"Grounding" corporal não vai ajudar a sua saúde

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5 mai 2022
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Tesla

 

A rainha Anne foi a última monarca Stuart da Grã-Bretanha. Nos últimos dezessete anos do século 17, ela ficou grávida dezoito vezes. Apenas cinco filhos nasceram com vida. Somente um deles sobreviveu aos primeiros anos da infância. Morreu antes de atingir a idade adulta e da coroação da mãe em 1702. Não parece haver evidência de distúrbio genético. Ela tinha os melhores cuidados médicos que o dinheiro podia comprar [...]. Pelo menos no mundo desenvolvido, hoje em dia, os pais têm muito mais chances de ver os filhos atingirem a idade adulta do que tinha a herdeira do trono de uma das nações mais poderosas da Terra no final do século 17”. (Carl Sagan, “O Mundo Assombrado pelos Demônios”, 2006, p. 25).

 

A citação de Sagan consegue expressar de forma brilhante o fato de que as inúmeras revoluções científicas na área da saúde, ocorridas nos últimos séculos, aliadas a uma compreensão cada vez mais profunda de processos biológicos, oferecem métodos e práticas de preservação da vida e do bem-estar, baseados em evidências, muito melhores e mais eficazes que os disponíveis para as elites do passado.

Mas qual seria a revolução científica mais importante já feita na área da saúde? Mesmo que não seja trivial responder essa pergunta, podemos pensar em algumas possibilidades relevantes... Que tal a descoberta dos micro-organismos, no final do século 17? Graças a ela, compreendemos que ações simples, como a higienização adequada das mãos, podem evitar infecções fatais. Ou, quem sabe, a partir de 1928, o desenvolvimento dos antibióticos? Estima-se que, somente nos Estados Unidos, mais de 200 mil vidas são salvas anualmente por medicamentos desse tipo. E isso tudo sem nem começar a falar sobre o advento das vacinas, desenvolvidas a partir do final do século 18.

Bem, segundo o subtítulo deste livro, chamado “Earthing” (“Aterramento”), nenhum dos fatos citados é realmente digno da honraria. Ali, alega-se que a maior descoberta de todos os tempos, na área da saúde, foi o “grounding”, ou “earthing”, que podemos traduzir como “aterramento corporal” (mesmo que muitas postagens em português acabem mantendo os termos em inglês). Embora a técnica tenha origem em ideias que surgiram no início do século 20, ela reapareceu e ganhou força apenas nas últimas duas décadas, após uma epifania intuitiva que levou Clinton Ober a concluir que os sapatos haviam “desconectado” as pessoas da terra.

O aterramento corporal, portanto, consiste no incentivo à prática de permanecer em contato desprotegido com o solo – com os pés descalços sobre o terreno, por exemplo – por alguns minutos ao dia: com isso, afirma-se que a troca de cargas elétricas entre o corpo e a terra é suficiente para melhorar diversas condições médicas.

 

Eletricidade estática

A suposta lógica do tal grounding (logo veremos que se trata de uma lógica sem muita lógica) parece ser esta:

 

“A terra abaixo dos nossos pés não nos provê apenas com comida e água, mas também com algo surpreendente: elétrons. Quando você toca o solo com os pés descalços, elétrons fluem da terra para você. Quando você toca o solo com o corpo, dissipa-se a eletricidade estática e todas as cargas elétricas estranhas do ambiente que estão em você. Ao mesmo tempo, você recebe uma carga de energia na forma de elétrons livres. Enquanto você permanecer aterrado, seu corpo continuará a absorver elétrons em uma quantidade que varia significativamente de pessoa para pessoa, dependendo do estilo de vida e das atividades desenvolvidas, e que é impossível de se medir (texto adaptado a partir desta página, grifos nossos).

 

Os efeitos da eletricidade estática são bem conhecidos: afinal, quem nunca levou um choque ao tocar em uma maçaneta de metal, ou na carroceria de um automóvel? Isso acontece com frequência, principalmente em ambientes de clima mais seco. Ora, por quê?

