Lombroso e os estigmas da tribo

Apocalipse Now
2 out 2021
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O antropólogo e médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909) legou ao mundo a falsa ideia de que certas pessoas têm uma essência criminosa, uma predisposição inevitável para a prática do mal. Mais ainda, que essa essência pode ser identificada na aparência física, por meio dos “estigmas lombrosianos”, que se manifestam, por exemplo, no formato do nariz, da boca, das orelhas, na distância entre os olhos, na conformação dos dedos das mãos e dos pés.

Lombroso foi uma daquelas almas penadas da segunda metade do século 19, no período imediatamente posterior à publicação de “A Origem das Espécies”, que imaginaram que a Teoria da Evolução sancionava “cientificamente” seus preconceitos racistas e sexistas. A antropologia lombrosiana pressupunha uma hierarquia moral na evolução da vida terrestre, com os animais e os fenótipos humanos não-europeus nos degraus inferiores de uma escada que culminava, claro, no homem branco de fraque e gravata.

Os “estigmas lombrosianos”, de modo muito pouco surpreendente, confundiam-se com características físicas comuns nas raças “selvagens” e “inferiores” da África, Ásia e das Américas e, quando a musa da má poesia tocava o espírito do Dr. Cesare, também de animais não-humanos: caninos proeminentes seriam, por exemplo, sinal de afinidade evolutiva com ratos.

A lambança feita por Lombroso com a teoria de Darwin é assunto de um dos ensaios mais divertidos de Stephen Jay Gould (1941-2002) em seu livro “A Falsa Medida do Homem” (“The Mismeasure of Man”). Citando paralelo construído numa das notas de rodapé da edição crítica e anotada do romance “Drácula” organizada pelo poeta e professor de literatura Leonard Wolf (1923-2019), Gould aponta que a descrição física do conde vampiro segue, verbatim, as características do “homem criminoso” lombrosiano.

O impacto das ideias de Lombroso na cultura do século 19, e além, foi enorme: Mr. Hyde, o duplo maligno do benevolente Dr. Henry Jekyll, não é descrito com muita clareza na obra original de 1886 de Robert Louis Stevenson (“[Hyde] produz um forte senso de deformidade, embora eu não seja capaz de especificar em que ponto”, diz um personagem), mas a maioria das adaptações cinematográficas fazem de Hyde uma figura simiesca – como se a expressão física do mal reprimido na alma de Jekyll tivesse de ser um retrocesso a “etapas anteriores da evolução”, supostamente mais próximas do macaco.

Ah, sim: a imagem que ilustra este artigo sobrepõe o médico e o monstro, tal como aparecem no filme clássico de 1932, “Dr. Jekyll & Mr. Hyde”, dirigido por Rouben Mamoulian (1897-1987). O ator Fredric March (1897-1975) desempenha ambos os papéis.

Mesmo as histórias originais de Sherlock Holmes, escritas por Arthur Conan Doyle (1859-1930) entre 1887 e 1927, embora em geral ambíguas quanto à questão da origem da criminalidade – se social, psicológica ou biológica –, volta e meia usam linguagem e conceitos lombrosianos.

 

Negativo

Seria injusto com os cientistas do século 19 dizer que as ideias de Lombroso foram aceitas e acolhidas sem polêmica. O criminologista britânico Charles Goring (1870-1919), que realmente se deu ao trabalho de medir uma série de características físicas e psicológicas de mais de 3.000 criminosos condenados, testando empiricamente e com rigor estatístico as alegações de Lombroso, concluiu que “as constituições física e mental, tanto de criminosos quanto de cidadãos respeitadores da lei, da mesma idade, altura, classe e inteligência, são idênticas. Não existe um tipo antropológico criminoso”.

Lombroso foi bombardeado por críticas ao longo de toda a vida, principalmente pela fragilidade de seus métodos e pela forma como construía suas conclusões – primeiro formulando hipóteses para depois buscar exemplos que as comprovassem. Mesmo antes Karl Popper (1902-1994) entrar em cena, ficar escolhendo peças de evidência a dedo não era prática bem-vista.

Mas se Lombroso não convenceu os colegas especialistas, convenceu boa parte do público; e muitas políticas públicas eugenistas, incluindo esterilizações forçadas, foram alimentadas e informadas por suas ideias. O tráfico entre pseudociência “pop” e ação política, que tanto escândalo e dor causou na atual pandemia, não é invenção nova.

Lombroso deu uma pátina de respeitabilidade científica à ideia de que existiria uma essência criminosa: pessoas amaldiçoadas com essa essência seriam criminosos natos, por definição, mesmo que jamais tivessem delinquido. Cada uma delas representaria, por assim dizer, uma bomba-relógio ambulante, uma atrocidade em busca de oportunidade.

Já os indivíduos sem estigmas lombrosianos que cometem crimes seriam vítimas das circunstâncias, não bandidos “de verdade”.

Como filósofo David Livingstone Smith escreve em seu livro “On Inhumanity” (“Sobre Desumanidade”), essencialismo desse tipo é o que faz do racismo um vetor tão poderoso para ideias (e práticas) genocidas. Se todo um povo, ou todas as pessoas que compartilham de um mesmo fenótipo – um formato de orelha ou um tom de cor da pele – são terroristas à espreita, almas bandidas à espera da menor provocação ou oportunidade, será que prevenir não seria melhor do quê...?

 

Positivo

Se a história, a ética e a filosofia já produziram alertas abundantes (mas, talvez, ainda insuficientes) sobre os perigos do que podemos chamar de “lombrosianismo negativo” – a ideia de que certos grupos humanos são inerentemente malignos, que mesmo os membros desses grupos que, até agora, têm se comportado de forma honesta e honrada são, na verdade, vilões adormecidos, prestes a despertar a qualquer momento –, muito menos atenção tem sido dada ao erro oposto, o lombrosianismo positivo.

Essa é a ideia de que certos grupos são inerentemente incapazes de fazer o mal, que qualquer vilania praticada por um membro dessas supostas elites da ética e da moralidade será um mal-entendido, um deslize momentâneo, um triste lapso, certamente cometido em nome de uma causa nobre. O “cidadão de bem” que atropela e foge sem prestar auxílio é uma pobre vítima das circunstâncias; o “meu amigo” que bate na mulher foi, afinal, provocado.

Se o lombrosianismo negativo é predominantemente hereditário ou fenotípico, o positivo – embora também possa incorporar tais preconceitos – é mais de classe, grupo ou posição social: são mais tribos do espírito e da oficina do que do sangue. O que inclui alguém no grupo dos “bons, não importa o que façam”, dos impolutos inimputáveis, é geralmente um diploma, um cargo, uma patente ou um título.

Os impolutos são corporativistas: reconhecem-se entre si, e veem no desafio à idoneidade de um, uma ameaça (geralmente mais imaginária do que qualquer outra coisa) ao status de todos. A fantasia de que “em nosso meio” não há canalhas beneficia, é óbvio, os canalhas reais – que o pacto de proteção mútua torna hipocritamente invisíveis.

O desastre humano desencadeado pelo vírus SARS-CoV-2, aprofundado pela cupidez e pela soberba de muitos dos que deveriam ter atuado de modo decisivo para atenuá-lo, foi ainda mais agravado por esse lombrosianismo positivo: médicos, professores universitários, militares, promotores, juízes, jornalistas, políticos, cientistas – cada vez que um desses grupos estendeu o manto do “é um dos nossos, dá um desconto” sobre cúmplices da barbárie, mais distante ficou o fim da pandemia e maior, a lista de mortos.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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