Astrologia é coisa de mulherzinha?

Artigo
12 dez 2018
Ilustração de antigo livro de astrologia

Reportagem recente na VICE, intitulada “Por que homens hétero detestam tanto a Astrologia?”, trouxe à tona rusgas antigas sobre a suposta suscetibilidade feminina à pseudociência e a crenças no sobrenatural. E ainda carregou junto os homens homossexuais, rotulando a astrologia como “coisa de mulher e de gay”.

Estudos sobre como crenças em pseudociências estão distribuídas na população, isto é, se as crenças são diferentes de acordo com gênero, idade, etnia, classe social, etc., são importantes para mapeá-las e desenhar um plano de ação sobre como melhor abordá-las em estratégias de comunicação da ciência, como veicular a informação correta na mídia e melhor informar o cidadão. Estas, pelo menos, costumam ser as preocupações de quem conduz estes estudos.

A VICE, no entanto, prefere usar essas informações para rotular um gênero e uma orientação sexual, usando exemplos de “opinião” masculina bastante duvidosos. Alguns relatos são tão distantes da realidade que chegam a ser hilários. Bob, de 36 anos, por exemplo, lembra de quando era criança e “as mulheres se reuniam para tomar chá com biscoitos, enquanto seções de astrologia eram lidas entre risinhos e ares de mistério”.

Sério mesmo? Chá com biscoitos? Sou um pouco mais velha que o Bob, e essa cena não vi nem em filmes de sessão da tarde. Sam tem um relato ainda mais maduro: “É difícil explicar o que penso, é como quando as meninas na escola gostam de um livro, sabe, aí os meninos não podem gostar daquele livro, porque o livro vira coisa de menina”! Sam deve estar decidindo se é pior namorar uma moça que gosta de astrologia ou uma que lhe dê de presente uma cueca rosa.

Para dar o mínimo de crédito à reportagem da VICE, ela levanta um assunto importante. O que a ciência tem a dizer sobre isso? As mulheres realmente acreditam mais em astrologia? Pesquisas bem conduzidas indicam que sim. Christopher French a Ana Stone, em seu livro Anomalistic Psycology: exploring paranormal belief and experience (Psicologia anomalística: explorando crenças e experiências no paranormal), exploram vários estudos que demonstram que mulheres, em geral, acreditam mais em fenômenos sobrenaturais, reencarnação, curas milagrosas e astrologia, enquanto os homens acreditam mais em discos voadores, monstros e teorias da conspiração.

Pesquisas sérias elaboradas pelo Centro Pew (2018) demonstraram que realmente mais mulheres do que homens acreditam em astrologia, energias curativas, reencarnação e poderes psíquicos. E a ciência acaba aqui. Esses são os fatos. Sabemos que, numericamente, mulheres parecem mais propensas a acreditar em nesses tipos de pseudociências do que os homens. As explicações para isso, no entanto, são TODAS especulativas. Não há ciência nelas, apenas opinião. E, sendo assim, permita-me expressar a minha, e colocá-la aqui para fomentar a discussão.

Pseudociência mais científica?

Christopher French especula em seu livro que talvez o fato de os homens serem mais propensos a acreditar em ufologia advenha do fato de que a ufologia, por mais pseudocientífica que seja, está mais ligada ao pensamento científico do que a astrologia ou energias curativas. Tendo a discordar. Esse argumento só tenta reforçar o estereótipo de que homens são mais racionais do que mulheres – até nas bobagens em que acreditam.

French argumenta que as pseudociências ditas “masculinas” são mais plausíveis. Estou aqui tentando imaginar o que tem de plausível em homenzinhos verdes em Marte ou em monstros como o Pé Grande e o Yéti. E como contraponto, também a astrologia tenta travestir-se de ciência o tempo todo, o que já refutaria a hipótese de que as mulheres preferem pseudociências mais afastadas da ciência. Até porque, algo precisa ficar muito claro: TODAS as pseudociências são afastadas da ciência!

Parece-me que, assim como na polarização política, que já comentamos aqui, cada gênero tem sua pseudociência de estimação. Talvez essa preferência seja decorrente de evolução biológica, talvez seja cultural. Simplesmente não sabemos. Pode ser que mulheres se interessem mais por curas milagrosas porque historicamente sempre estiveram mais ligadas a curas de um modo geral, e a questões de nascimento e morte? Pode ser que os homens se interesse mais por teorias da conspiração porque, historicamente, sempre estiveram mais ligados à política e ao poder? Se for assim, a tendência seria mudar naturalmente para acompanhar as mudanças sociais dos gêneros. Mas essas questões nunca foram de fato investigadas cientificamente.

