Astrologia, ciência, grana e morte

Apocalipse Now
13 set 2019
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relógio com símbolos astrológicos

Astrologia, ouvimos por toda parte, é big business hoje em dia: segundo material publicado online pela Veja São Paulo, uma consulta de uma hora com uma astróloga badalada na mídia pode custar quase tanto quanto um atendimento por um pediatra da classe AA. Com a vantagem de que astróloga pode dispensar a sabedoria dos astros via WhatsApp.

Ano passado, a Folha de S. Paulo  apontou a opção de tornar-se astrólogo como uma saída para a crise econômica. Mais ou menos na mesma época, o Brasil Econômico chamava atenção para a astrologia tanto como fonte de renda quanto como estratégia de marketing – falar “astrologês” com a clientela, sugeria o texto, ajuda nas vendas. Mais recentemente, um portal de dicas empresariais reforçou este último ponto: embarcar na onda astrológica tem potencial  de atrair consumidores.

Claro, assim como faturar em cima dos heróis da Marvel não implica aceitar Thor como o Deus das Tempestades, ou acreditar que aranhas radioativas e explosões de raios gama conferem superpoderes, vender quinquilharias astrológicas, ou ter uma apreciação estética pela iconografia da prática, não diz nada sobre a crença subjacente. 

Mas, no caso da astrologia, é difícil dissociar a crença do hype comercial, como o exemplo dos honorários das astrólogas VIPs – muitas, legitimadas por passagens pela mídia soi-disant  “responsável” – mostra. Além disso, pesquisa recente conduzida pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT) apontou que apenas 40% dos brasileiros de 15 a 24 anos discordam totalmente da afirmação “a personalidade de uma pessoa é muito influenciada pelo seu signo do horóscopo”.

Enfim, mesmo que muitos dos vendedores de astrologices estejam nessa pela grana, os consumidores, cada vez mais, parecem levar o assunto a sério; no mínimo, encarar a astrologia como uma fonte válida de informação sobre alguma coisa, seja ela a personalidade dos colegas de trabalho, ou os rumos do mercado de capitais (no início deste século, a Revista de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas publicou artigo sobre “astrologia empresarial”, e em 2015 a americana John Wiley & Sons, uma tradicional editora de livros-texto, didáticos e científicos, lançou o Trader’s Guide to Financial Astrology).

Arrogantes e insensíveis

O que fazer a respeito? Há quem diga que nada. A crítica de base científica à astrologia é, ela mesma, muitas vezes, criticada, sob a acusação de ser um sintoma de insensibilidade cultural, prepotência intelectual, uma missão fadada ao fracasso. 

A verdade é que não se trata de uma crítica difícil de elaborar, embora trabalhosa: envolve menos conceitos de astronomia e mais de psicologia, principalmente no campo dos vieses (vícios do pensamento) e heurísticas (atalhos para formar crenças e tirar conclusões que economizam tempo e energia mental, mas ao preço de abrir mão de análises racionais).

No caso da astrologia, entram em ação o viés de confirmação (damos mais valor a informações que confirmam aquilo em que gostaríamos de acreditar), a validação subjetiva (inconscientemente, preenchemos lacunas discursivas e tomamos como pessoais alegações vagas ou de aplicação geral) e, o grande amigo do astrólogo, o “Efeito Barnum”. 

O nome vem de Phineas Taylor (P.T.) Barnum, empresário circense americano a quem são atribuídas as frases “nasce um trouxa a cada minuto” e “em nosso espetáculo, sempre temos alguma coisa para todos”. Com 12 signos solares, 12 signos ascendentes e até dez planetas, o número de posições e aspectos num mapa astral, com as respectivas descrições – sempre elaboradas em linguagem aberta a múltiplas interpretações em contextos variados – é tão grande que sempre haverá, por mero acaso, algo com que concordar ou se identificar.

A pseudociência contra-ataca

Em que pese o fardo das acusações de arrogância e insensibilidade, no entanto, quando uma doutrina que faz alegações demonstravelmente falsas sobre a realidade sensível ganha projeção, promoção e acesso à conta bancária dos desavisados, é preciso reafirmar os fatos – nem que seja para evitar que o engano vença por W.O.. Curiosos, pessoas intuitivamente céticas e indecisos precisam ter acesso a fontes que sanem suas dúvidas e os ajudem a estruturar melhor suas impressões. Foi o que tentei fazer no livro que escrevi a respeito da astrologia.

Isso é ainda mais importante no cenário atual, em que a arte divinatória busca resgatar suas velhas pretensões de respeitabilidade intelectual. A livros como o da Wiley somam-se artigos “científicos”:  há, por exemplo, “The Effect Of Astrology On Women’s Buying Behaviour”, publicado um periódico turco de marketing, e o trabalho publicado na revista da FGV, já citado. 

Em sua edição mais recente, o periódico Correlation, da Associação Astrológica do Reino Unido, afirma que o corpo de evidência a favor da validade científica da astrologia aproxima-se de um ponto crítico. Os editores demonstram entusiasmo: “Cada novo estudo (...) reduz o limiar de prova, e todo o campo ganha terreno”, escrevem. Trata-se de uma falácia comum nos meios ditos alternativos, a crença de que montanhas de evidência ambígua, meramente sugestiva, ou francamente ruim, podem sobrepujar resultados claros e sólidos – ainda que poucos.

