Um mergulho em 30 anos de jornalismo

Apocalipse Now
25 nov 2023
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mergulhador

 

O Instituto Questão de Ciência, que mantém esta revista no ar, comemorou cinco anos de existência na última semana. Alguns meses antes, este cronista havia completado 30 anos de carreira jornalística “formal” (eu deveria ter me formado em 1992, mas crises existenciais e outras complicações da juventude só me permitiram colar grau em meados de 1993). Tento manter o nível de autobiografia neste espaço no mínimo, mas dada a afinidade emocional do Homo sapiens por efemérides que caem em múltiplos e submúltiplos de dez, desta vez resolvi abrir uma exceção: prepare-se para um mergulho de três décadas, portanto.

A primeira metade dos anos 1990 não foi uma boa época para encontrar emprego – nenhum tipo de emprego. O país ainda vivia a onda de choque do malfadado Plano Collor (o presidente Fernando Collor de Mello caiu em dezembro de 1992), e o Plano Real só viria em 1994. Sei que é cacoete de velho rabugento sair por aí dizendo “se você acha que os tempos atuais são ruins, devia ter visto...”. Mas, enfim, é isso aí.

Tais circunstâncias me levaram a retornar à minha cidade natal, e a trabalhar num jornal local, onde fiz um pouco de tudo – de assalto a posto de gasolina a denúncia de esgoto a céu aberto em favela – antes de estabilizar na cobertura política, principalmente das idas e vindas da Câmara Municipal. Foi nessa época que tive meu primeiro “choque epistêmico” com a prática jornalística, embora então, provavelmente, o termo “epistêmico” não fosse ainda parte do meu vocabulário.

Voltando um pouco na história: na faculdade havia uma disciplina optativa de estatística para jornalistas, que não cursei, basicamente por preconceito. A palavra “narrativa” ainda não estava na moda na época, mas a ideia geral era que jornalismo existia para “contar histórias”, e que dados e números seriam, no máximo, adornos ou distrações: mais importante do que o número de desabrigados pela chuva era o drama humano de uma família desabrigada.

O erro, óbvio em retrospecto, é que uma coisa não impede a outra; na verdade, deveriam somar-se. Mas a Humanidade tem uma certa fixação por soluções únicas, e esse efeito “ou exclusivo” – uma coisa eliminando a outra – tende a se insinuar mesmo em situações em que um “ou inclusivo” – uma coisa se associando à outra, sempre que possível – seria a solução melhor. No caso, a polarização “time dados” ou “time narrativas” era forte, na época. E eu era 100% “time narrativas”.

Fim da digressão. O jornal ficava bem perto do centro da cidade, e havia desenvolvido o hábito de, de vez em quando, mandar um jornalista ao calçadão central para fazer uma mesma pergunta ao maior número possível de pessoas que estivessem passando por ali. A ideia era mostrar a “voz do povo”.   

Depois de um tempo, esse costume – mantido na maior boa vontade e com a melhor das intenções – foi me incomodando, por várias razões.

Muitas das pessoas entrevistadas ou não tinham opinião sobre o assunto, ou não conseguiam articular suas impressões, ou davam respostas obviamente absurdas ou impublicáveis. Mesmo considerando apenas as respostas civilizadas e racionais, era impossível publicar todas. Com isso, era o redator que, ao selecionar o que iria sair ou não, quem moldava, em última análise, o resultado da enquete. Ele controlava a “saída”. Já o repórter, na rua, tinha total liberdade para entrevistar (ou deixar de entrevistar) quem quisesse. Com isso, ele controlava a “entrada”. O resultado não era a “voz do povo”, mas uma edição parcial das falas de algumas poucas pessoas.

De certa forma, pode-se talvez dizer que a atividade cumpria a função de “dar voz ao povo”, tomando-se “povo” como sinônimo de “gente comum” – pessoas que normalmente jamais seriam entrevistadas por um jornal ou veriam suas fotos na página, e que de repente ganhavam “voz” no papel impresso. Quem sabe, fazia bem à autoestima do entrevistado. Mas e quanto ao leitor? O que isso dizia para ele? Qual a informação relevante de interesse público presente ali?

Não sei se o conceito de “representatividade estatística” já fazia parte do meu repertório, mas intuitivamente me parecia haver algo errado no processo todo, ainda que conduzido, como era, com o máximo de honestidade e de boa vontade por todos. A mera possibilidade latente de manipulação – maliciosa, ou mesmo bem-intencionada – parecia deixar um gosto amargo na boca.

Pulando alguns anos à frente, estou na redação online de um dos maiores jornais do país, num tempo em que “estar online” significava usar uma linha discada. Uma de minhas funções ali é apresentar a internet a um público maior, escrevendo artigos que pudessem ser usados como “guias turísticos” da rede.

