Incerteza não é desculpa para irresponsabilidade

Apocalipse Now
12 jun 2021
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Toda afirmação científica é provisória e incerta: a atitude científica é a de abertura para correção e revisão à luz de novas evidências, e como o universo das evidências concebíveis é infinito (e daquelas que somos, hoje, incapazes de conceber ou imaginar, maior ainda), mesmo verdades científicas que nos parecem sólidas como rocha podem, talvez, um dia, se mostrar erradas.

Esse fato filosófico é comumente explorado por charlatões e fanáticos de todo tipo para empurrar curas milagrosas e doutrinas estapafúrdias ao público desavisado. Mas essa exploração é desonesta, porque baseada numa falsa simetria: não é porque os cientistas talvez estejam errados que sua ideia maluca de estimação provavelmente estará certa.

A falibilidade da ciência não é uma característica exclusiva, mas algo comum a todas as formas humanas de buscar conhecimento: outras técnicas tentadas ao longo da história (e desde a pré-história) – revelação divina, introspecção profunda, acúmulo de tradições, experiência vivida, tentativa-e-erro sem controles adequados, palpites de gente carismática, interpretação de textos “inspirados”, etc. — têm um histórico de fracassos ainda mais embaraçoso do que o das ciências.

O grande respeito conquistado pelo fazer científico nos últimos 400 anos vem, principalmente, do fato de essa ferramenta ter se mostrado capaz de resolver problemas que, por milênios, frustraram as mais excelsas alternativas; e de que, quando há conflito entre o resultado da ciência e o de alguma alternativa, ou ambas estão erradas, ou é a ciência que costuma estar certa. Nenhuma de nossas vias de acesso à realidade material é perfeita, mas a ciência é a que entrega os melhores (ou menos piores) resultados.

 

Benefício

Assim que fazemos as pazes com o fato de que não existem certezas absolutas, sejam científicas ou de qualquer outro tipo, somos levados a ponderar critérios de confiabilidade e responsabilidade. Se nenhum conhecimento é certo, qual o mais confiável? E se nenhum curso de ação garante sucesso, qual o mais responsável?

Espertalhões a serviço das mais variadas pseudociências – propostas que buscam se revestir do prestígio e do respeito devidos às ciências, mas sem fazer o trabalho duro ou mostrar a humildade necessária – travam uma luta renhida para evitar que essas questões sejam sequer formuladas. Seu único argumento (que é único, embora se manifeste de infinitas maneiras) é o de que, dada a incerteza inerente ao processo científico, vale tudo – ou, mais especificamente, vale a proposta lá deles, seja qual for: reiki, horóscopo, folha de arruda ou cloroquina.

A pseudociência existe no espaço aberto pela falsa dicotomia que mencionei antes: se a ciência pode estar errada, então minha ideia pode estar certa. É como dizer que, já que o Sol não gira em torno da Terra, então tudo bem afirmar que gira em torno da Lua. O único argumento da pseudociência, qualquer pseudociência, é o apelo ao benefício da dúvida.

Quando nos lembramos de que as questões da confiabilidade e da responsabilidade precisam ser consideradas, de repente fica mais do que claro que o benefício da dúvida, assim como os benefícios do INSS, não deve ser dispensado a torto e a direito e para qualquer um, mas concedido de modo parcimonioso. Epistemologia é uma daquelas áreas onde, infelizmente, gentileza gera gente folgada. É preciso ser rigoroso e perguntar: afinal, o quanto essa alegação é confiável, para começo de conversa? E dadas as realidades diante de nós – urgência do momento, limitações de recursos, custos de oportunidade – é responsável levá-la a sério?

 

Mau cheiro

Cadaverina e putrescina são duas moléculas orgânicas que dão à carne em decomposição seu odor característico. Detectadas pelo olfato humano, tendem a causar repugnância – representam um sinal de alerta para que evitemos o consumo do que quer que esteja ali. Seus equivalentes, na retórica das pseudociências, são a alegação universal de existência e a vindita iminente.

