Medo de vacina também pode ser doença: o caso do Acre

Questão de Fato
6 dez 2019
Imagens de livro médico

 

Há 170 anos, os franceses cunharam a expressão “cancer à deux” (câncer a dois) para descrever os casos em que a mulher tinha câncer de colo de útero e o marido, câncer de pênis, levantando a suspeita de que esse câncer podia ser contagioso. A maioria dos casos, como hoje se sabe, é causada pela infecção por papilomavírus humano (HPV), transmitida por contato sexual. Ao longo da vida, a pessoa tem 80% de chance de contrair um dos tipos de HPV, inclusive os três mais associados a esses cânceres. Por isso, quando as vacinas contra o HPV surgiram, em 2006, surgiu a esperança de erradicar esses dois tipos de câncer, mais comuns em países pobres ou em desenvolvimento, onde as estratégias de prevenção e diagnóstico precoce não funcionam bem. 

O alvo da vacinação, porém, é um grupo extremamente vulnerável emocionalmente e que não costuma mais frequentar postos de saúde durante campanhas de vacinação: os adolescentes e pré-adolescentes. Por isso, as autoridades de saúde resolveram vacinar esses grupos nas escolas. Foi nesse ambiente, na cidade paulista de Bertioga, que 11 meninas da mesma escola foram hospitalizadas após receber a segunda dose da vacina em setembro de 2016, queixando-se de fortes dores de cabeça e dificuldades para andar.

Oito meninas receberam alta no mesmo dia, depois de uma avaliação neurológica concluir que não tinham sofrido dano físico e o problema havia sido causado pela enorme ansiedade quanto à vacina. O caso representava um exemplo de um fenômeno conhecido, e descrito na medicina como crise psicogênica (isto é, de origem psicológica) em massa. Três outras permaneceram internadas. Foi o bastante para o fato ganhar as manchetes da mídia, com alguns comentaristas questionando, inclusive, a segurança da vacina.

Ao contrário do que muitas pessoas imaginam, doenças psicogênicas não são “fingimento”: os sintomas, sejam dores, tonturas, cegueira, paralisia, etc., são reais. Apenas sua causa não é um agente externo, como um vírus ou uma contaminação do ambiente, mas um estado emocional. 

Qualquer pessoa que já tenha ficado sem ar ou paralisada de susto sabe como os efeitos físicos de certos estados mentais podem ser poderosos.

Essas crises são contagiosas (daí o “de massa”): quando membros de um grupo que partilham de uma identidade forte – estudantes de uma mesma escola, por exemplo – veem um colega adoecer e sentem o clima de medo e apreensão em torno do caso, outros acabam sucumbindo. O alcance do fenômeno, é claro, pode ser amplificado pela mídia.

Casos no Acre

Um ano antes, sem que houvesse alarde na grande mídia, o mesmo fenômeno havia ocorrido no Acre, mas, diferentemente do que ocorreu em São Paulo, a saúde pública local não deu atenção ao caso ou atendimento às meninas,  e muitas mães tiveram de ouvir que suas filhas estavam apenas fazendo cena, fingindo ter convulsões. O Acre conta, hoje, com 82 desses casos, os oito mais recentes registrados nas últimas semanas. 

A maioria era semelhante aos casos que viriam a se manifestar em São Paulo, com queixas de dores de cabeça, dores nas pernas e desmaios, mas alguns adolescentes apresentavam um quadro mais grave, com convulsões. E, claro, as famílias, espremidas entre a indiferença das autoridades e a realidade dos sintomas, adotaram o pressuposto de que suas filhas e filhos estavam com uma sequela neurológica provocada pela vacina. Familiares passaram a ficar na porta de centros de vacinação, tentando convencer as pessoas que a vacina era perigosa, que deixava as crianças doentes. 

A mesma fala era repetida nas entrevistas no rádio e TV. Vídeos das meninas em convulsão foram postados em redes sociais e outras meninas, depois de vê-los, passaram a apresentar os mesmos sintomas – e o caso ganhou destaque nos jornais e emissoras locais. O pânico foi se espalhando pela população ao longo dos quatro anos em que o fenômeno ficou sem explicação.