Mais de 25 anos atrás, a rede já era um antro de teorias de conspiração; foi lá que encontrei, por exemplo, versões digitalizadas dos documentos “Majestic 12”, uma série de papéis falsificados que supostamente “provam” que o governo dos Estados Unidos teve contato com alienígenas na década de 1950, ou alertas paranóicos sobre o “risco iminente” do experimento HAARP (que para os web-ativistas de 1996 era o raio da morte de Nicola Tesla), ou da sonda espacial Cassini (cujo lançamento em 1997 deveria ser impedido a todo custo, ou a atmosfera da Terra seria impregnada de plutônio).

Esse contato direto também redirecionou meus interesses bibliográficos, e acabei tendo contato com livros como “The 50 Greatest Conspiracies of All Time”, lançado em 1995, e cujos autores depois viriam a atualizar nos volumes “60”, “70”, “80 Greatest Conspiracies of All Time”, até finalmente desistirem e, em 2010, jogarem a toalha com o maciço “The World’s Greatest Conspiracies”, contendo nada menos do que 100 capítulos.

Tudo isso parecia bem distante do trabalho do que chamávamos de “pessoal do impresso”, envolvido em coisas muito mais sérias e relevantes, como eleições, guerras e política econômica. Mas estaria mesmo?

Nessa mesma época, vários dos sóbrios e vetustos “colegas do impresso”, além de uma penca de gente com doutorado e emprego em universidade pública, caíram na esparrela do “livro didático americano” que mostrava a Amazônia “internacionalizada” – uma farsa óbvia, escrita num inglês macarrônico, que supostamente seria fac-símile de páginas de um livro de geografia usado para ensinar às criancinhas dos Estados Unidos que a Amazônia era território sob intervenção da ONU. Fake news avant la lettre, estridente, hilariante, “viralizada” por e-mail (várias das assinaturas automáticas no rodapé desses e-mails refletiam, diga-se de passagem, credenciais impressionantes). E o pessoal “do online” teve de correr para apagar a fogueira e limpar a baba do queixo dos sérios e vetustos colegas de papel e tinta.

Depois de cerca de uma década de treinamento de sobrevivência na selva online, horas de tela e mouse aprendendo a distinguir o que merecia ser levado a sério do que era bobagem, fui me dando conta de como os critérios e processos “do impresso” – da tradição jornalística em geral, na verdade – eram epistemologicamente (aí eu já conhecia a palavra!) inadequados.

De reportagens sobre a nova exibição do Sudário de Turim a perfis de famílias que optavam por não vacinar os filhos, comecei a ver como era fácil fazer tudo certo (entrevistar pessoas relevantes, reproduzir fielmente suas declarações, citar fatos e datas corretamente) e, ainda assim, dar a informação errada (deixar o leitor com a impressão de que o sudário ainda é cientificamente “controverso”, ou de que vacinar ou não vacinar crianças é uma escolha sem maiores consequências).

Para deixar claro, a questão não é que o jornalismo pode ser manipulado por interesses escusos e produzir material deliberadamente falso. Essa é uma possibilidade tão óbvia na teoria quanto (a despeito do que se diz por aí) rara na prática. A verdadeira questão é que mesmo fazendo tudo segundo as “boas práticas” da profissão, e sem nenhum traço de malícia ou má-intenção, ainda assim é possível induzir o público ao erro.

O negócio me angustiava tanto que a primeira coisa que fiz ao deixar a grande imprensa foi escrever um livro sobre o tema em que essa distorção me parecia mais evidente, a cobertura de fenômenos ligados à religião: se você espera ver menções a “efeito placebo” em reportagens sobre curas milagrosas, espere sentado. Um pouco antes do livro, fiz um blog. O livro e o blog chamaram a atenção de certas pessoas e, uma coisa levando à outra, a minha participação, cinco anos atrás, na criação do Instituto Questão de Ciência e desta revista.

Jornalismo e ciência, as duas áreas em que mais me envolvi nesses 30 anos, são práticas que têm muita coisa em comum. Ambas precisam lidar de modo ético e responsável com os graus de liberdade do profissional: que trechos da entrevista utilizar? Que dados publicar?

Ambas precisam tomar cuidado com o viés de confirmação – o risco de enxergar ou procurar apenas aquilo que reforça o ângulo predefinido da pauta (ou a hipótese em estudo). Ambas vivem numa gangorra entre covardia (não dizer tudo o que se sabe de relevante sobre o assunto, ou revestir a descoberta numa linguagem ambígua) e arrogância (afirmar mais do que os dados, ou a apuração, permitem).  

Ambas sofrem uma intensa pressão para confundir a atividade-meio (gerar “papers”, ou narrativas, ou “boas histórias”, ou cliques) com a atividade-fim (chegar o mais perto possível da verdade). Ambas têm profissionais preocupados em corrigir distorções e atualizar normas para que tais distorções se tornem menos comuns. E ambas têm muita gente investida – por interesse ou inércia – em manter o status quo. Não sei se estarei por aqui para ver o estado dessas coisas 30 anos no futuro, mas com o Instituto Questão de Ciência na jogada, tenho certeza de que a briga será boa.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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