A nova alvorada dos crédulos

Apocalipse Now
2 jul 2021
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ET 1950

 

No fim de junho, o gabinete do diretor nacional de Inteligência dos Estados Unidos divulgou sua Avaliação Preliminar sobre Fenômenos Aéreos Não-Identificados. (UAPs, na sigla em inglês). Essa é a nova terminologia para o que, até pouco tempo atrás, era chamado de UFO ou óvni. A avaliação, feita em resposta a pressão no Congresso, é, para usar uma expressão da língua inglesa, underwhelming (algo como “desimpressionante”). Com nove páginas (incluídos já dois apêndices), basicamente se resume a um pedido de mais verbas para investigar essas coisas direito.

É interessante tentar entender como se chegou a este ponto, e o papel da mídia no processo. Há menos de uma década, em março de 2013, a revista 1843, irmã mais luxuosa e filosófica do distinto semanário britânico The Economist, publicava um artigo sobre algumas mudanças culturais que, talvez, estivessem sendo causadas ou aceleradas pelas novas tecnologias: elas estariam nos tornando mais racionais. É fofo ver como éramos ingênuos naquela época.

Com o título “The Twilight of the Gullible”, algo como “O Crepúsculo dos Crédulos”, o texto sugere, entre outras coisas, que a popularidade das câmeras de celular estaria levando ao fim da ufologia: a onipresença desses dispositivos vinha causando não um aumento, mas uma queda drástica no número de novas imagens de coisas borradas vistas no céu por gente na rua, durante décadas o arroz-com-feijão da caça aos discos voadores.

Mal sabia o autor do artigo que outras tecnologias de ponta, essas fora do alcance do cidadão comum — sistemas de radar e câmeras infravermelhas montados em aviões e navios militares —, estavam prestes a dar um novo fôlego às elucubrações extraterrestres.

Vídeos de objetos estranhos no céu, registrados principalmente por aviões da Marinha americana, já vinham circulando em fóruns online de teoria da conspiração pelo menos desde 2007, mas foi em dezembro de 2017 que o assunto explodiu diante dos olhos do grande público, por obra e graça de uma reportagem no jornal The New York Times.

 

 

AATIP

Já tratei, em outro artigo, do papel dessa peça do NY Times de 2017 no processo de gourmetização da ufologia. Nela, os autores alegam que o Departamento de Defesa dos Estados Unidos havia mantido, de 2007 a 2012, uma espécie de “serviço secreto” para investigar óvnis, incluindo vídeos de voos militares classificados como confidenciais. Alguns desses vídeos acompanharam a reportagem.

Chamado AATIP (“Advanced Aerospace Threat Identification Program”, “Programa de Identificação de Ameaças Aeroespaciais Avançadas”), o serviço havia sido criado a pedido de um senador entusiasta de ufologia, Harry Reid, estimulado pelo empresário (e entusiasta do paranormal e de coisas espaciais) Robert Bigelow, um contribuinte assíduo das campanhas eleitorais de Reid.

O orçamento do AATIP, de US$ 22 milhões — troco de padaria, em termos de gasto militar americano — havia sido empenhado na contratação de serviços fornecidos por Bigelow, incluindo a análise de “materiais” e “ligas metálicas” supostamente recuperados de óvnis.

Fora a parte da história que revela o que poderíamos chamar de “democracia em ação” — doador de campanha eleitoral convence político, agraciado por doação, a criar um gasto público que será usado para pagar, por coincidência!, serviços prestados pelo próprio doador —, o relato foi posto em dúvida quase que imediatamente.

 

Punk rock

Primeiro, logo ficou claro que nem o AATIP e nem os vídeos apresentados junto da reportagem jamais haviam sido realmente “secretos”, mas apenas obscuros (vamos lembrar que pelo menos um vídeo já circulava na internet desde 2007). Porta-vozes do governo americano também nunca deixaram claro até que ponto o AATIP se dedicava a investigar óvnis, ou se as tais “ameaças aeroespaciais avançadas” seriam tecnologias de outras potências militares, como China e Rússia. Os supostos “materiais” e “ligas” extraterrestres nunca apareceram.

A jornalista Sarah Scoles, no livro-reportagem “They Are Already Here: The UFO Culture and Why We See Saucers”, chama atenção para outra coincidência interessante: no mesmo dia em que saía a reportagem do NY Times sobre o AATIP, entrava no ar o website da To The Stars Academy of Arts and Science (TTSA), empresa criada por Tom DeLonge, ex-vocalista da banda de punk rock blink-182, e “tripulada” por muitas figuras do meio ufológico que também eram fontes do Times. O site da TTSA continha os mesmos vídeos militares que ilustravam a matéria do diário novaiorquino.

