Os três poderes da ciência

Apocalipse Now
13 jan 2024
Autor
cientista no microscópio

 

Entre as leituras da virada do ano, reencontrei um argumento falacioso que, pelo jeito, continua a fazer convertidos nas hostes intelectuais: o de que a ciência seria apenas “mais uma historinha” que parte da Humanidade gosta de contar a si mesma sobre como o mundo funciona, em pé de igualdade com outras historinhas preferidas em outros tempos ou lugares.

Exemplo: séculos atrás, acreditava-se que certas doenças eram causadas por espíritos maus que habitavam águas estagnadas, malcheirosas, pântanos e fossas. Hoje, acredita-se que certas doenças são causadas por germes, microrganismos que habitam esses mesmos locais, e/ou são transmitidas por insetos que se reproduzem ali. Nos dois casos, a solução é a mesma – higiene, saneamento básico. Logo, falar “germe” ou “espírito mau” seria apenas uma questão de gosto ou cultura. Na Antiguidade, “espírito” era chique. Hoje, chique é “germe”. Amanhã, quem sabe?

O problema é que as duas “historinhas” estão longe de ser equivalentes. Exceto pela constatação inicial de que água suja, servida ou parada é um risco para a saúde humana, cada narrativa – cada hipótese – tem consequências radicalmente diversas. Se a doença é causada por infestação espiritual, os mosquitos são vistos, talvez, apenas como mais um sintoma da presença das Forças do Mal. Se por microrganismos, os mosquitos são um vetor.

Microrganismos, no caso de bactérias, podem ser combatidos com antibióticos. Espíritos maus combatem-se com orações, encantamentos e exorcismos. É possível avaliar objetivamente qual das duas estratégias salva mais vidas. Infecções podem ser evitadas com vacinas. Ataques de maus espíritos, com preces e amuletos. De novo, é possível avaliar objetivamente qual estratégia de prevenção funciona melhor. E assim por diante.

 

 

Explicar é fácil

De uma hipótese científica madura, espera-se que tenha três poderes: explicativo, preditivo e instrumental. Poder explicativo é a capacidade de dar lógica a um fenômeno, torná-lo menos espantoso, prestar contas de sua causa. Poder preditivo é a capacidade de, a partir da explicação, extrapolar consequências empíricas, práticas, observáveis. Poder instrumental é a capacidade de, a partir da explicação e das predições, estabelecer controle – deduzir cursos de ação, gerar tecnologias.

O controle não precisa, e raramente é, absoluto (ninguém controla o clima, por exemplo), mas a hipótese, idealmente, deve permitir que se tomem decisões que sejam, em geral, melhores do que as ditadas pelo acaso ou pela intuição.

Desses três poderes, o explicativo é, de longe, o mais fácil, barato e, ao menos em nível subjetivo, o mais importante e emocionalmente satisfatório. Obter uma explicação para algo que assombra, assusta ou causa perplexidade reduz a ansiedade, gera sensação de conforto, elimina a vertigem, reorienta a relação com o mundo: traz o prazer emocional da compreensão.

E explicações existem em abundância, para todos os gostos e ocasiões: em livros sagrados, em tratados de filosofia, nas mitologias e folclores, em horóscopos, em autores como Freud, Jung, Marx, Von Mises (entre tantos outros), em teorias de conspiração, na autoajuda, na fantasia e na ficção científica (leitores assíduos de ambos os gêneros sabem como é fácil para um escritor talentoso inventar explicações superficialmente plausíveis para qualquer coisa – de sexo com alienígenas à existência de vampiros; L. Ron Hubbard nem era tão bom assim e conseguiu lançar um movimento em escala mundial).

Explicações podem, dentro de certos limites, produzir os benefícios emocionais, psicológicos e até sociais que se esperam delas, mesmo quando estão erradas. O conforto e o alívio que vêm de finalmente entender alguma coisa não têm, infelizmente, nenhuma relação direta com a pertinência ou veracidade da compreensão obtida. Uma explicação abraçada coletivamente, ainda que falsa, pode gerar laços comunitários importantes. E vamos lembrar que a hipótese dos maus espíritos na água estagnada leva as pessoas a preferir água limpa e corrente, o que tem lá seu valor.

