Até quando, pseudociência, abusarás da paciência nossa?

Apocalipse Now
3 set 2022
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Caio Tulio Cicero

 

Críticas recentes a pesquisas científicas conduzidas por brasileiros a respeito de um par de pseudociências (reiki e homeopatia) atraíram, como seria de se esperar, respostas e tréplicas dos mais diversos tipos, mas uma modalidade me chamou a atenção: a que defende os estudos como meritórios porque, parafraseando o argumento geral, “essas coisas precisam ser pesquisadas”, no mínimo para mostrar que “a ciência não tem preconceito” e está aberta a “investigar tudo”.

Em termo ideais e abstratos é uma linha de defesa perfeita – nenhuma alegação de fenômeno que, supostamente, afeta propriedades mensuráveis do mundo empírico encontra-se, em princípio, fora do alcance da investigação científica –, mas, na prática, essa defesa enfrenta três problemas, que costumam ser ignorados, em minha experiência, por malícia, cinismo ou ingenuidade.

O primeiro é que a idealização pressupõe que todas as hipóteses nascem iguais, que o cientista deve manter uma postura de equidistância agnóstica em relação a todas as alegações que lhe chegam – que o mesmo grau de evidência deve ser considerado convincente (ou insuficiente) em todos os casos, independentemente de qualquer dado prévio. Esse pesquisador ideal seria obrigado, por exemplo, a tratar “esta pedra criou vida e saiu voando sozinha” e “alguém jogou a pedra enquanto ninguém estava olhando” como hipóteses equivalentes e igualmente razoáveis.

 

Rezando por ontem

A equivalência, no entanto, é falsa, e a equidistância exigida abre espaço para absurdos de toda sorte. Isso ficou bem exemplificado no artigo, um clássico da epistemologia aplicada, “Effects of remote, retroactive intercessory prayer on outcomes in patients with bloodstream infection: randomised controlled trial” (“Os efeitos da prece intercessória remota e retroativa em pacientes com infecção na corrente sanguínea: ensaio controlado randomizado”)  publicado em 2001 no renomado periódico médico BMJ. O trabalho supostamente mostra que orações feitas hoje podem afetar o resultado de procedimentos médicos realizados ontem. Em outras palavras, que é possível rezar para mudar a história.

Depois de muita controvérsia (incluindo uma passagem obrigatória pelo mundo da física quântica), o autor do artigo, Leonard Leibovici, um crítico feroz da medicina alternativa, explicou que havia conduzido o estudo para demonstrar a importância de levar em conta a plausibilidade prévia de uma hipótese ao avaliar os estudos que se propõem a testá-la: se essa plausibilidade pré-estudo está muito perto de zero (como no caso de preces que viajam no tempo), o dado pós-estudo deve ser tratado, para dizer o mínimo, com ceticismo.

Alguns comentaristas chegaram a especular que o resultado de Leibovici punha em questão o próprio conceito de espaço-tempo; o autor, por sua vez, preferiu dizer que seu resultado põe em questão a forma como testes clínicos de ideias absurdas são comumente interpretados.

Num artigo anterior para o mesmo BMJ, publicado em 1999, Leibovici argumentava que hipóteses médicas contrárias ao que ele chamava de “modelo profundo” – basicamente, as leis fundamentais da física e outros fatos científicos bem estabelecidos – não deveriam nem sequer ser testadas. Ou, no mínimo, jamais deveriam ser testadas em seres humanos. Escreve ele:

“A criação e falsificação de hipóteses ousadas está no centro do método científico. No entanto, há hipóteses que não podem ser acomodadas nem mesmo nas bordas [do conhecimento]: que fígados de animais sacrificados preveem o futuro; que substâncias que causam queixas semelhantes às observadas no paciente irão, se diluídas a concentrações infinitesimais, curá-lo.

“O modelo profundo é essencial para a escolha de hipóteses, e para que possamos aprender com os erros. Um modelo profundo é necessário para selecionar quais hipóteses serão testadas. No momento em que abandonados o modelo, precisamos testar tudo. Como escolher o que testar? Há milhares de doutrinas, com infinitas variações (...) não usar um modelo profundo logo leva a paradoxos e contradições”.