Uma alegação universal de existência é a afirmação de que alguma coisa existe, mas sem especificar onde, como ou de que forma. Foi identificada como problemática pelo filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994), em seu livro “Conjecturas e Refutações”.

O exemplo usado por Popper foi a afirmação de que "existe uma pérola que é dez vezes maior que a pérola imediatamente menor". Explica ele: "Uma alegação estrita ou pura de existência aplica-se à totalidade do Universo, e é irrefutável, simplesmente, porque não há um método pelo qual possa ser refutada. Pois, mesmo se fôssemos capazes de realizar uma busca em todo o Universo, a alegação existencial pura ou estrita não teria sido refutada por nosso fracasso em achar a pérola exigida, já que ela pode, sempre, estar escondida no lugar para onde não estamos olhando".

Outros exemplos comumente citados são o bule de chá em órbita do Sol, de Bertand Russell (1872-1970), e o bolo de chocolate entre os anéis de Saturno, de Theodore Sturgeon (1918-1985).

Nos casos de Russell e Sturgeon, o domínio espacial definido é menor que a totalidade do Universo – o Sistema Solar, a órbita de Saturno –, mas esses são volumes de espaço enormes na comparação com os objetos citados (um bule, um bolo), e dinâmicos o bastante para que a ressalva do filósofo – "ela pode, sempre, estar escondida no lugar para onde não estamos olhando" – seja válida.

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Basta substituir “pérola” (ou “bule”, ou “bolo”) por “lugar que controlou a pandemia usando cloroquina” para ver como o argumento é útil e flexível: há mais de 120 mil municípios no planeta, e mesmo se pudéssemos conferir um a um, nada garante que, no tempo que levaremos para completar a lista, algo não tenha mudado num dos locais já vistos. Um modo salutar de dispersar essa fedentina é a aplicação correta do ônus da prova: sempre cabe a quem afirma. Se a pérola existe, mostre. Se o remédio funciona, prove.

Muito se tem falado sobre “a impossibilidade de se provar a hipótese nula”, que é cientifiquês para “não dá pra provar que alguma coisa não existe (ou não funciona)”. Isso é tão verdadeiro quanto irrelevante. Na ausência de prova positiva, a hipótese nula se mantém: ela não precisa ser “provada”. Até que o contrário se estabeleça, vale como um dado bruto da realidade. Quem cobra prova negativa está espalhando cadaverina retórica.

Já a falácia da vindita iminente trabalha com o suspense: não temos prova ainda, mas ela vai chegar a qualquer momento. Quem lida com medicina alternativa, criacionismo e a paranormalidade conhece o refrão: o estudo irrefutável que provará que os céticos estão errados vai sair a qualquer momento; a Teoria da Evolução está à beira de desmoronar. Em alguns casos, como o da homeopatia, essa revelação iminente já está com um atraso de quase 300 anos. O colapso da evolução darwiniana está quase 200 anos atrasado, e a prova de que pessoas leem mentes e movem objetos com a força do pensamento espera, logo ali na esquina, há mais de 100.

 

Vaidade

Isso não é um argumento, mas manobra psicológica: quem diz “você não perde por esperar” dá-se ares de sabedoria oculta, conhecimento privilegiado, e tenta desestabilizar a confiança do interlocutor, mexendo com sua vaidade – afinal, ninguém quer afirmar algo, agora, só para correr o risco de ficar com a cara no chão daqui a pouco. Quem lança essa putrescina no debate tenta usar um cheque sem fundos, pré-datado, para pagar uma dívida epistêmica que vence agora, no presente. Aceita quem quer.

A reação correta, aqui, é dar de ombros: óquei, quando a tal prova chegar, a gente conversa; até lá, vale o princípio anterior, de que na ausência de prova positiva, a hipótese nula – consolidada a partir da melhor informação científica disponível no momento, ou seja, na informação mais confiável – se mantém, e agir em consonância com ela é o curso mais responsável.

Amplificar a percepção de incerteza da ciência para evitar uma discussão clara de questões reais de confiabilidade e responsabilidade é desonestidade intelectual – canalhice, se me permitem pôr os eufemismos de lado por um momento. Transigir com ela é perder-se num labirinto sem saída.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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