 

 

Prever é difícil

A exigência que se faz quando uma hipótese se pretende científica, de que, além de explicar, também preveja e controle, é uma resposta – uma tentativa de impor freios e contrapesos – à tendência humana de insistir na multiplicação exuberante e descontrolada de explicações, e de tentar separar as que são aceitas por conforto, vaidade ou conveniência das que realmente entregam o que prometem.

A ideia de que uma explicação, para ser válida, deve levar à observação de consequências compatíveis consigo é, até certo ponto, intuitiva: é por isso que teologias se debatem com o Problema do Mal e diferentes ideologias político-econômicas engalfinham-se na hora de interpretar o que realmente ocorre no mundo, em oposição ao que seus modelos teóricos e os pronunciamentos de seus gurus haviam, talvez, indicado. Imunização retórica contra previsões frustradas é, claro, parte do kit fundamental das pseudociências, mas também representa um mau hábito intelectual indevidamente tolerado, a meu ver, em áreas de maior peso e legitimidade dentro do debate público.

Sendo uma criação humana, a ciência também não é de todo imune à tentação de sacrificar fatos para salvar explicações agradáveis ou convenientes, mas é a única atividade organizada cujo ethos coletivo milita conscientemente contra a tendência. É isso que a torna uma ferramenta geradora de explicações sobre a realidade objetiva superior aos eventuais concorrentes, ao ponto de muitos desses concorrentes tentarem ora se apropriar do nome “ciência”, ora penetrar nas instituições encarregadas de defender esse ethos fundamental, com o intuito de enfraquecê-lo.

 

Controlar é perigoso

A terceira perna do tripé (ou, como alguns talvez prefiram, a terceira ponta do tridente) das hipóteses científicas, o poder instrumental, é talvez hoje o aspecto mais controvertido da ciência. O exercício do controle que, graças às ideias científicas que sobreviveram ao teste das predições e da instrumentalidade, conquistamos sobre aspectos da natureza trouxe, entre outras consequências, aquecimento global, extinções em massa, liberou doenças que estavam escondidas e adormecidas em cavernas e florestas, poluiu as águas e o ar, criou armas de destruição em massa e viabilizou o X-Twitter.

Mas também permitiu a um sem-número de pessoas que, sem formas de apoio inexistentes na natureza, não teriam condições de sobreviver ou de levar vidas produtivas e (na medida do humanamente possível) felizes, viver, trabalhar, criar e contribuir para o patrimônio cultural e afetivo da espécie. Temos bombas atômicas, trolls de mídia social e recordes de calor, mas também temos óculos, próteses, vacinas, antibióticos e estatinas.

Parafraseando Isaac Asimov, se o poder que o conhecimento e a busca pelo conhecimento trazem gera problemas, não é evocando o suposto poder da ignorância e do dogma que vamos solucioná-los. O poder instrumental apenas amplifica as possibilidades de realização daquilo que já existe, como potencial, na natureza humana.

 

Distinguir é necessário

Explicações de porquê o mundo é assim ou assado, propostas sobre o que teria causado este ou aquele fenômeno, condição ou situação saem, para adaptar uma expressão muito usada na língua inglesa, por dez centavos a dúzia. Explicações que permitem derivar previsões corretas e criar instrumentos eficazes são animais de uma espécie totalmente diversa, e muito mais rara.

A expectativa de que todas as tentativas explanatórias de dar conta de aspectos do mundo sensível, ou que tenham uma interseção significativa com ele, cumpram também as funções preditiva e instrumental típicas da ciência é às vezes criticada como cientificismo. Uma crítica que pode até ser válida.

Mas não há nada de errado ou exagerado em usar uma versão atenuada desses critérios como régua básica de plausibilidade e de honestidade intelectual – em esperar que quem sustenta alegações supostamente baseadas em fatos seja capaz de apresentar evidência desses mesmos fatos; e que quem oferece explicações que presumem a realidade de certos eventos, ou implicam determinadas consequências, indique onde e como se podem verificar tais eventos e consequências.

Mais ainda, esperar que eventuais deficiências nas tarefas acima sejam reconhecidas, enfrentadas e, se possível, corrigidas – e não escondidas por cortinas de fumaça, tergiversações ou apelos de natureza emocional.

São critérios e exigências assim que permitem distinguir uma teoria de conspiração maluca, como a de que nunca houve astronautas na Lua, de uma conspiração histórica, como o Caso Irã-Contras. Sem eles, ficamos de fato perdidos num mundo de “historinhas” que podem ser úteis para muita coisa – mas não para entender a realidade.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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