 

Fato científico

O segundo equívoco da doutrina da “abertura total” da ciência é imaginar que existe algum mérito em seguir testando hipóteses já descartadas para a satisfação de todos, exceto de seus fãs mais fanáticos. Aqui entra em jogo a idealização de que a ciência jamais “fecha” uma questão. Sempre há a possibilidade de o próximo experimento mostrar algo diferente: talvez agora a homeopatia funcione, ou o poltergeist faça a pedra levitar.

O que é verdade, mas não toda a verdade: existem, sim, fatos científicos bem estabelecidos (“fechados” para todos os efeitos práticos), tais como os invocados por Leibovici para compor o “modelo profundo” da Medicina. No livro mais recente que escrevi, “Negacionismo e Desafios da Ciência”, cito um trecho do ensaio “Evolução, Fato e Teoria”, de Stephen Jay Gould. Escreve ele:

 

“‘Fato’ não significa ‘certeza absoluta’. As provas definitivas da lógica e da matemática decorrem dedutivamente de premissas e obtêm certeza apenas porque não tratam do mundo empírico (...) Em ciência, ‘fato’ pode significar apenas ‘confirmado a tal ponto que seria fanatismo negar concordância provisória’”.

 

Provisória, no caso, quer dizer: até que tenhamos razões sólidas, anomalias claras e gritantes, que justifiquem reabrir a questão. É puro cinismo fingir que, porque toda questão científica pode, em princípio, ser reaberta, nenhuma nunca está, para todos os observadores razoáveis e dentro dos limites da honestidade intelectual, efetivamente fechada. Várias estão, incluindo o formato da Terra, a causa do aquecimento global e a ineficácia da homeopatia.

Reconhecendo (ou, ao menos, intuindo) a necessidade de obter anomalias para tentar pôr o modelo profundo em xeque e manter seus programas de pesquisa viáveis, proponentes de terapias alternativas multiplicam ao infinito, e de modo desonesto, o número de “estudos-piloto” em suas modalidades.

Um “estudo-piloto” é uma pesquisa pequena, com pequeno número de animais ou voluntários humanos, que pode vir a “sugerir” a presença de um efeito que merece ser estudado mais a fundo, com mais recursos e de forma mais definitiva: a tão sonhada anomalia.

Estudos-piloto em medicina alternativa raramente evoluem para o estágio de pesquisas conclusivas, e nem esse é seu real objetivo: existem apenas para manter uma atmosfera artificial de “talvez” em torno das modalidades que promovem, criar um clima difuso de dúvida em torno do modelo profundo. Não são produtores de conhecimento, mas propagadores de ignorância.

 

Abuso

O terceiro erro implícito na aplicação do ideal abstrato da ciência agnóstica e aberta a tudo, mesmo a hipóteses altamente implausíveis, ou já exaustivamente refutadas, é o de pressupor que os recursos disponíveis para pesquisa científica são inesgotáveis e infinitos. Repetir de modo insistente uma mesma pergunta, já respondida milhares de vezes, consome, além de verbas, tempo, esforço e atenção que poderiam ser mais bem empregados.

Nesse aspecto, estudos que simplesmente reciclam velhas falácias devem ser considerados abusivos. Cada vez que um novo “estudo-piloto” de homeopatia ou o que quer que seja me aparece pela frente – seguido pela velha ladainha dos ingênuos que acham que a verdadeira ciência tem de encarnar um espírito de absoluto agnosticismo diante de toda e qualquer hipótese, não importa o que digam os fatos científicos já estabelecidos e a própria história da questão – lembro-me do início da Primeira Catilinária de Marco Tulio Cícero (106-43 AEC), orador cujo busto ilustra este artigo:

 

“Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? quam diu etiam furor iste tuus nos eludet? quem ad finem sese effrenata iactabit audacia?”

Ou, em português:

“Até quando, Catilina, abusarás da paciência nossa? Por quanto tempo tua loucura zombará de nós? Qual o limite de tua audácia desenfreada?”

 

Cícero (político e filósofo que, aliás, tinha um bom senso para detectar bobagem) atacava o senador romano Lúcio Sérgio Catilina, envolvido no planejamento de um golpe de Estado. Para mim, essas linhas viraram quase uma prece. Que, desconfio, não vai mudar o passado – nem o futuro.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

 

feita de nada

 

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