Mídia

Dito isso,  voltemos aos astros. Certamente, temos aí também uma questão de ovo e galinha. Por que as revistas femininas trazem mais seções de horóscopo e mais reportagens sobre astrologia? Por que alguns jornais trazem sua seção de horóscopo junto a alguma seção dita feminina? Seria por que as mulheres gostam, ou será que as mulheres gostam porque esse  assunto está sempre nas revistas femininas?

Marketing é uma ferramenta poderosa, e acreditem, os editores não estão nem aí para quem acredita em astrologia. Eles querem vender. Se mulheres compram mais do que os homens, então dá-lhe astrologia nas revistas de moda. E sim, mulheres gostam de ler sobre moda e maquiagem. E o que acontece? As mulheres são muito mais expostas ao tema da astrologia desde sua adolescência.

Isso explica também o estigma que classifica astrologia como coisa de mulher e de gay, já que muitos homens gays também curtem revistas de moda. O que aconteceria se alguém um dia escrevesse um “guia de pegação astrológico para homens hétero”? Como pegar uma mulher de Virgem (eu disse DE Virgem), ou como levar uma sagitariana para a cama, e qual o signo que faz o melhor sexo oral? Tenho a impressão de que choveriam moleques adolescentes, inseguros, lendo seus livrinhos de astrologia escondidos...

Razão ou intuição?

Outro ponto importante a refutar é a ideia de que as mulheres acreditam mais em astrologia e no sobrenatural porque são mais “sensíveis” e “intuitivas”. A sensibilidade artística existe em ambos os gêneros e todas as orientações sexuais, e não concorre, de forma nenhuma, com racionalidade. Preocupa-me quando as próprias mulheres usam esses argumentos como maneira de “escapar” do machismo.

Ilustração vitoriana sobre astrologia

Ser racional não é ser masculina! Eles acreditam no Pé Grande, oras! Ser racional é, inclusive, necessário para a própria liberação da mulher. Essa apologia à intuição feminina como se fosse algo sobrenatural é um desserviço ao feminismo: acaba colocando a mulher justamente como um ser “irracional” e que acredita em bobagens, apenas por ser mulher.

Não é a primeira nem a última vez que estratégias de marketing moldam comportamento humano, ou pelo menos, tentam fazê-lo, para obter lucro. Antes da revolução sexual, o conteúdo das revistas femininas era todo voltado para a mulher bela, recatada e do lar. A apologia então não era para intuição, espiritualidade e astrologia. Era para submissão, decoro sexual e obediência. E então, nossas avós queimaram sutiãs e em apenas 60 anos conquistaram o mercado de trabalho e direitos iguais.

Menos horóscopos para garotas, por favor

As mulheres não aceitaram o estereótipo ditado pelos homens e pelas revistas da moda dos anos 60. Informação de qualidade chegou às nossas mães e avós, e elas entenderam que não eram intelectualmente inferiores, que não precisavam ser submissas, e que podiam fazer sexo com quem quisessem, quando quisessem. Ciência e tecnologia contribuíram para essa libertação, e não é coincidência que a pílula anticoncepcional tenha sido criada nessa época.

Ao mesmo tempo que me preocupa o fato de que mais mulheres do que homens acreditam em pseudociências, tenho a certeza de que, assim como fizemos no movimento feminista, quando houver acesso à informação de qualidade sobre astrologia e demais crenças infundadas, as mulheres também não irão aceitar mais este estereótipo.

Um estudo recente publicado na revista Research in Higher Education (Dyer e Hall, 2017) demonstra que, embora o gênero estivesse inicialmente relacionado com o tipo de crença pseudocientífica, o acesso à informação reduziu drasticamente estas crenças, independentemente de gênero, etnia ou classe social. É possível, portanto, que o real problema seja o acesso e a exposição à informação.

Para as revistas femininas, eu diria: parem de publicar reportagens de astrologia que tratam a mulher como idiota, como se tudo que ela quisesse saber é qual o melhor signo para fazer par com o dela no ano que vem. Parem de promover astrologia nas revistas para adolescentes.

Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, coordenadora nacional do festival de divulgação científica Pint of Science para o Brasil e presidente do Instituto Questão de Ciência

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