Vale a pena debater com negacionistas?

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1 mar 2022
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O ministro nazista Joseph Goebbels nunca disse que “uma mentira repetida mil vezes se torna verdade”. Esse é um caso de citação falsa repetida mil vezes, até se tornar verdade. Bem mais de mil, diga-se: meio milhão de páginas da internet e no mínimo vinte livros atribuem a frase erroneamente ao assecla de Hitler, responsável pela propaganda do regime nazista. (Existem tantas citações fake de Goebbels que há um blog inteiro dedicado a elas, mantido pelo historiador Randall Bytwerk)

A citação e sua história ilustram o que os psicólogos chamam de efeito da verdade ilusória (illusory truth effect): afirmações familiares, que ouvimos várias vezes, nos parecem confiáveis apenas em virtude da repetição, mesmo que ninguém saiba a fonte. Exemplos clássicos de afirmações falsas que passam por verdadeiras porque “todo mundo sabe”: dá para ver a Muralha da China da Lua (não, não dá); seres humanos usam apenas 10% do cérebro (usamos 100%, e às vezes não basta); unhas e cabelos continuam crescendo após a morte (só em lendas de vampiros). Informações novas, por sua vez, sofrem com o efeito oposto. Desconfiamos delas, simplesmente por serem inéditas.

Outro fenômeno que trabalha a favor de lendas urbanas e fake news é o da influência continuada (continued illusion effect): as pessoas seguem agindo com base em informações falsas mesmo depois de descobrirem que são falsas. Isso não vale só para negacionistas convictos, que ignoram a refutação. Até gente disposta a aceitar a explicação correta se comporta de maneira irracional, por inércia. É por isso que usamos blusas para evitar resfriados, mesmo sabendo que são causados por vírus, e não por temperaturas baixas. O inverno só amplifica a transmissão por causa das aglomerações em ambientes fechados.

Outro problema é o do apelo emocional. Notícias falsas, negacionistas e teóricos da conspiração não fornecem fontes nem dão explicações razoáveis para o que afirmam, mas embalam o conteúdo numa linguagem carregada de sentimento e juízo moral. Assim, ganham a briga por atenção nas redes sociais.

Para esta sequência de estudos, publicada em 2020, três psicólogos americanos analisaram um banco de dados de 536 mil tweets sobre aquecimento global, casamento de pessoas do mesmo sexo e controle de armas. Eles descobriram que a mera presença de palavras com forte carga emocional (como “tristeza”, “choro” ou “medo”) e moral (“igreja”, “puro”, “sagrado”) é capaz de aumentar o número de RTs de um tweet. Em laboratório, voluntários passam mais tempo com o olhar fixado nessas palavras do que em palavras de teor neutro – seja no contexto dos tweets, seja quando os vocábulos aparecem individualmente numa tela, sem qualquer contexto.

Por fim, há o senso de pertencimento: ficções como o terraplanismo mobilizam as pessoas ao fazê-las sentirem-se parte de um grupo seleto, que tem acesso a  informações privilegiadas (como a de que a CIA e o FBI têm guardas na muralha de gelo que supostamente circunda o disco terrestre). O status e a realização de pertencer ao clube pesam muito mais que a refutação pelo método científico.

Se a lorota estiver alinhada ideologicamente com o receptor, pior ainda. Nos EUA, 51% dos eleitores republicanos ainda acreditam que havia armas de destruição em massa escondidas no Iraque em 2003 – uma informação comprovadamente falsa, usada pelo presidente George W. Bush para justificar a invasão, e que foi desmentida pelo Senado americano em 2004. Entre os democratas, são 32% os que ainda levam a sério os pretextos de Bush.

 

Tem solução?

Se nosso cérebro é programado para cair no charme das correntes de WhatsApp, fica a pergunta: o sobrinho revoltado tem alguma chance contra o tio do pavê? Jornalistas e cientistas interessados em comunicar ciência para o público fazem versões mais abrangentes da mesma pergunta: devo escrever outro texto refutando o movimento antivacina, ou vou acabar pregando para os convertidos? Como posso alcançar e convencer as verdadeiras vítimas da desinformação?

Dá para encontrar algumas respostas no Debunking Handbook (“Manual da Desmistificação”, na versão em português), um guia de download gratuito que explica como rebater notícias e crenças falsas sem afugentar ou ofender as pessoas enganadas. Também é crucial evitar que elas se agarrem com ainda mais força ao negacionismo para se blindar das críticas – como uma criança que tapa os ouvidos e canta bem alto para provocar os pais.

A edição mais recente do manual, publicada em 2020, é obra de três dos maiores especialistas na psicologia de mitos e fake news: Stephan Lewandowsky, John Cook e Ullrich Ecker. Para garantir que o texto refletisse o consenso científico em torno das estratégias de debunking, eles convidaram outros 28 especialistas da área para participar da elaboração do material, dos quais 19 toparam ser coautores. O trio levantou essa lista de nomes por meio de uma revisão sistemática da literatura da área – mesmo método usado para convocar os participantes do IPCC, painel de mudanças climáticas da ONU.

 

Prevenir é melhor…

O manual começa explicando que o melhor meio de evitar a disseminação de negacionismo e fake news é “vacinar” os cidadãos. Pessoas com desconfiômetro ligado – que ignoram correntes de WhatsApp e verificam a idoneidade do veículo de comunicação ao clicar em uma notícia –, não se tornarão terraplanistas ou antivaxxers tão cedo. Inocular na infância é mais eficaz: uma criança com boa educação formal, que consome conteúdo sobre ciência em vídeos e livros, dificilmente será vítima de desinformação na vida adulta. Senso crítico exige prática e repertório, ninguém é cético espontaneamente.

