Horóscopo das siglas: os problemas do teste MBTI

Questão de Fato
4 nov 2021
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Svengali

 

O suíço Carl Jung (1875-1961), pai da corrente de pensamento sobre a mente chamada psicologia analítica, dissidência da psicanálise freudiana, considerava ideal ir além do método científico. Em suas palavras, “Quem quiser conhecer a psique humana não aprenderá quase nada com a psicologia experimental. É melhor abandonar a exatidão da ciência, deixar de lado a beca acadêmica, dar adeus ao gabinete e vagar pelo mundo com o coração”.

Em 1921, no livro “Tipos Psicológicos”, Jung introduz a ideia de que cada pessoa nasce com uma atitude predominantemente extrovertida ou introvertida (ele, diga-se, cunhou essas palavras. São neologismos que se incorporaram de vez ao vocabulário corrente). Além do binômio introversão-extroversão, o psicanalista sugeriu a existência de outros dois eixos. O segundo teria a ver com a maneira como embasamos nossos atos: algumas pessoas seriam intuitivas, outras prefeririam se apoiar em experiências concretas. Já o terceiro diria respeito ao que colocamos em primeiro lugar na hora de decidir: razão ou sentimento.

Era uma hipótese pensada na poltrona, baseada em partes na leitura do psicólogo pioneiro William James (1842-1910). Daqui a alguns parágrafos, falaremos sobre os pontos em que Jung acertou (alguns) e errou (muitos). Por ora, interessa a história.

Suas ideias estão por trás de muitos testes de personalidade usados em empresas, universidades, colégios e também por coaches: TDI, JTI, Insights Discovery, Golden Personality Type Profiler... O mais popular atende pelo nome de Indicador do Tipo Myers-Briggs (Myers-Briggs Type indicator, MBTI, na sigla em inglês), e classifica as pessoas em 16 tipos, cada um identificado por um acrônimo de quatro letras.

A história do MBTI é peculiar: na década de 1940, uma mãe e uma filha, ambas donas de casa do interior dos EUA, se fascinaram com o livro de Jung e passaram a tratar “Tipos Psicológicos” como uma espécie de Bíblia da intimidade doméstica. Katharine Cook Briggs e Isabel Briggs Myers estavam acostumadas ao clima pavloviano que reinava na pedagogia da época: crianças seriam tábulas rasas, folhas em branco que podem ser condicionadas a obedecer como cães. A ideia de que existem temperamentos inatos – de que alguns bebês nascem mais reclusos ou mais falantes – era um alívio.

Briggs e Myers imaginaram que toda pessoa se encaixaria em um dos lados nos três binômios (incluímos um breve esclarecimento entre parênteses onde o nome original não é tão claro):

 

extroversão vs. introversão;

sensação (experiência prática) vs. intuição;

pensamento (razão ou lógica) vs. sentimento.

 

Elas até criaram um quarto eixo: julgamento vs. percepção. A ideia é que algumas pessoas têm opiniões rígidas e levam uma vida mais regrada, enquanto outras são espontâneas, boas de improviso e ruins com prazos. 

O teste contém 93 perguntas para determinar onde nos encaixamos em cada um desses pares. Para facilitar a notação, utiliza-se um código de letras. Por exemplo: o autor deste texto é introvertido (I), intuitivo (N), pensador (T) e perceptivo (P). Portanto, um INTP.

Como há 16 combinações possíveis de letras, Myers e Briggs concluíram que haveria 16 tipos de personalidade. Cada uma recebeu sua própria descrição, redigida num estilo vago que já foi comparado ao de astrólogos famosos e está sujeita ao efeito Forer (mais sobre ele no final do texto).

Esse “horóscopo de siglas” demorou para decolar, mas graças à cruzada incessante das duas inventoras para divulgá-lo, acabou ganhando popularidade algumas décadas depois de sua primeira publicação, em 1962.

O MBTI dá dinheiro. Muito dinheiro. A Myers-Briggs Company, sediada na Califórnia, detém a propriedade intelectual do teste e aplica a versão oficial em 2 milhões de estudantes e empregados todos os anos. São US$ 50,8 milhões de faturamento anual. Das 500 maiores empresas dos EUA, que constam de um ranking compilado anualmente pela revista Fortune, 88% empregam o MBTI e outros produtos de coaching oferecidos pela Myers-Briggs (que, aliás, mudou de nome recentemente: antes, se chamava Consulting Psychologists Press, e a sigla “CPP” ainda aparece em textos mais antigos).

