Pega na mentira: um mito da linguagem corporal

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3 jan 2022
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liar

A comunicação humana vai muito além das palavras. Gestos, expressões faciais, tom de voz e posturas também são importantes fontes de informação numa conversa, carregando mensagens que podem reforçar ou mesmo contradizer o que está sendo dito. É a chamada linguagem corporal, ou comunicação não-verbal, tão fundamental que aprendemos a usá-la e interpretá-la quase que intuitivamente, com diferentes níveis de sucesso, e tem sido objeto de diversos estudos nas últimas décadas. Pesquisas que deram origem a vários mitos e alegações exageradas, exploradas por supostos especialistas para vender cursos e palestras que prometem transformar qualquer pessoa em um detector de mentiras ambulante, um vendedor de sucesso ou um sedutor infalível, em mais um caso de pseudociência cuja única função é separar incautos de seu dinheiro.

A história dos estudos sobre linguagem corporal remonta ao século 19, quando Charles Darwin publica, em 1872, o livro “A expressão das emoções no homem e nos animais”. Fruto de suas próprias observações e de colegas com quem se correspondia, Darwin concluiu que a semelhança de expressões e gritos de humanos e animais quando em determinadas situações – como momentos de alegria, afeto e carinho, mas também dor e medo – é resultado da herança de caracteres adquiridos pelo uso e desuso a partir de um ancestral comum e a seleção natural, relacionando-a à sua Teoria da Evolução exposta anos antes, quando da publicação de sua obra seminal, “A origem das espécies”, em 1859.

Em grande parte “esquecido” nos cem anos seguintes, o tema foi retomado no verdadeiro “boom” de estudos relacionados à psicologia e comportamento humano dos anos 1960/1970, que tem entre outros exemplos o destrinchar da sexualidade humana pela dupla William Masters (1915-2001) e Virgínia Johnson (1925-2013), os polêmicos estudos sobre obediência e autoridade de Stanley Milgram (1933-1984), ou o contestado experimento da prisão de Stanford de Philip Zimbardo (1933-), objeto de recente artigo aqui na Revista Questão de Ciência. Então, Albert Mehrabian (1939-) e colegas da Universidade da Califórnia em Los Angles (UCLA) conduziram duas experiências nas quais avaliaram a interpretação das intenções por trás de palavras pronunciadas em três diferentes tons de voz (neutro, positivo e negativo) ou associadas a expressões faciais ora condizentes, ora contraditórias, a seu significado.

Combinando os resultados destes e outros de seus experimentos na área, Mehrabian observou que apenas 7% da interpretação teve como base as palavras ditas em si, com 38% das respostas levando em consideração primariamente o tom usado e impressionantes 55%, a expressão facial associada. A equação, publicada em 1971 em seu livro intitulado “Silent Messages”, foi equivocadamente noticiada pela mídia generalista como indicando que irreais 93% da comunicação humana provém de componentes não-verbais. Ora, fosse verdade, filmes não precisariam de legendas, e aprender uma língua estrangeira seria um exercício apenas literário.

Mais que isso, os próprios experimentos eram limitados. A começar pelo pequeno número de participantes (37) e falta de diversidade entre eles – na verdade, elas, já que eram todas mulheres estudantes de psicologia na UCLA. Além disso, elas julgaram as intenções por trás de palavras soltas em um ambiente de pesquisa controlado e carregado de incongruências entre o dito, a forma e o visto, algo muito distante da complexidade de um diálogo com discurso e atitudes encadeados. O próprio Mehrabian procurou desfazer o mal-entendido, sem sucesso. Em comentário posterior à publicação de seu livro, ele escreve: “Por favor, notem que esta e outras equações sobre a importância relativa das mensagens verbais e não verbais são derivadas de experimentos relativos à comunicação de sentimentos e atitudes (por exemplo, gosto-desgosto). A não ser que o emissor esteja falando sobre seus sentimentos ou atitudes, estas equações não são aplicáveis”.

 

Da ciência ao negócio

 

Isso não impediu, no entanto, que o mito da preponderância da comunicação não-verbal crescesse e se espalhasse. E aí chegamos a outro nome muito citado na área, o psicólogo americano Paul Ekman (1934-). Também a partir dos anos 1960, Ekman iniciou estudos na área, analisando como gestos e expressões variam (ou não) entre culturas, para depois focar exclusivamente no que identificou como “microexpressões faciais” que seriam indicativos universais e inconscientes de emoções e estados mentais.

Com base em seus estudos, ainda nos anos 1970 Ekman criou o que chamou de Sistema de Codificação de Ação Facial. Conhecido pela sigla em inglês FACS, o sistema é frequentemente descrito como uma “taxonomia” de todos possíveis movimentos observáveis dos músculos faciais, denominados “unidades de ação” (AU, também na sigla em inglês), cujas combinações e intensidade podem, supostamente, ser associadas a emoções ou estados mentais específicos de forma universal, isto é, para diferentes culturas e etnias.

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E aí começam os problemas. Se ideias ruins, como a quiropraxia, podem embasar franquias pseudocientíficas lucrativas, não há porquê boas ideias - ainda mais associadas a algo que as pessoas instintivamente veem como real, como a linguagem corporal - também não. Foi o que aconteceu com Ekman e suas microexpressões. A partir do FACS surgiram manuais, cursos e outros produtos pelos quais quase qualquer pessoa poderia, segundo os vendedores desses métodos, aprender a ler e interpretar estes sinais sutis e, assim, identificar mentiras ou outras intenções ocultas de seus interlocutores.

