"Milagres" olfativos e a COVID-19

Artigo
6 mai 2021
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nariz

 

Um dos sintomas comuns da infecção causada pelo novo coronavírus é a perda do olfato, o que se chama tecnicamente de “anosmia”. Mas este não é o único distúrbio olfativo encontrado em pessoas que tiveram a COVID-19: também existem pacientes que experimentam a “parosmia” ou a “fantosmia” (veja mais aqui e aqui). O primeiro acontece quando se sente um cheiro distinto daquele que realmente está sendo captado pelo olfato; o segundo está relacionado à percepção de um “cheiro fantasma”, não havendo qualquer estímulo olfativo real no ambiente.

Embora não houvesse tantos holofotes em cima desses distúrbios antes da pandemia, é curioso notar que uma parcela da população já era acometida corriqueiramente por eles. Estudos estimam que cerca de 20% da população mundial de adultos e idosos sofre de alguma disfunção olfativa. No caso específico da fantosmia, a prevalência em adultos está estimada em 6%. Em outras palavras, não é uma novidade o fato de algumas pessoas perceberem cheiros ilusórios cotidianamente.

 

Visitas do Além

Mesmo que a fantosmia não seja uma novidade científica, uma busca pelo termo na internet pode gerar resultados surpreendentes, especialmente em tempos recentes, quando um paciente possivelmente acometido pelo novo coronavírus vai buscar informações sobre sintomas da doença. Para além de orientações médicas sobre a questão, ele poderá encontrar uma série de publicações relacionando este distúrbio olfativo a... mediunidade! Vejamos alguns resultados:

O mundo espiritual tenta se comunicar conosco de muitas maneiras [...]. O significado espiritual do cheiro de fumaça depende do contexto. Pode ser uma saudação alegre de um ente querido doente. Ou que você é dotado da bênção do cheiro psíquico. Ou pode ser um sinal de que você está em um lugar perigoso, perto do inferno. (Disponível aqui).

Você já sentiu cheiro de rosas ou gardênias, especialmente em um lugar que não tem flores? Você sente cheiro fumaça de charuto em seu carro? Pode ser apenas o seu falecido pai tentando dizer-lhe para se acalmar [...]. Preste atenção nos momentos em que esses cheiros aparecem. Agradeça seus anjos e guias. (Disponível aqui).

Ora, seria a fantosmia decorrente de assombrações? Nesse caso, será a COVID-19 uma infecção cujos sintomas incluem a abertura de canais de comunicação com os espíritos? A resposta científica, baseada em evidências, para ambas as perguntas, é NÃO.

 

Explicações (sobre)naturais

Deixando os espíritos de lado para se apegar à ciência, ainda não é possível encontrar uma resposta segura capaz de explicar biologicamente todo o conjunto de possíveis distúrbios olfativos. Porém, algumas possibilidades estudadas (veja aqui e aqui) investigam desde problemas relacionados às células na parte interna do nariz, como as receptoras do olfato, até eventuais disfunções no cérebro, de modo a tornar o indivíduo incapaz de interpretar corretamente os estímulos olfativos que recebe.

Mesmo que a explicação natural do distúrbio não seja totalmente clara, isso não significa que ele deve ser resultado de efeitos sobrenaturais. Esse tipo de argumentação é também chamado de “apelo à ignorância”, ou seja, “como ninguém sabe a explicação, então é manifestação paranormal”. Basta lembrar que o desconhecimento dos mecanismos naturais geradores de arco-íris e eclipses já foi suficiente para inspirar bastante fantasia mitológica.

No que se refere a elencar explicações plausíveis para a fantosmia, ninguém conseguiu provar a existência de espíritos para além da dúvida razoável, mas já se sabe que neurônios existem; e ilusões causadas por disfunções no sistema nervoso, também.

Assim, há uma lição que este contexto pandêmico nos traz: alegados poderes mediúnicos, quando investigados de maneira adequada, de forma crítica e por metodologias científicas bem controladas, revelam-se bastante naturais: ou se mostram como fraudes deliberadas para enganar o público, ou apenas flertam indevidamente com fenômenos cuja explicação ainda não é bem conhecida pela ciência (Caso queira conhecer mais explicações para experiências supostamente sobrenaturais, leia “Paranormalidade: por que vemos o que não existe?”, do mágico e psicólogo Richard Wiseman).

Quanto a fraudes, temos exemplos clássicos ao longo da história, como o caso das irmãs Fox, que usavam o estalar das articulações para promover demonstrações ilusórias de interações com espíritos. Mesmo atualmente, métodos engenhosos ainda são usados por falsos videntes para ganhar adeptos (e o recheio de suas carteiras): estratégias bem conhecidas de leitura fria ou leitura quente estão por trás da explicação de como são produzidas demonstrações aparentemente impressionantes de contatos com o além.

Já no caso do uso indevido de fenômenos cuja explicação científica ainda é desconhecida, destaca-se que antes de a ciência atingir uma melhor compreensão sobre transtornos mentais, não era incomum que eles fossem apresentados como sinais de possessão demoníaca. Hoje, muitas das “possessões” já são doenças bem compreendidas, com tratamentos disponíveis.

A fantosmia é outro exemplo: sendo possível concordar que este distúrbio, no contexto da COVID-19, tem uma origem natural relacionada às complicações causadas pelo novo coronavírus, por que não podemos estender a concordância para também admitir a existência de uma explicação natural sempre que ele se manifestar? Mesmo que ainda não tenhamos uma resposta científica madura para a questão, sabemos que a maneira de encontrá-la passa pelo estudo da biologia e da medicina, sem necessidade de promover sessões sobrenaturais.

 

Cheiro de pseudociência

Embora o senso comum possa nos passar a falsa sensação de que distúrbios do olfato não devem demandar muita preocupação, é importante perceber que a captação adequada dos cheiros auxilia em diversas situações da vida cotidiana, indo desde a percepção plena do sabor dos alimentos até a capacidade de detectar situações reais de perigo, como vazamentos de gás, inícios de incêndio e a identificação de comida estragada.

Assim, mesmo que a ciência ainda não tenha todas as respostas sobre problemas olfativos, as explicações sobrenaturais para o fenômeno apenas exalam o clássico odor das pseudociências: além de não estarem embasadas em qualquer fundamento científico, podem pôr em risco a saúde de quem as aceita, pois essa pessoa pode deixar de buscar tratamento para um problema de saúde real e apegar-se à ilusão de que está sendo agraciado com algum dom sobrenatural.

 

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia

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