Procuradas pelas famílias, as quatro deputadas federais eleitas pelo Estado, Mara Rocha (PSDB), Jéssica Sales (MDB), Vanda Milani (Solidariedade), Perpétua Almeida (PC do B) e a senadora Mailza Gomes (PP) deixaram de lado as diferenças partidárias e pressionaram o Ministério da Saúde a encontrar uma resposta para o que estava acontecendo com os adolescentes. O Ministério encarregou o Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) de desvendar o caso.  

Os 16 jovens com sintomas mais graves, entre eles um casal de irmãos, acompanhados por suas mães, foram trazidos para São Paulo, onde foram submetidos a uma enorme bateria de exames, de ressonância magnética a testes de metabolismo, incluindo até mesmo testes de gravidez, entre testes físicos, exames médicos de todo tipo e avaliação psicológica. E, o mais importante, vídeo-eletroencefalografia prolongada, em que o paciente é gravado em vídeo enquanto o aparelho de EEG registra suas ondas cerebrais, ao longo de 10 a 15 dias, 24 horas. 

Resultados

Até o final de outubro, a equipe coordenada pelo psiquiatra Renato Luiz Marchetti, da neuropsiquiatria do IPq, tinha avaliado 12 pacientes e apenas dois, um casal de irmãos, apresentavam convulsões do tipo epiléptico, mas ambos são portadores de uma forma genética da doença, que justamente se manifesta na adolescência. Os demais apresentavam convulsões atípicas, não associadas à epilepsia ou outra doença fisiológica, mas que caracterizam doença psicogênica, ou seja, disparada por mecanismo psicológico. 

“É uma doença funcional do sistema nervoso, que está associada a estresse emocional, que desencadeia uma reação psicológica automática do sistema nervoso”, explica o especialista.

Coordenador da Unidade de Vídeo-Eletroencefalografia do IPq, o psiquiatra José Gallucci Neto lembra que a História registra vários episódios de doença psicogênica em massa, como o das bruxas de Salem, que envolvia meninas adolescentes numa comunidade puritana apavorada com demônios, soldados jovens da Primeira Guerra Mundial apavorados com o uso de gás mostarda nas trincheiras, casos de pessoas que se achavam contaminadas por antraz ou gás Sarin logo após o atentado do 11 de setembro de 2001.

Os casos de doença psicogênica relacionados a vacinas não são incomuns. Em 1998, um menino desmaiou um dia depois de tomar uma vacina contra tétano e difteria, numa escola da Jordânia. Quando os colegas souberam, outros 20 desmaiaram ou se queixaram de febre e falta de ar. Depois que a história chegou à mídia, outros 55 alunos do mesmo colégio passaram mal, e mais de 700, de outras escolas, também se queixaram dos mesmos sintomas.

 “Nós conhecemos bem o mecanismo psicológico que dispara esse processo, mas ainda não entendemos o fisiopatológico”, disse Gallucci. “O fator que detona esse processo é a crença cultural em algo extremamente ameaçador, como o demônio, o risco de morrer por algo invisível, como os gases usados na Primeira Guerra, ou num atentado terrorista”, conta. “Temos um cenário em que vem o crescendo o medo de tomar vacina, por causa dessas campanhas absurdas que dizem que vacina causa autismo, provoca a doença que se quer evitar, tanto que há registros de surtos psicogênicos causados por vacinação até no Japão e na Austrália, onde a vacinação contra o HPV já mostra queda acentuada nas infecções pelo vírus”. 

O caso da Colômbia, também com a vacina contra HPV, é impressionante. A vacinação começou em 2012 e atingiu 90% do público-alvo, mas, dois anos depois, na cidade de Carmen de Bolivar, 15 meninas da mesma escola foram hospitalizadas entre 29 de maio e 2 de junho de 2014, após a vacinação. Logo apareceram vídeos das meninas desmaiando e se contorcendo, dando entrada inconscientes no hospital local, tanto na mídia nacional como nas redes sociais. A viralização das imagens causou também a disseminação viral dos sintomas em toda a Colômbia, onde há registro de mais de 600 casos. 

