Mario Bunge e o Brasil

Artigo
7 out 2020
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No início deste ano, 25 de fevereiro de 2020, o físico e filósofo argentino Mario Bunge (1919 - 2020) faleceu em Montreal, Canadá, país no qual residia há décadas. Sua morte recebeu o merecido destaque em todos os principais meios de comunicação ibero-americanos. No Brasil, infelizmente, o silêncio sobre a sua morte foi proporcional à sua importância.

Bunge foi um dos pensadores mais relevantes da segunda metade do século 20. Embora o início de sua longa carreira tenha se iniciado no âmbito das ciências físico-matemáticas, a filosofia foi a sua grande paixão intelectual. Sem medo de errar, é possível afirmar que gerações de ibero-americanos tiveram seus primeiros contatos com o pensamento científico através de suas obras. Bunge foi autor de dezenas de livros, tanto em espanhol como em inglês, traduzidos em diversas línguas (francês, alemão, italiano, russo, chinês, japonês, polonês, húngaro, etc.), assim como de inúmeros artigos. Foi agraciado com importantes prêmios (Príncipe de Astúrias, 1994; Ludwig von Bertalanffy Award in Complexity Thinking, 2014, entre outros) assim como inúmeros doutorados honoris causa, além de volumes nos quais a sua obra foi discutida.  

Ainda em vida, no ano de 2019, foi publicado um livro-homenagem com motivo de seu centenário (MATTHEWS, 2019). Editado pela prestigiosa editora alemã Springer, o volume conta com 41 capítulos dedicados à análise de sua obra por autores de quase todos os continentes. Por sorte, e justiça, este mais do que merecido reconhecimento, de uma vida inteira dedicada ao conhecimento, foi feito ainda quando o autor estava vivo.

Se, como foi dito anteriormente, a morte de Bunge não teve o merecido destaque no Brasil, a realidade que se instalou no país, logo após a sua morte, pode ser uma oportunidade para que sua obra seja divulgada e discutida. E o motivo é simples: nunca se falou tanto, em termos do debate público, sobre ciência, conhecimento, pseudociência, ideologia, e assim por diante. A dinâmica resultante da pandemia, com seus efeitos políticos, econômicos, sociais e culturais, atinge o Brasil da pior maneira possível. Não é necessário recapitular aqui os efeitos quase patológicos, muitas vezes criminosamente deliberados, de debates sobre o uso de tal ou qual fármaco no tratamento da COVID-19. Opinólogos de toda sorte começaram a falar em ciência, experimentos, metodologias sem nenhum tipo de embasamento ou conhecimento de causa.

Em muitos momentos, os próprios cientistas e pesquisadores terminam por sentir verdadeira impotência em não conseguir explicar de maneira clara, ao grande público, o seu próprio trabalho. A ciência é demasiado importante para ser deixada apenas nas mãos dos cientistas, e a filosofia demasiado importante para ser deixada apenas nas mãos de filósofos que ignoram solenemente o que é o conhecimento científico. Do contrário, tem-se uma falsa polarização entre duas instâncias que são complementares.

A obra de Bunge, o ponto de partida destas considerações, pode servir como instrumento de clarificação de debates atuais que, no melhor dos casos, se ressentem de uma colocação inadequada dos problemas e questões (BUNGE, 1975). No pior dos casos, o que há é mais do que ignorância, é a concepção inadequada dos fatos, que tem como consequência o erro deliberado (RESCHER, 2009).

Uma representação distorcida sobre o estado atual do conhecimento científico e as diversas mudanças que estão ocorrendo em inúmeras áreas tem implicações que não só afetam o trabalho e a atividade dos próprios cientistas, mas o sistema social como um todo. Mudanças que convergem para novas formas de organizar o conhecimento, resultado não de um horizonte ideal, mas da própria dinâmica da atividade científica, por exemplo: os estudos sobre complexidade e o conceito de informação (AULETTA, 2011; EIGEN, 2013; MAINZER, 2017).  

Ao contrário da impressão que pode ter ficado do que foi dito até aqui, vale ressaltar que Bunge não é um desconhecido no Brasil. Como relata em sua autobiografia intelectual, em 1962, à convite do eminente físico americano David Bohm (já no Brasil) e com uma bolsa de pós-doutorado (concedida pelo Conselho Nacional de Pesquisas Físicas do Brasil), Bunge chegou ao porto de Santos com destino a São Paulo, para passar seis meses no Instituto de Física da Universidade de São Paulo. Lá estabeleceu relações de amizade com eminentes físicos brasileiros como Jorge Leal Ferreira, Shigueo Watanabe, Mário Schenberg, José Leite Lopes, entre outros. Ainda durante a sua estadia no Brasil, esteve no Rio de Janeiro, onde pôde assistir a uma conferência de Richard Feynman.

Também conheceu o arquiteto Lúcio Costa, que mais tarde seria o responsável pelo projeto, conjuntamente com Oscar Niemeyer, de Brasília. Anos mais tarde, algumas das obras de Bunge foram publicadas pela Editora da Universidade de São Paulo, Edusp. Em 1991 esteve na Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC, a convite do professor Dr. Alberto O. Cupani – estudioso de sua obra – para ministrar um curso de uma semana sobre filosofia da ciência (CUPANI, 1990). Quatro anos depois, esteve também na Universidade Federal de Goiás/UFG.  O contato com o Brasil, e com acadêmicos brasileiros, sempre foi uma constante, não meramente episódico. (BUNGE, 2014).