Se você sabe seu tipo e não foi testado pelo RH, o mais provável é que tenha feito uma versão genérica e ligeiramente melhorada do MBTI original: um quiz online batizado de 16Personalities que já foi respondido por quase 100 milhões de pessoas.

O MBTI se tornou um critério sério para contratar funcionários e distribuir tarefas, um meme no Twitter e no Tinder e até uma profissão: existem milhares de pessoas, não necessariamente psicólogos, que obtiveram certificados para aplicar a versão oficial do indicador. O que leva a uma pergunta necessária: funciona?

 

 

Analisando o MBTI

Uma característica que se espera de um teste que se propõe a medir características essenciais da personalidade humana – isto é, características definidoras, que se mantém constantes ao longo do tempo – é a chamada “fidedignidade teste-reteste”. Se um paciente fizer uma avaliação hoje e repeti-la um mês ou um ano depois, espera-se que obtenha o mesmo resultado. Até 50% das pessoas, porém, não recebem as mesmas letrinhas quando repetem o MBTI com um intervalo de meras cinco semanas entre aplicações.

Além disso, não há evidências de que a classificação de pessoas nesses 16 tipos se converta em uma eficiência maior na gestão de empresas, que é justamente o objetivo de se atribuir cargos e funções com base no MBTI. E uma revisão sistemática de toda a literatura publicada sobre o MBTI até 1996 revelou que a maior parte dos artigos científicos com conclusões favoráveis a ele tem falhas metodológicas.

Há alguns motivos para tudo isso acontecer.

Imagine um experimento simples. Você faz duas perguntas, via chat, para todos os seus amigos do Facebook:

 

1. Qual é a altura deles, em metros;

2. Os horários em que eles costumam ir a restaurantes.

 

Agora, ponha tudo numa planilha de Excel e gere dois gráficos. O de alturas vai ficar mais parecido com a primeira imagem; enquanto o de horários sem dúvida vai se assemelhar mais ao segundo exemplo.

 

curvas

 

Essas são duas imagens familiares aos estatísticos. Uma representa uma “curva normal” – em inglês, bell curve, pela semelhança com a forma de um sino. Ela indica que, embora existam alguns adultos com 1,5 m ou 1,9 m, sempre haverá mais pessoas no centro do gráfico, onde fica a média (no Brasil, 1,72 m para homens, 1,61 m para mulheres).

Já o gráfico dos restaurantes representa uma distribuição do tipo “bimodal”, em que surgem dois picos. Nesse caso, um corresponde à hora do almoço e o outro, à do jantar, ainda que algumas pessoas eventualmente façam refeições às 15h ou 16h.

Um dos principais problemas do MBTI é que ele é organizado como se os traços de personalidade fossem bimodais. Como se as pessoas introvertidas ficassem em um canto do gráfico e as pessoas extrovertidas, no canto oposto, separadas por um vale vazio.

De fato, o teste é construído de modo a não permitir meios-termos. Você lê uma afirmação (digamos, “eu tenho muita facilidade em fazer novas amizades”) e as únicas duas opções são concordar ou discordar integralmente.

O que os experimentos mostram, porém, é que a maior parte das pessoas está no meio-termo. São os chamados ambivertidos: nem extrovertidos demais, nem introvertidos demais. Quando um questionário sobre traços de personalidade oferece um gradiente (algo do tipo “de 1 a 10, o quanto você concorda com a afirmação…”), quase todo mundo escolhe valores intermediários, e o gráfico exibe uma curva normal em vez de uma bimodal.

Isso significa que, na verdade, não existem apenas 16 tipos de personalidade. Ou 9, ou 4, ou qualquer outro número de opções que um teste baseado nas hipóteses de Jung ofereça. Seria assim caso as pessoas se distribuíssem da maneira como as letrinhas preveem: ou extrovertido (E), ou introvertido (I).

Na verdade, as letrinhas forçam essa dicotomia onde ela não existe, gerando um resultado desnecessariamente simplificado: pessoas 51% extrovertidas e pessoas 99% extrovertidas receberão ambas um E, mas alguém 49% extrovertido fica com um I.