Ambiente

A vacina contra o HPV vem acompanhada por vários mitos, o principal deles é de que estimula o início precoce da vida sexual – há estudos internacionais que desmontam essa pérola de desinformação e mostram justamente o contrário. Além disso, no caso específico do Acre, as meninas vêm de um ambiente socioeconômico bastante frágil, agravado pela atual crise, que causou desemprego entre os homens e faz com que a família seja, hoje, sustentada pelas mulheres. 

“Isso é mais um complicador numa sociedade de estrutura patriarcal. Elas também vêm de famílias disfuncionais, onde há alcoolismo, todas passaram por privações materiais, todas foram vítimas de negligência parental em algum momento da vida, passaram a ser superprotegidas depois, e em algum momento da vida sofreram abusos físicos ou psicológicos. Outro dado é que todas são de famílias evangélicas e não sabemos ao certo como essas diferentes denominações encaram as vacinas em geral, e esta do HPV em particular”, diz Gallucci.

Outro fator que pode ter pesado no surto de doença psicogênica do Acre são as condições adversas da vacinação. Diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), o pediatra Renato Kfouri explica que o ideal, especialmente no caso de vacinação de adolescentes, é que ela seja feita como as clínicas particulares, com o jovem sentado numa sala fechada com o vacinador. “Adolescentes são extremamente influenciáveis. Se um fica tonto, desmaia porque está assustado, muitos dos que estão fila também vão passar mal e atribuir o mal-estar à vacina, não ao estresse provocado pelo ato de tomar a vacina. A estratégia compensa, porque reduz os casos de doença psicogênica, mas nas escolas, como a vacinação era feita, nem sempre há condições para isso”, reconhece. 

Mitologia

O diagnóstico de doença psicogênica é, para muitas pessoas, contra-intuitivo, e algumas mães relutam em aceitá-lo. Também há proponentes de terapias alternativas que jogam com o estranhamento em torno do caso para ganhar notoriedade e promover “soluções” de pouco ou nenhum respaldo científico. 

O caso mais notório é o de Maria Emília Gadelha Serra, que faz pós-graduação em perícia médica na Santa Casa e contesta o estudo da USP, alegando que as crianças foram contaminadas por chumbo e outros metais pesados que ela afirma – sem provas – estarem presentes na vacina. Ela prestou um depoimento na Assembleia Legislativa do Acre, onde sua fala teve grande repercussão.

Em suas redes sociais, Maria Emília dissemina teorias da conspiração sobre a vacina contra o HPV, principalmente baseadas nas ideias desacreditadas do médico americano Sin Hang Lee. Ela diz que as meninas do Acre devem ser “descontaminadas” antes de passar por tratamento. 

A médica é uma promotora da ozonioterapia, considerada uma “Prática Integrativa e Complementar” pelo Ministério da Saúde brasileiro, mas que carece de base científica e é condenada pelo FDA, órgão de vigilância sanitária do governo dos Estados Unidos. Há registro de pelo menos cinco mortes e uma amputação causadas por essa prática.

Recomendações

Em novembro, um artigo publicado na revista médica The Lancet Oncology afirmava que, graças à vacina contra o HPV, o câncer de colo de útero pode vir a ser erradicado do planeta.

A equipe do HC fez uma série de recomendações ao governo do Acre e ao Ministério da Saúde, começando pelo acompanhamento multidisciplinar das adolescentes, com equipe de clínico geral, psiquiatra, psicólogo e neurologista, sem necessidade de medicação. 

A outra recomendação é de um programa que combata as “fake news” e desinformação sobre vacinas. Por causa do episódio, muitas mães estão relutando em levar os filhos para tomar as demais vacinas de que precisam.

 

Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética, Bioquímica e Câncer, entre outros

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