No que pode sinalizar o surgimento de um novo mercado para consultores de marketing familiarizados com a superstição, uma revisão de literatura publicada na revista astrológica inglesa cita vários resultados “positivos” de estudos ligando signos astrológicos a hábitos de consumo, incluindo a identificação dos mais vulneráveis a estímulos para compras de impulso. 

série de relógios astrológicos

Bom exemplo

O que não significa que astrólogos não possam conduzir estudos de qualidade e rigorosos. Só o que ocorre, nesses casos, é que o resultado é negativo. Um dos mais completos, complexos e detalhados estudos estatísticos sobre a validade da astrologia, concebido e executado por astrólogos, foi realizado entre 1974 e 1977, com base em cinco anos de dados sobre suicídios cometidos na cidade de Nova York. O relato abaixo resume um dos capítulos de meu Livro da Astrologia.

 A astróloga Nona Gwynn Press, com uma equipe, levantou as informações de horário, data de nascimento, data e método de suicídio de 311 pessoas nascidas e mortas em Nova York, e que haviam tirado a própria vida entre 1931 e 1973. Foram apurados, ainda, dados referentes a um número igual de não-suicidas. 

Teve-se, ainda, cuidado especial para que os controles tivessem nascido nos mesmos bairros, e nos mesmos anos, que os suicidas.

 Todos os casos de suicídio cometidos em Nova York entre 1969 e 1973, por pessoas nascidas em Nova York, e em que data e horário de nascimento do suicida eram conhecidos, entraram na base. O estudo fez uso intensivo de recursos de informática: foram determinadas não só as posições dos planetas, do Sol e da Lua no nascimento de suicidas e controles, mas também dos quatro maiores asteroides e de outros fatores considerados astrologicamente relevantes. 

A partir daí, pediu-se aos computadores que procurassem, nos mapas astrais, qualquer coisa – qualquer coisa mesmo: a lista completa dos fatores tabulados envolve mais de uma centena de itens, entre ângulos, harmonias, qualidades, aspectos, elementos, meios-do-céu – que permitisse distinguir a configuração do céu natal dos suicidas dos controles. O resultado? Nada. Não havia nenhuma diferença astrológica que permitisse afirmar que uma pessoa teria mais chance do que outra de pôr fim à própria vida. Buscaram-se ainda diferenças, nos mapas astrais, que permitissem prever, entre os suicidas, o método usado, se “passivo” (veneno, gás) ou “agressivo” (arma de fogo, saltar de um prédio). De novo, nada.

Pediu-se ainda que astrólogos voluntários – mais de 40 – tentassem distinguir entre mapas astrais de suicidas e mapas astrais de controles. Outra vez: nada.

Há muitos detalhes fascinantes nesse estudo. O primeiro, notado pela própria autora, é que ele demole as pretensões de um livro popular na época, “An Encyclopedia of Psychological Astrology” (“Uma Enciclopédia de Astrologia Psicológica”), que apontava uma série de aspectos astrológicos ligados ao risco aumentado de suicídio. Nenhuma das descrições da enciclopédia obteve sustentação nos dados. Alguns dos resultados da análise estatística foram exatamente o oposto do sustentado pela Enciclopédia.

Um segundo ponto, especialmente destacado por Press, é a facilidade com que amostras pequenas produzem a sugestão de que se está chegando a algum resultado significativo, e como essa sugestão desaparece à medida que mais dados são agregados.

capricórnios

A autora relata como, ao receber os primeiros dados sobre suicídios de 1973, mas antes de ter acesso aos controles, sua equipe realizou algumas comparações entre a configuração astral dos suicidas e outras geradas segundo previsões teóricas do que seria um mapa astral “normal”. O resultado apontou algumas diferenças potencialmente significativas. Mas: “depois que os controles foram obtidos, descobrimos que os poucos fatores que tinham parecido de consequência (...) não eram mais consequentes”.

Ela também escreve que “outros fatores que foram significativos para o grupo de 1973 não foram significativos para o grupo 1969-1970”. No fim, não houve nenhum fator que se revelasse significativo para a amostra completa. Press enfatiza a importância de haver um bom grupo de controle para esse tipo de estudo, “nascido nos mesmos anos e locais que o grupo experimental, e selecionado aleatoriamente”. 

A autora relata como vários padrões “curiosos” apareceram nos mapas astrais dos suicidas e como, sem controles adequados, eles poderiam ter sido interpretados como significativos: “Foi só porque vi o mesmo padrão ocorrendo com os controles é que eu soube que ele não era característico de suicidas”, escreve.

Essas constatações são importantes porque ajudam não só a explicar como a astrologia pode parecer certeira ou significativa quando aplicada a pequenos grupos – onde coincidências facilmente se destacam – como também põem em relevo a importância de amostras grandes, grupos de controle e cuidado estatístico na análise de alegações de causa e efeito, sejam elas de natureza astrológica ou não.

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Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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