(Esse erro fica na conta de Myers e Briggs. Jung tinha plena consciência de que a personalidade se distribuía em gradientes, e alertou: “Não há um extrovertido puro ou um introvertido puro. Tal homem estaria em um asilo para lunáticos. Estes são apenas termos para designar um certo pendor, uma certa tendência. Existem pessoas que são razoavelmente bem equilibradas e são tão influenciadas pelo mundo interior quanto pelo exterior”.)

O MBTI não é criticado apenas pela maneira como ele mede nossos traços, mas também pelos próprios traços que ele se propõe a medir. Para entender essa crítica, é uma boa compará-lo com o que hoje se considera o padrão-ouro das teorias sobre personalidade, pelo menos entre os defensores da psicologia baseada em evidências. É o chamado Modelo dos Cinco Fatores (5FM), também conhecido pelo apelido Big Five ou pelo acrônimo OCEAN. Existe ainda uma versão com seis fatores, o 6FM ou HEXACO.

A ideia do 5FM é que nossa personalidade se organiza em torno dos seguintes eixos (em inglês, a primeira letra de cada eixo gera o já mencionado acrônimo OCEAN):

 

Abertura a experiências (tem a ver com intelecto, imaginação e cabeça aberta);

Conscienciosidade (seu grau de regramento, organização, planejamento);

Extroversão (dispensa explicações);

Amabilidade (o quanto você é amigável e otimista);

Neuroticismo (seu grau de instabilidade emocional).

 

A primeira virtude dos testes construídos com base no 5FM é que cada indivíduo recebe cinco pontuações absolutas, uma para cada traço — e também cinco porcentagens relativas, que mostram como essa pessoa se compara à média da população (por exemplo: eu posso ser mais extrovertido do que 25% ou que 81% dos demais testados). Não há dicotomias, apenas gradientes.

Mas o pulo do gato é entender como os psicólogos concluíram que esses cinco fatores são realmente adequados para medir personalidades. A ciência, afinal, lida com a observação da natureza. Mas como coletar evidências de que algumas pessoas de fato são mais neuróticas ou amáveis ou abertas à experiência do que outras?

Se há qualquer componente inato na personalidade, então espera-se que mesmo indivíduos de etnias e background distantes do Ocidente exibam esses mesmos traços básicos — e tenham vocabulário em seus idiomas para se referir a eles. Também é razoável hipotetizar que animais próximos de nós, como os chimpanzés, exibam padrões de comportamento organizados de forma parecida. Afinal, somos semelhantes a eles em fenótipo e genótipo.

Também é interessante, claro, que exames como ressonâncias magnéticas sejam capazes de identificar diferenças na atividade cerebral de pessoas com pontuações diferentes nessas escalas. Isso demonstraria que há de fato fenômenos elétricos e bioquímicos subjacentes ao comportamento.

As escalas do Big Five levam tudo isso em consideração. Tanto é que encontramos quatro dos cinco traços de personalidade em cães, e o traço que fica de fora em animais domésticos (conscienciosidade) aparece em chimpanzés. A análise do léxico de diversas culturas identifica esses eixos de forma consistente.

A distribuição desses traços obedece à curva normal, e isso é o que qualquer biólogo espera de uma característica determinada ao menos parcialmente pelos genes. Além disso, cada um dos eixos do Big Five tem valor adaptativo – ser naturalmente neurótico ou afável têm consequências claras para a sobrevivência e reprodução de um indivíduo em uma espécie social –, e portanto é razoável pensar que em algum momento esses traços tenham estado (ou quiçá ainda estejam) sob seleção natural ou sexual.

Por exemplo: um calhamaço de artigos científicos comprova que “introvertidos são mais sensíveis a vários tipos de estímulo, de café a um barulho alto ou o burburinho monótono de um evento corporativo” (as palavras são de Susan Cain no livro Quiet, ou "O Poder dos Quietos", no Brasil). Em exames, certas áreas do cérebro dos introvertidos se ativam mais que nos extrovertidos em resposta a estímulos sensoriais, o que explica o incômodo maior com festas, reuniões e britadeiras.

Um grande problema no MBTI é que algumas das escalas hipotetizadas por Jung não sobreviveram ao escrutínio empírico explicado acima. Embora ele tenha acertado a importância do binômio introversão-extroversão, seus críticos apontam falhas em outros eixos.

Veja, por exemplo, a suposta dicotomia entre pensamento (T) e sentimento (F), indicada pela terceira letra de um acrônimo MBTI. Na verdade, as evidências levam a crer que esses são dois traços diferentes, que não se cancelam. Uma pessoa pode tomar uma decisão que ao mesmo tempo é irracional e ignora os sentimentos alheios. Ao mesmo tempo, há decisões que respeitam tanto a lógica quanto a empatia.

