Levantamento detecta "nepotismo" em publicações científicas

Questão de Fato
2 fev 2022
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nepotismo

 

Uma nova espécie foi descoberta na floresta de periódicos científicos que viceja pelo planeta. Pesquisadores do Canadá, França, Itália e Reino Unido detectaram o que decidiram chamar de “veículos de autopromoção” ou “nepotistas”. São aqueles que publicam grande número de artigos assinados pelos próprios editores ou membros dos conselhos editoriais, ou apaniguados. O artigo em que relatam o estudo que fizeram foi publicado na PLOS Biology.

No levantamento, os autores analisaram 5.468 periódicos da área de biomedicina entre 2015 e 2019. Uma das inspirações para o trabalho foi a controvérsia envolvendo o microbiologista francês Didier Raoult, diretor do Institut Hospitalo-Universitaire Méditerranée Infection, na França, que, com sua equipe, publicou um estudo altamente questionável no International Journal of Antimicrobial Agents, sobre o uso de hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19.  O editor-chefe dessa revista, Jean-Marc Rolain, trabalha no instituto de Raoult (e se reporta a ele) e também é signatário do artigo. De acordo com os autores, isso pode ou não ser um problema, mas sem mitigação explícita, certamente dá a impressão de potenciais conflitos de interesse.

A equipe de Raoult não parou aí, no entanto. De acordo com outro paper, dos mesmos autores, publicado no BMJ Evidence-Based Medicine, ela divulgou quatro outros artigos em periódicos onde autores eram membros do corpo editorial ou editores-chefes, e que estavam abaixo dos padrões usuais de qualidade de pesquisa. Entre eles, uma chamada meta-análise sobre a eficácia terapêutica da hidroxicloroquina, publicada em New Microbes and New Infections (NMNI) encontrava-se em desacordo com todas as melhores práticas no campo de meta-análises. Por exemplo, incluiu um preprint retratado e congregou diferentes resultados extraídos dos mesmos estudos. 

Ainda de acordo com os autores do artigo do BMJ Evidence-Based Medicine, em seu relatório de 2017 sobre a unidade de Didier Raoult, o Haut Conseil de l'évaluation de la recherche et de l'enseignement supérieur (Alto Conselho para a Avaliação da Pesquisa e do Ensino Superior) francês, uma autoridade independente que inspeciona unidades de pesquisa do país, observou que a “criação da NMNI, que serve para publicar artigos rejeitados por outras revistas, é uma iniciativa um tanto desesperada”.

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Uma inspeção cuidadosa feita pela equipe de pesquisadores canadenses, franceses, italianos e britânicos da produção de publicações do NMNI mostrou que a revista, criada em 2013, publicou 728 artigos até 25 de junho de 2020. Desses, 231 (32%) foram publicados por pelo menos um autor do conselho editorial atual, 226 (31%) por um editor de Marselha, e 235 (32%) por Didier Raoult, que não faz parte do conselho editorial.

O levantamento feito nos 5.468 periódicos, que resultou no artigo publicado em PLOS Biology, mostrou que, em metade deles, o autor mais prolífico havia publicado no máximo 3% do total de artigos de um determinado veículo. Os pesquisadores detectaram, no entanto, um grupo de cerca de 200 revistas em que esse índice do autor com mais artigos publicados era muito maior. Ele era responsável por algo entre 11% e 40% de todos os trabalhos divulgados.

Para refinar os resultados, os autores resolveram analisar aleatoriamente um grupo de 100 periódicos mais detidamente. Constaram que em 61% deles, o autor com maior número de artigos publicados fazia parte do conselho editorial do veículo. Esses autores-editores também eram favorecidos pela rapidez com que seus papers eram publicados. O tempo de análise e aceitação – revisão por pares – dos trabalhos de pesquisadores sem vínculo com a revista era de 107 dias, enquanto para os seus editores ou membros do conselho editorial era de apenas 85 dias.

Para o médico Guilherme Werneck, doutor em Saúde Pública e Epidemiologia pela Harvard School of Public Health e professor das universidades do Estado (UERJ) e Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o trabalho publicado na PLOS Biology “é instigante e toca em um aspecto grave relacionado à ética na publicação científica”, que é se existiria algum favorecimento editorial para artigos oriundos de autores específicos, particularmente se estes autores são membros do comitê editorial da revista. “Entendo que a análise apresentada é relevante e os resultados preocupantes, ainda que o problema evidenciado seja restrito a um conjunto relativamente pequeno de periódicos”, diz.

Além disso, de acordo com ele, seria necessário avaliar cada caso em particular, pois, embora essa concentração seja incomum, poderia ser justificada em eventos específicos de autores que são realmente muito produtivos, particularmente em temas pouco comuns, ou quando um projeto derivou em vários artigos sobre o mesmo tema. “De qualquer forma, é um sinal de alerta para eventuais desvios éticos que merecem nossa atenção”, diz.