Uma vez que o jornalista, divulgador de ciência ou sobrinho exausto na festa de Natal identifique um mito circulando, é crucial avaliar o risco que ele representa antes de sair refutando loucamente. Impedir que a erva-daninha cresça parece óbvio, mas você pode acabar adubando uma lorota que não tinha tanto potencial assim. Lembre-se: refutar um mito é falar sobre ele. Se a refutação tiver alcance, o mito também terá. Nas palavras do manual: “Se ninguém nunca ouviu que cera de ouvido dissolve concreto, por que corrigir essa informação em público?”

Uma boa alternativa, no caso de mitos incipientes, é fazer um dado real circular sem qualquer menção ao mito que ele visa corrigir. Assim, você espalha uma informação correta, – que o seu público-alvo poderá usar para suspeitar da informação falsa –, mas evita reproduzir a informação falsa em si. Familiaridade é tudo: se o tio do pavê ainda está em cima do muro, reafirmar que vacinas são seguras é melhor que relembrá-lo o tempo todo da existência de gente que diz o contrário.

 

Pela culatra?

Se uma notícia falsa acabar realmente se espalhando e começar a ter consequências práticas – o que ocorreu recentemente, por exemplo, com a suposta eficácia da cloroquina e das demais drogas do kit covid –, é hora de abandonar táticas sutis e falar no assunto abertamente.

Alguns anos atrás, os psicólogos temiam o chamado backfire effect (algo como “efeito culatra”). A ideia é que tentar convencer um negacionista ou teórico da conspiração seria um exercício não só infrutífero como contraproducente: a provocação faria o cidadão se agarrar com ainda mais força às suas crenças, e reforçaria a impressão de que o mundo está contra ele.

Em experimentos, esse medo se provou válido em alguns casos, como o de americanos republicanos negacionistas das mudanças climáticas. Falando neles, vale voltar ao caso da invasão do Iraque, mencionado no começo do texto. Um experimento conduzido em 2005 por Lewandowsky, um dos autores do manual, revelou que os americanos continuam acreditando na existência de armas de destruição em massa no Iraque mesmo quando eles declaram estar cientes de que essa informação foi desmentida pelo Senado. Esse surto coletivo de cabeça-dura não se reproduziu com voluntários australianos ou alemães participantes do mesmo estudo.

Lewandowsky e seus colegas concluíram que o relatório do Senado só surtiu efeito nos voluntários que já demonstravam algum ceticismo prévio com Bush e seus pretextos, ou nos que não eram afetados pessoalmente pela política americana (o que é óbvio no caso de gente de fora dos EUA). Essa e outras evidências levam a crer que o efeito culatra só é um problema quando a refutação desafia as visões de mundo de alguém.

Pode ser fácil explicar para sua avó que pílulas de colágeno não ajudam contra a artrite, porque isso não desafia crenças e preconcepções antigas: ela talvez reclame dos médicos do convênio, ou fique feliz em não gastar mais dinheiro na farmácia. Por outro lado, é mais desafiador convencer um jovem millennial místico da falsidade da astrologia, já que seu signo é um pilar dos conteúdos que ele consome na internet, das conversas na mesa de bar e da construção de sua personalidade.

 

Evidências

Pensando em tudo que mencionamos acima, o manual propõe um plano de quatro pontos para um bom texto de refutação de fake news. Vamos resumi-los abaixo, mas recomendamos que os interessados acessem o manual (em português, aqui). Regras básicas de qualquer texto de divulgação científica valem em dobro neste contexto: a ciência de verdade é sempre mais complexa e tem menos apelo emocional imediato do que uma teoria da conspiração. Por isso, o autor precisa cultivar um estilo agradável e acessível, começar as explicações do zero e avançar passo a passo sem presumir que o leitor já domina algum aspecto do assunto. Jargão, jamais. Concisão, sempre.

1. O manual recomenda que o começo do texto reafirme os fatos em vez de denunciar o mito logo de cara. Fuja do argumento de autoridade. Um professor da USP dizendo pela enésima vez “a Terra é redonda e nenhum cientista respeitável discorda disso” não convence. Se os negacionistas estivessem dispostos aceitar a palavra de alguém só com base no currículo Lattes, eles não seriam negacionistas em primeiro lugar. Explique as evidências; descreva brevemente para o leitor como sabemos que a Terra é redonda.

2.  Agora sim, descreva o mito. Apenas uma vez, com clareza, mas sem muito alarde: fale como quem não quer nada. Detalhar o mito ou fazer muitos floreios para introduzi-lo é uma maneira de aumentar o tempo de exposição do leitor à desinformação, e você já sabe que familiaridade é sinônimo de verdade para nossa cabeça.

3. Hora de refutar o mito. Dê crédito ao leitor. A Terra de fato parece plana da nossa perspectiva. Já houve dúvidas genuínas quanto à contribuição humana ao aquecimento global. A cloroquina teve sucesso limitado contra a COVID-19 em testes in vitro, antes de se provar um fiasco nos testes clínicos, com humanos. Explique de onde vem a ideia por trás da lorota, e como experimentos subsequentes demonstraram tratar-se de uma lorota. Aponte as falácias lógicas na argumentação negacionista (há algumas que são clássicas, como confundir correlações com relação de causa e efeito), e mostre também que a explicação correta não se apoia em falácias.

4. Finalize repetindo os fatos, de uma forma mais resumida.

 

É claro que nenhuma receita faz milagre. Mas se a ciência nos deu vacinas, viagens à Lua e celulares, vale confiar só um pouquinho em sua capacidade de entender a mente dos que a negam.

 

Bruno Vaiano é jornalista

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