisas em psicologia social, usada em substituição ou em conjunto ao engano, exemplifica, é o anonimato nas respostas, em que “a privacidade, ou ao menos a ilusão de privacidade” dos sujeitos quanto os comportamentos ou reações registrados também ajudam a “driblar” o fenômeno da desejabilidade social.

“Mas, se a resposta para esta pergunta for não, um compromisso que o pesquisador precisa ter com os participantes é que, ao final do experimento, assim que possível, um esclarecimento seja feito”, diz. “Então, o engano para o participante neste caso vai acontecer apenas ao longo do processo das sessões experimentais, que em geral levam 15, 20, 30 minutos para serem executadas, quando muito”.

A partir daí, outro ponto importante é avaliar se o engano e sua história encobridora, no decorrer do experimento ou mesmo depois de desvelados ao seu fim, podem gerar algum tipo de estresse psicológico ou riscos à saúde mental dos voluntários que sejam muito maiores do que os experimentados em situações cotidianas. Novamente, um exemplo disso é o próprio experimento sobre obediência de Milgram, que segundo Pilati não seria autorizado pelos comitês de ética atuais nos moldes que foi originalmente realizado, com replicações mais recentes, como a do psicólogo Jerry M. Burger em 2008, fazendo ajustes e limitando parâmetros como a intensidade máxima dos supostos choques – e mesmo assim, conseguindo demonstrar que as pessoas hoje estão tão sujeitas a concordar em cometer atos hediondos sob ordens de uma autoridade como à época de Milgram.

“Isso mostra como é possível pensar em desenhos de pesquisa mais elaborados para minimizar o nível de estresse psicológico dos participantes”, reconhece Pilati.

Por fim, outra questão que o pesquisador precisa pensar e pesar é qual o benefício que aquele teste de hipótese pode trazer para a sociedade, e se o que ele poderá revelar sobre o comportamento humano justifica sua realização, usando o engano ou não.

“Este é outro princípio fundamental da avaliação de riscos do experimento para o voluntário humano”, atenta o professor da UnB.

 

Estudos de auditoria

Outro campo onde o engano se mostrou ferramenta essencial, e por vezes indispensável, da produção de conhecimento é a economia social e seus chamados “estudos de auditoria”, como em pesquisas sobre racismo e sexismo no mercado de trabalho. Exemplo recente disso foi estudo conduzido por economistas das universidades da Califórnia em Berkeley e de Chicago, divulgado em julho do ano passado pelo Escritório Nacional de Estatísticas Econômicas dos EUA.

Começando no fim de 2019, os pesquisadores Patrick Kline e Christopher Walters, de Berkeley, e Evan K. Rose, de Chicago, produziram mais de 83 mil candidaturas falsas para vagas de emprego de entrada (baixa hierarquia) e as enviaram para 108 das maiores empresas americanas de diversos setores. Com os currículos arranjados em pares equivalentes, as características dos candidatos – como idade, gênero, formação e experiências prévias de trabalho – variavam ao acaso, com exceção de seus nomes e sobrenomes, escolhidos para denotar pertencerem às comunidades negras americanas – como Jamal Washington, Lakisha Diggs ou Kareem Booker – ou brancos – como Todd Meyer, Chad Hostetler ou Susan Schmidt.

A pesquisa mostrou que, em média, as pessoas com “nomes negros” tinham menos chances de serem chamadas para entrevistas para a vaga ofertada do que os candidatos com “nomes brancos” e currículos similares. Os resultados reforçaram achados de estudo semelhante, em menor escala e geograficamente mais limitado, também divulgado pelo Escritório Nacional de Estatísticas Econômicas dos EUA quase 20 anos atrás, em 2003. Essa também não foi a primeira vez que estratégia deste tipo foi usada para detectar discriminação racial em aspectos da vida social e econômica nos EUA. Houve trabalho semelhante sobre o mercado de habitação, descrito em estudo publicado em 2019.

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Do ponto de vista ético, porém, há quem compare os funcionários de recursos humanos ou os corretores de imóveis alvos destes estudos de auditoria aos editores e revisores dos periódicos científicos “vítimas” das fraudes de Sokal, ou de Boghossian e colegas. Mas, como mostram os experimentos em psicologia social, pesquisas sobre racismo, sexismo e outros comportamentos do tipo são altamente sujeitos a respostas seguindo a desejabilidade social, o que torna o engano uma ferramenta muitas vezes indispensável, e também tolerável por revelar falhas graves na estrutura social. E assim como não se pode estudar desonestidade falando para o voluntário que o experimento envolve questões de honestidade, não se pode fazer um levantamento do racismo no mercado de trabalho avisando os departamentos de RH, que devem também saber que estão sujeitos a este tipo de auditoria, interna ou externa.

“Há diferenças”, conclui Pigliucci. “Primeiro, os participantes de experimentos em ciências psicológicas e sociais em geral sabem que estão sendo cobaias. Boghossian e Lindsay não estenderam a mesma cortesia a suas vítimas. E, segundo, estes tipos de pesquisas agora são bem regulados e supervisionados por agências de fomento e comitês de ética das universidades. Mas Boghossian e Lindsay não se deram ao trabalho de seguir este caminho e fazer a coisa certa”

 

Cesar Baima é jornalista e editor assistente da Revista Questão de Ciência

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