Varíola ainda é a única doença já erradicada pela Humanidade

Questão de Fato
2 out 2020
Fila de vacinação contra varíola na África, em 1976

Desde que o médico inglês Edward Jenner (1749-1823) criou a primeira vacina, para a varíola, em 1796, o processo de fabricação avançou muito, a ponto de hoje existir todo um ramo da indústria farmacêutica dedicado a desenvolver e produzir vacinas para as mais variadas doenças. Apesar da comprovada eficácia dos imunizantes para prevenir doenças, o que em tese, com o tempo, poderia varrê-las da face da Terra, não é o que tem acontecido na prática. Isso só ocorreu até hoje com a varíola, declarada erradicada em 1980. Várias outras doenças infeciosas, algumas quase tão antigas quanto as primeiras civilizações, ainda assombram a Humanidade.

Por coincidência – ou não –, a única doença infecciosa erradicada até hoje, a varíola, é também uma das mais antigas de que se tem registro. Ela teria surgido na Índia, sendo descrita na Ásia e na África antes da era cristã. A enfermidade já fazia estragos no Antigo Egito. Foram encontrados sinais típicos dela em múmias, como a do faraó Ramsés V, que reinou aproximadamente entre 1146 AEC e 1142 AEC.

Embora pesquisas mais recentes tenham apontado a febre tifoide como a responsável por uma das primeiras epidemias do planeta de que se tem notícia, há especialistas que defendem que, na verdade, foi de varíola. Ela ocorreu na Grécia, em 428 AEC, e foi descrita pelo historiador grego Tucídides (460 AEC 400 AEC), em seu livro A guerra do Peloponeso.

Há outras doenças quase ou tão antigas quanto a varíola, mas que ainda estão por aí. “Existem indícios de enfermidades como a cólera, a hanseníase, a tuberculose, o sarampo, a difteria, o tifo e a malária já na Antiguidade, seja por relatos de autores como Hipócrates (460 AEC – 377 AEC), Galeno (129 – 199 ou 217) ou outras fontes (textos religiosos, como o Antigo Testamento, por exemplo, ou outros em persa ou sânscrito)”, diz Cybele Crossetti de Almeida, do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Mas também por descobertas arqueológicas, em ossos de múmias egípcias de cerca de 3000 até 2400 AEC, neste caso a tuberculose”.

Cybele ressalva, no entanto, que há algumas imprecisões, porque, principalmente nos registros escritos, a descrição das doenças nem sempre é clara, e assim ocorrem, por vezes, algumas confusões entre enfermidades com sintomas semelhantes, como febre, tosse, dores e manchas no corpo. “Algumas vezes conceitos como ‘peste’ acabam sendo aplicados de maneira imprecisa a uma grande variedade de doenças”, explica.

A historiadora Tania Maria Fernandes, doutora em História Social e pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo (Fiocruz), diz que a história das doenças é muito específica para cada uma delas. “Existem as virais e as bacterianas.”, explica. “As mais antigas que se têm registro são varíola, sarampo, hanseníase e tuberculose. A coqueluche, por exemplo, é uma doença mais nova, que só foi identificada em 1578”.

Apesar dos avanços científicos e de existir conhecimento e tecnologia para prevenir muitas dessas doenças, erradicá-las não é tarefa fácil. “Essa é uma questão que precisa ser pesquisada e respondida de maneira interdisciplinar”, diz Cybele. “Um médico vai enfatizar as limitações da ciência e da técnica em desenvolver meios de preveni-las e tratá-las. Historiadores e sociólogos vão lembrar que, além disso, há problemas recorrentes como a desigualdade social não só em diferentes países, mas também globalmente, como se percebe nos casos da erradicação de doenças como hanseníase e malária em países mais ricos, que investem mais em infraestrutura, saúde e prevenção”.