O odontólogo Sigmar de Mello Rode, do Departamento de Materiais Odontológicos e Prótese do campus de São José dos Campos da Universidade Estadual Paulista (Unesp), não vê a publicação de artigos por membros do conselhos editorial em suas próprias revistas como um problema em si. “O fato de um membro de um deles publicar um artigo no periódico de que faz parte é uma atitude salutar, embora não seja consenso, porque demonstra que o conselho editorial acredita e prestigia o veículo, submetendo seus artigos para avaliação”, explica. “Inclusive, alguns deles os isentam, parcial ou totalmente, das taxas de publicação, como uma forma de reconhecimento pelo trabalho desenvolvido”.

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Ele alerta, no entanto, que é preciso tomar alguns cuidados. “O membro do conselho editorial não pode participar e nem ter conhecimento, em nenhum momento, do processo editorial e da avaliação do artigo do qual é autor”, diz Rode, que foi editor científico da Brazilian Oral Research (2006-2014). “Além disso, o artigo deve percorrer todo o processo editorial e de revisão por pares como qualquer outro submetido ao periódico; a publicação deve ser eventual e não pode ser recorrente; e nas instruções aos autores devem estar descritas, de forma clara, como a revista procede nesses casos”.

Ele reconhece, no entanto, que nem sempre isso é respeitado. “Infelizmente, ocorre que, em alguns casos, os membros do conselho editorial procuram concentrar sua publicação no próprio jornal para manter um número mínimo desejável de artigos publicados, muitas vezes para atender às bases de indexação ou de avaliação institucional”, lamenta. “Ou ainda, fazer uma referência cruzada (stacking, entre revistas ou autores, para aumentar o índice de citação).”

De acordo com Rode, esse tipo de má conduta é internacional e a lista do Journal Citation Reports (JCR) - uma publicação anual da Clarivate Analytics, que fornece informações sobre periódicos acadêmicos nas ciências naturais e sociais, incluindo fatores de impacto – de 2012, publicado em 2013, teve 66 títulos retirados por essa razão, inclusive cinco brasileiros, que foram punidos também pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “Além de ser falta de integridade, as bases de dados analisam essas práticas e punem as revistas e os autores que as praticam”, acrescenta.

Há várias razões para a prática de publicar no próprio periódico. Uma delas é a pressão que todo o sistema faz. “Hoje, para se conseguir reconhecimento e, consequentemente, financiamento das pesquisas, os números (publicações, fator h e outros) são muito importantes nas decisões dos órgãos de fomento”, explica Luiz Gonzaga de França Lopes, do Departamento de Química Orgânica e Inorgânica da Universidade Federal do Ceará (UFC) e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Química (SBQ). “Isso leva algumas pessoas, em alguns casos, a usar de artifícios antiéticos (e algumas vezes desonestos) para inflarem seus índices”.

Nesse contexto, Werneck lembra que a questão dos efeitos deletérios do produtivismo na ciência já está bem estabelecida. “Sabe-se que, apesar de várias manifestações de resistência (ver, por exemplo, o manifesto de Leiden), a  produção cientifica é um pilar na avaliação acadêmica”, diz. “Enquanto a avaliação basear-se em indicadores de impacto e no número de produções e não na efetiva contribuição do trabalho do pesquisador, haverá sempre um certo ‘estímulo’ ao desvio de conduta na ética em pesquisa”.

Para ele, no entanto, esse desvio não deve ser visto como um problema apenas de “pessoas propensas a esta prática”, mas um continuum de práticas mais ou menos graves que permeia a comunidade cientifica. “Basta ver como aumentou, nos anos recentes, o número de retratações de artigos”, ressalta. “E esses são os casos mais visíveis. Práticas menos passiveis de identificação, como autoria concedida (inclusão de autores sem que devidamente tenham contribuído) e ‘salamização’ da produção (divisão da produção em pequenos subconjuntos de resultados para incrementar o número de artigos derivados da pesquisa) são, certamente, muito comuns”.

Assim como suas causas, as consequências da prática de privilegiar os membros do próprio conselho editorial na publicação de artigos também são diversas. “O prejuízo é sentido tanto individualmente (pesquisadores que não conseguem ter seus artigos publicados em boas revistas, devido a critérios outros que não mérito, por exemplo, país e instituição de origem, ser membro de conselho editorial do periódico), quanto coletivamente”, diz Werneck. “Isso porque o conjunto de publicação sobre um certo tema que fica disponível não reflete tanto o que se conhece de fato, mas sim os processos que fazem com que pessoas e instituições sejam favorecidas, levando a uma distorção do conhecimento acumulado sobre aquele assunto”.

“O processo editorial sempre vai ter vieses, já que pesquisadores de uma mesma área frequentemente se conhecem”, diz Olavo Amaral, do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da UFRJ e coordenador da Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade. “Então, mesmo colocando regras mais claras, seria muito difícil de eliminar o problema – e talvez a gente tenha que aceitar que, se a avaliação não for cega (o que também é difícil de implementar), o viés é inevitável. Pessoalmente, sou favorável a peer review aberto (e assinado) como forma de explicitar potenciais vieses e conflitos de interesse quando eles existem”.

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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