Se a pandemia e seus efeitos revelaram aspectos preocupantes em todos os âmbitos da vida nacional (política, econômica, social e cultural), será parte da reconstrução do que foi destruído uma reflexão rigorosa sobre o lugar que a ciência, a técnica e o conhecimento como um todo ocupam na sociedade. A vida e obra de Mario Bunge são um bom ponto de partida para tal fim. Não só pelo valor intrínseco de sua obra, mas porque na sua trajetória intelectual convergiam duas instâncias não muito comuns: a teoria e a práxis. Como escreveu Descartes (um dos pais do espírito científico moderno): “não é suficiente ter o espírito bom, mas o principal é aplicá-lo bem”. Bunge o fez.

 

Andrés Eugui é bacharel em Filosofia

 

Referências

AULETTA, G. Cognitive Biology: Dealing with Information from Bacteria to Minds. Oxford: Oxford University Press, 2011.

BUNGE, M. Towards a Technoethics. Philosophic Exchange, Vol. 6 [1975], No. 1, Art. 3. 69-79.

BUNGE, M. Memorias: entre dos mundos. Barcelona: Gedisa, 2014.

CUPANI, A. The Significance of the Treatise in the Light of the Western Philosophical Tradition. In: WEINGARTNER, P.; DORN, G.J.W. (eds.). Studies on Mario Bunge's Treatise. Amsterdam: Rodopi, 1990.[C1] 

DESCARTES, R. Discurso do Método & Ensaios. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

EIGEN, M. From Strange Simplicity to Complex Familiarity: A Treatise on Matter, Information, Life and Thought. Oxford: Oxford University Press, 2013.

MAINZER, K. Thinking in Complexity: The Computational Dynamics of Matter, Mind, and Mankind. (5ª. ed.). Berlin & Heidelberg: Springer-Verlag, 2007.

MATTHEWS, M.R. (ed.). Mario Bunge: A Centenary Festschrift. New York: Springer-Verlag, 2019.

RESCHER, N. Ignorance: On the Wider Implications of Deficient Knowledge. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2009.

 

Obras de Bunge publicadas no Brasil

BUNGE, M. Teoria e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1974.

BUNGE, M. Tratado de Filosofia Básica: Semântica, Vol. 1. São Paulo: Edusp/EPU, 1976.

BUNGE, M. Tratado de Filosofia Básica: Semântica, Vol. 2. São Paulo: Edusp/EPU, 1976.

BUNGE, M. Epistemologia. São Paulo: Queiroz/Edusp, 1980.

BUNGE, M. Ciência e desenvolvimento. Belo Horizonte: Itatiaia/Edusp, 1980.

BUNGE, M. Física e filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2000.

BUNGE, M. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2006.

BUNGE, M. Caçando a realidade: a luta pelo realismo. São Paulo: Perspectiva, 2010.

BUNGE, M. Matéria e mente. São Paulo: Perspectiva, 2017.

 

Alguns estudos sobre Bunge publicados no Brasil

Cupani, A. O., & Pietrocola, M. (2002). A relevância da epistemologia de Mario Bunge para o ensino de ciências. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, 19, 100-125.

Kern, V. M. (2013). O sistemismo de Bunge: fundamentos, abordagem metodológica e aplicação a sistemas de informação. Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, 12., 2011, Brasília. Anais... Brasília: UNB, 2011.

Lenzi, Letícia. (2013). A ambiguidade da tecnologia: da analítica de Mario Bunge à hermenêutica de Lewis Mumford.  Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Florianópolis.

Machado, J., & Braga, M. (2019). O centenário de Mario Bunge: contextualizando sua obra sobre modelos científicos na filosofia da ciência e como referencial na pesquisa em ensino. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, 36(1), 178-203.

Pietrocola, M. (1999). Construção e realidade: o realismo científico de Mário Bunge e o ensino de ciências através de modelos. Investigações em ensino de Ciências, 4(3), 213-227.

Silva, L. M., Vianna, W. B., & Kern, V. M. (2016). O sistemismo de Bunge como base teórico-metodológica para pesquisa em Ciência da Informação. Em Questão, 22(2), 140-164.

Szczepanik, G. (2011). A concepção de método científico para Mario Bunge. Guairacá-Revista de Filosofia, 27(1), 9-30.

Westphal, Murilo, & Pinheiro, Thais Cristine. (2004). A epistemologia de Mario Bunge e sua contribuição para o ensino de ciências. Ciência & Educação (Bauru), 10(3), 585-596.

 

Outros recursos

Página com acesso aos arquivos doados, ainda em vida, por Bunge: Fondo Bunge (Facultad de Ciencias Exactas y Naturales - Universidad de Buenos Aires – Argentina):

http://digital-old.bl.fcen.uba.ar/gsdl-282/cgi-bin/library.cgi?p=FondoBunge

Documentário “Nadar contra la corriente, Mario Bunge en Santa Fe”, no qual é registrada a visita realizada por Bunge à Universidad del Litoral (Santa Fe, Argentina, 2001) para uma série de atividades acadêmicas:

https://www.youtube.com/watch?v=GmfATR2aKMU

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