Ou seja, para Cybele, a questão da erradicação é complexa, porque embora algumas delas de fato estejam eliminadas – como a varíola –, outras o foram em algumas partes do planeta, mas não em outras. “A malária, por exemplo, que já foi endêmica no sul da Europa na Antiguidade (chegando a ser chamada de ‘febre romana’) e Idade Média, praticamente já desapareceu do Velho Continente (com alguns poucos casos ‘importados’), mas continua assolando regiões mais pobres do mundo, como na África”, explica.

Cybele cita o sarampo como outro exemplo de doença, para a qual há uma vacina eficaz e barata desde 1963, que foi praticamente erradicada nos países de Primeiro Mundo, mas que continua matando muita gente nos mais pobres (mais de 95% das cerca de 140.000 pessoas que morreram por sarampo em 2018, segundo dados da OMS, habitavam em regiões de baixa renda per capita e com sistemas de saúde insatisfatórios). “Mas há também casos isolados em países europeus e outros, decorrentes por vezes da falta da aplicação obrigatória e generalizada da vacina, como é o caso de uma jovem de 17 anos que morreu recentemente com sarampo em Lisboa”, conta a pesquisadora.

Além disso, a hanseníase - uma das mais antigas – foi praticamente erradicada dos países mais ricos, mas continua atingindo alguns em desenvolvimento, como o Brasil, a Índia, a Indonésia e partes da África. “Em termos mundiais – no caso europeu já em fins da Idade Média e início da Idade Moderna – a diminuição da hanseníase esteve relacionada com o avanço de outras doenças, como a peste [bubônica], a cólera e o tifo, que eram mais virulentas e matavam mais a população já afetada – e enfraquecida – por ela, que muitas vezes vivia confinada em leprosários que facilitavam o contágio”, diz Cybele.

Segundo a virologista Giliane Trindade, do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB-UFMG), foram feitos inúmeros esforços para a erradicação do sarampo e da poliomielite, mas estes dois vírus ainda causam infecção natural no planeta. “A poliomielite acabou de ser declarada eliminada na África, mas alguns países na Ásia ainda registram casos e com isso não podemos declarar o vírus erradicado, apesar de uma antiga e intensa campanha de vacinação conduzida mundialmente”.

Há vários obstáculos para a erradicação de doença. “É difícil acreditar que outras enfermidades do porte da varíola possam ser ‘erradicáveis’, dada a extrema diversidade de lugares, comportamentos e interações entre humanos, ambiente e as diversas formas de vida que existem no planeta”, diz a pesquisadora Márcia Regina Barros da Silva, coordenadora do Laboratório de História das Ciências, Tecnologias e Sociedade (Labcite), do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP).

Giliane acrescenta outras dificuldades à lista. “Quando falamos de patógenos que são estritamente humanos, como era o vírus causador da varíola e como são os do sarampo, poliomielite e caxumba, a não erradicação está muito relacionada com as dificuldades de vacinação da população”, explica. “Todas são doenças que têm uma vacina para proteger da infecção, mas infelizmente a imunização não é conduzida de maneira efetiva globalmente. Por isso, não se consegue interromper a circulação desses vírus na população humana”.

O mesmo vale também para doenças bacterianas, como a coqueluche e a difteria, para as quais existem imunizantes disponíveis. “Todas são evitáveis por vacina”, lembra Giliane. “Agora, se estivéssemos falando de vírus ou outros patógenos zoonóticos [que podem ser transmitidos ao ser humano por animais], a erradicação seria muito mais difícil, porque teríamos sempre hospedeiros animais sustentando a transmissão deles em seus ambientes naturais”.

Para ela, a poliomielite talvez seja a doença que se encontre mais perto da erradicação, mas é preciso continuar garantindo a vacinação em nível mundial. “O Brasil já foi declarado livre do sarampo, por exemplo, mas recentemente voltamos a registrar a ocorrência de casos e um aumento dos surtos desse vírus”, diz. “Isto se relaciona com movimentos migratórios, falência do sistema de saúde e dos programas de imunização. Movimentos antivacinas também contribuem muito para que essas doenças, que já poderiam estar eliminadas, não o sejam”.

Evanildo da Silveira é jornalista

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