“Usar a lógica para tomar decisões não tem nada a ver com seu grau de preocupação com a maneira como essas decisões afetam os outros”, escreve Adam Grant, colunista do New York Times e professor de Psicologia Organizacional na Wharton School, que oferece o curso de administração mais tradicional dos EUA. Os próprios aplicadores do teste admitem que “a escala T-F tem a confiabilidade mais baixa das quatro”.

A distinção entre pessoas intuitivas e pessoas que se pautam pela experiência empírica também é questionável: intuição, hoje sabemos, é uma maneira de agir rápido com base na experiência acumulada em ocasiões anteriores.

Se o MBTI é tão limitado do ponto de vista psicométrico e existe uma alternativa que gera resultados muito mais consistentes, então o que explica a preferência massiva de departamentos de RH pelos testes junguianos?

Um motivo é que o MBTI criou raízes sólidas na cultura corporativa. Há milhares de coaches que pagaram US$ 1.700 para se qualificar em um curso oficial de aplicação do teste. No livro “Personality Brookers”, a jornalista e acadêmica Merve Emre faz essa qualificação e mergulha nos arquivos e documentos de Myers e Briggs, hoje armazenados na Universidade da Flórida.

Sua apuração revela uma espécie de culto irracional em torno da tipificação de pessoas nas 16 categorias. “Já é um fato bem estabelecido há algum tempo que o indicador de tipos não é válido cientificamente (...) e que ele é o carro-chefe de uma empresa lucrativa, cujos interesses se assentam numa encruzilhada sombria entre a psicologia industrial e a auto-ajuda”.

Outro motivo para a formação de um séquito de seguidores fiéis é o efeito Forer (ou efeito Barnum, em referência a uma frase do empresário P. T. Barnum, que definia assim seu museu de curiosidades: “sempre temos alguma coisa para qualquer um”. Com isso, ele afirmava que qualquer pessoa, independentemente de seus gostos pessoais, que entrasse em sua exposição encontraria algo de interessante ou divertido. Tecnicamente, o efeito Forer prevê que as pessoas em geral (“qualquer um”) tendem a se identificar e tratar como verdadeiras “revelações” pessoais afirmações, na verdade, vagas, lisonjeiras (“alguma coisa”) e que se aplicam à maior parte da população.

Assim como a interpretação de um mapa astral completo, as descrições dos “tipos” do MBTI são vagas e têm um tom laudatório: reforçam as qualidades e amenizam os defeitos de cada tipo. Desse modo, servem como uma espécie de espelho imperfeito, que abre espaço para insights sobre nós mesmos e explica a gratidão e o senso de ordem que algumas pessoas sentem após realizar o MBTI. É reconfortante se colocar numa caixa e se definir a partir dela.

O MBTI poderia passar por um “retrofit” metodológico e teórico para se tornar melhor à luz da psicologia baseada em evidências? Até poderia, mas aí ele precisaria adotar porcentagens, em vez de dicotomias bimodais fictícias; avaliar traços de personalidade cuja existência foi verificada empiricamente e abandonar os textos que descrevem cada arquétipo. Ou seja: precisaria se tornar o OCEAN. E o OCEAN já existe. (O teste online 16Personalities, diga-se, já é uma espécie de MBTI com adaptações inspiradas no OCEAN, e adota os gradientes). Essa é a vantagem de trabalhar com evidências: todos os caminhos levam à mesma Roma.

Bruno Vaiano é jornalista.

 

Agradecemos ao livro A Skeptic 's HR dictionary (“dicionário de RH dos céticos”) do belga Patrick Vermeren, sem edição no Brasil. Ele gentilmente cedeu alguns capítulos para a elaboração deste texto. Agradecemos também a Josemberg Andrade, psicólogo e professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações (PSTO) da Universidade de Brasília (UnB). Nota: realizamos uma breve edição no primeiro parágrafo do texto para retificar uma afirmação incorreta sobre Carl Jung.

Correção (10/11/2021): A versão original deste artigo afirmava que o livro "Quiet", de Susan Cain, não tinha edição em português. Na verdade, o livro foi traduzido como "O Poder dos Quietos". O texto foi alterado para refletir o fato.

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