A princípio, e principalmente após o sucesso de seu livro “Telling Lies: Clues to Deceit in the Marketplace, Politics, and Marriage” (“Detectando mentiras: Pistas do engano nos negócios, na política e no casamento”, numa tradução livre do título do livro, não disponível em português), originalmente publicado em 1985, Ekman passou a dar treinamento para forças policiais, de segurança e de inteligência dos EUA, como a CIA e o FBI. Trabalho que também inspirou a premiada série de TV “Lie to Me” (“Engana-me se puder” no Brasil), com três temporadas transmitidas entre 2009 e 2011. Nela, o personagem principal, Dr. Cal Lightman (interpretado pelo ator britânico Tim Roth, de filmes como “Cães de aluguel” e “Pulp Fiction”), é retratado como um verdadeiro detector de mentiras ambulante, capaz de observar, apontar e interpretar estes sutis sinais precisamente e de pronto, e que teve o próprio Ekman como “consultor científico”.

Com o tempo, porém, Ekman também passou a oferecer seu treinamento para o público em geral e em 2009, depois de se aposentar como professor da Universidade da Califórnia em San Francisco, fundou o Paul Ekman Group (PEG) e a Paul Ekman International (PEI), por meio das quais fornece cursos online, palestras e workshops relacionados ao seu sistema e, claro, as respectivas “certificações”, por algumas centenas de dólares.

 

Pega na mentira

Acontece que, em paralelo, nos últimos anos cada vez mais estudos mostram que mesmo profissionais “treinados” e experientes em linguagem corporal, como agentes dos serviços de segurança, não são mais capazes de identificar mentirosos do que pessoas “comuns” ou até o simples acaso (os 50% de uma jogada de “cara ou coroa” para decidir se a pessoa está dizendo a verdade ou não) e vêm derrubando inúmeros mitos da detecção de mentiras via sinais não-verbais, como de que os mentirosos olham para a direita quando inventam suas histórias.

É o caso, por exemplo, de uma ampla revisão de pesquisas sobre o tema publicada em 2006 no periódico Personality and Social Psychology Review por Charles F. Bond Jr., então no Departamento de Psicologia da Texas Christian University, EUA, e Bella M. DePaulo, do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara. Intitulado “Accuracy of Deception Judgments”, o trabalho analisou mais de 200 estudos envolvendo quase 25 mil pessoas e apontou que, em média, elas conseguiram julgar acertadamente pares verdade-mentira 54% das vezes, classificando corretamente mentiras como tais em 47% das ocasiões, e verdades 61%.

E mesmo analisando em separado estudos envolvendo especialistas ou não, os resultados não foram muito diferentes, com os profissionais atingindo uma média de acertos ainda menor que as pessoas em geral (54,09% contra 55,74%, respectivamente), diferença estatisticamente insignificante, creditada pelos autores ao fato de que, sendo constante alvos de mentiras em sua atuação profissional, os profissionais veem-se menos inclinados a confiar na sinceridade de seus interlocutores, o que os leva a erroneamente classificar mais verdades como mentiras.

“Está claro que especialistas não são bons detectores de mentiras. Em média, eles conseguem menos de 55% de precisão da discriminação de pares mentira-verdade”, concluem os autores sobre a questão.

Três anos antes, em 2003, a mesma DePaulo e outros colegas também já haviam publicado outra revisão de mais de 100 estudos em que avaliaram a validade de 158 sinais verbais ou não-verbais geralmente associados à mentira, de desvios no olhar à frequência das piscadas, postura e movimentos da cabeça, braços, mãos ou pernas, passando pelo tom de voz, formato e congruência do discurso. Ao fim, os melhores indicativos de mentiras eram todos verbais, com os mentirosos menos inclinados a falar abertamente e responder perguntas, não entrando em detalhes, demorando a responder e falando mais lentamente. Suas histórias também tendem a ser menos envolventes e emocionais do que as de pessoas dizendo a verdade, carecendo de sentido e fluência.

Mais recentemente, outra extensa revisão da literatura científica sobre o assunto - incluindo os trabalhos publicados por Ekman, que deixou de submeter seus estudos e achados a periódicos com revisão por pares sob alegação de proteger a segurança e segredos de Estado - apontou grandes lacunas e contradições nos estudos na área. No artigo, “Reading Lies: Nonverbal Communication and Deception”, publicado em 2019 no periódico Annual Review of Psychology, seus autores - Aldert Vrij, da Universidade de Portsmouth, Reino Unido; Maria Hartwig, do John Jay College of Criminal Justice da Universidade da Cidade de Nova York; e Pär Anders Granhag, da Universidade de Gotemburgo, Suécia – alertam que após analisarem a produção científica na área encontraram “primeiramente, um cenário teórico quebrado”.

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“Existem muitas teorias, mas nenhuma delas parece capturar completamente a relação entre a comunicação não-verbal e a mentira”, acrescentam. “Entre os habitantes desta paisagem, encontramos mentirosos que contam suas histórias em variadas situações, incluindo as que a comunicação não-verbal é crucial. Estes mentirosos são (surpreendentemente) ignorados, e o foco das pesquisas se dá em mentirosos que agem em situações em que a comunicação não-verbal é de menor importância. Também vemos que os detectores de mentiras não são tão bons em ler pessoas quanto acham. De fato, suas capacidades são medíocres e eles têm fortes crenças equivocadas quanto a sinais não-verbais da mentira. Também se mostram ativos em dizer uns aos outros que seu método de detecção de mentiras funciona sem fornecer evidências que apoiem estas alegações”.

E assim, embora o FACS e derivados possam ter rendido uma boa série de televisão, à falta de evidências não passam disso, isto é, pura ficção. E se uma pessoa vier lhe dizer ser capaz de detectar um mentiroso com base na linguagem corporal, saiba que quem já começou mentindo foi ela mesma.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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