O que a TTSA realmente faz ainda é algo difícil de definir — eles às vezes anunciam algum tipo de pesquisa pseudo/para/científica, mas seu principal negócio parece ser produzir camisetas e documentários sobre ETs. É inegável, porém, que a firma tem a simpatia da redação do NY Times, que lhes franqueia amplo espaço e publica material sobre óvnis com um timing que tende a favorecer a companhia: em 2019, o diário soltou matéria sobre o assunto que funcionou perfeitamente como peça promocional para uma séria de TV do History Channel produzida pela TTAS.

 

Investigação

Em 2019, os EUA finalmente liberaram uma lista de projetos financiados com a verba do AATIP, e a relação parece saída de um gibi da Marvel, com temas como pesquisa sobre extração de energia do vácuo e teletransporte. Lembremos que o Departamento de Defesa decidiu encerrar o programa em 2021.

Alguns dos projetos desse órgão extinto têm sobreposição com o que a TTAS diz que faz em sua divisão de “ciência e tecnologia”. Também há uma sobreposição de equipes, com supostos ex-funcionários e ex-terceirizados que prestavam serviços ao AATIP agora na equipe da TTAS.

Um desses transplantados é o engenheiro Harold (“Hal”) Puthoff, uma figura carimbada da cena pseudocientífica internacional pelo menos desde a década de 1970, quando deixou-se engabelar por Uri Geller. Por esse “feito”, entre outros, Puthoff e seu então colega Russell Targ foram apelidados pelo mágico e investigador cético James Randi (1928-2020) de “Laurel e Hardy da parapsicologia”, numa referência à dupla cômica do cinema. Os interesses de Puthoff também incluem energia de “ponto zero” (a ideia de que seria possível extrair energia do vácuo).

De qualquer modo, a reportagem do NY Times em 2017 e os gestos subsequentes de simpatia do jornal pela TTAS e pela ideia de óvnis em geral criaram as condições necessárias de respeitabilidade pública para que o Congresso americano cobrasse dos serviços de inteligência uma posição a respeito dos tais UAPs. O que redundou na formação de uma Força Tarefa UAP (UAPTF) e na avaliação preliminar do mês passado. A UAPTF deve atualizar o relatório em 90 dias.

 

Explicação

Além de dizer que mais verba é necessária antes que se possa concluir qualquer coisa, o trabalho preliminar da UAPTF especula que cada UAP que venha a ser devidamente explicado irá se encaixar em uma de cinco categorias: entulho aéreo (drones, sacos plásticos, balões), fenômenos atmosféricos (inversões térmicas, reflexo do Sol em nuvens), protótipos militares ou civis, equipamento militar estrangeiro e “outros”. A lista não inclui “naves ETs”, mas o NY Times (sempre ele) fez questão de noticiar a publicação usando o seguinte título: “EUA não têm explicação para objetos não identificados e não chega a descartar alienígenas”.

Essa fórmula retórica, “não chega a descartar”, é extremamente ingênua ou profundamente desonesta. É óbvio que, na ausência de uma explicação definitiva e satisfatória, nenhuma alternativa está de todo “descartada”.

É possível, até, argumentar que não há candidata a explicação — para qualquer tipo de fenômeno — que possa realmente ser, a rigor, “descartada”. Com exceção das impossibilidades lógicas, hipótese alguma jamais chega a ter sua probabilidade reduzida a zero (em oposição, digamos, a um valor não nulo, mas arbitrariamente baixo). Trata-se de um problema parecido ao da “prova de inexistência”, que já comentei em um texto anterior.

A despeito da retórica sugestiva, o fato de “nave de outro planeta” não ser uma categoria presente na lista classificatória da força-tarefa deve significar algo, não?

Muitos dos vídeos “misteriosos” feitos por pilotos da Marinha americana já foram, de fato, explicados sem apelar a homenzinhos verdes. Há um bom apanhado a respeito neste link, mas resumindo: são ilusões causadas pelo processamento digital das imagens infravermelhas, ou pelo movimento das câmeras. Como explica o criador do site Metabunk, Mick West, em um dos vídeos “o que se vê é o brilho dos motores em infravermelho, muito maior que o avião. Parece estar girando por causa do sistema de câmeras, montado num estabilizador giratório”.

Resta esperar para ver o que a UAPTF vai apresentar em seu relatório completo, e se receberá a verba solicitada para conduzir investigações mais aprofundadas. A última vez que militares e cientistas a serviço do governo americano se debruçaram a sério sobre a questão UAP (na época óvni), no período entre 1952 e 1969, a conclusão final foi de que não havia nada de extraordinário, revolucionário ou extraterrestre nos fenômenos analisados. Setenta anos depois, vamos repassar a lição.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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