Durante as diversas ações da vida diária – caminhar, escovar os cabelos, trocar de roupa, sentar ou levantar de uma poltrona etc. –, pomos materiais diferentes em atrito ou em contato. Às vezes, durante a interação, os materiais envolvidos (incluindo a pele humana) ganham ou perdem elétrons, e podem acabar acumulando carga elétrica. É esse acúmulo que chamamos de “eletricidade estática” no dia a dia. Por convenção, dizemos que o elétron tem carga elétrica do tipo negativa, então um objeto que ganha elétrons ficará negativamente carregado; já outro que perca essas partículas terá carga total positiva.

Assim como podemos ficar eletricamente carregados, também podemos descarregar o excesso: na maioria das vezes, isso acontece lenta e continuamente, e nem mesmo percebemos que estamos trocando cargas com outros objetos, ou com o ar à nossa volta; mas às vezes, quando tocamos a porta do carro, por exemplo, que é feita de material condutor e nossa pele ou o automóvel está eletricamente carregado, a descarga ocorre de forma abrupta, e aí sentimos o incômodo do choque, ainda que a corrente elétrica gerada no processo seja de uma intensidade inofensiva. A presença de moléculas de água na atmosfera facilita as trocas de carga, e é por isso que dias com ar mais úmido geram menos chances de sermos surpreendidos com um choque.

A técnica do aterramento – conectar um fio condutor entre um objeto que pode vir a acumular carga e o solo, de modo que a descarga possa acontecer sem saltos abruptos – é uma velha conhecida da física e da engenharia. Todo para-raios é aterrado, protegendo assim circuitos elétricos residenciais, equipamentos, estruturas e vidas.

Agora podemos concluir que as alegações relacionadas ao grounding não fazem sentido: primeiro porque as trocas de carga que sofremos no dia a dia podem ocorrer nos dois sentidos (de perdermos ou de ganharmos elétrons), a depender dos materiais com os quais interagimos. É por isso que, se ainda tivermos excesso de cargas elétricas no momento do aterramento corporal, poderemos ou fornecer, ou receber elétrons do solo, o que invalida a ideia de que a terra sempre nos fornecerá elétrons.

O segundo ponto é que a afirmação “cargas elétricas estranhas do ambiente que estão em você” é incorreta, uma vez que todos os elétrons encontrados na natureza são essencialmente iguais: se trocássemos nossos elétrons instantaneamente por outros que estão, digamos, em uma árvore, nenhuma mudança seria percebida nem nos nossos corpos, nem na árvore.

Outra questão importante a considerar é que, mesmo que permaneçamos aterrados por horas a fio, o fluxo de elétrons entre nossos corpos e o solo se encerra rapidamente (supondo, como é bastante razoável, que não estejamos nos eletrizando ininterruptamente, por exemplo, ao nos esfregarmos sem parar em um tecido de seda), tornando falsa a alegação de que absorveremos essas partículas continuamente. Por fim, é importante destacar que essas trocas de cargas podem ser perfeitamente medidas, e é justamente por isso que conseguimos entender cientificamente os processos de eletrização. Quando se afirma que a corrente elétrica gerada na prática de grounding é impossível de ser medida, então certamente sabemos que ela não apresenta nem base científica, nem qualquer conexão com a realidade.

 

Radicais livres

 

Outra alegação sem lógica:

 

“Os elétrons abundantes na terra fluem para nossos corpos e atuam como antioxidantes. Dessa forma, eles neutralizam os radicais livres, o que leva à diminuição de inflamações e prevenção de doenças” (texto adaptado a partir desta e desta páginas, grifos nossos).

 

Radicais livres são moléculas em que a configuração dos elétrons é tal que elas se tornam bastante reativas: de forma simples, podemos pensar que elas “roubam elétrons” de outras moléculas com certa facilidade. Como consequência, podem até mesmo iniciar reações em cadeia indesejadas – quando a molécula “vítima do roubo” passa também a ter uma configuração eletrônica agressiva e segue interagindo com outras, que interagem com outras, e assim por diante.

Radicais livres podem ser gerados em diversas reações metabólicas que ocorrem no corpo e também por fatores externos, como a exposição à radiação, o tabagismo, a poluição ambiental e até o consumo de álcool e de alimentos com compostos pró-oxidantes, que podem desencadear a formação dessas moléculas.

O excesso de radicais livres no organismo pode levar a efeitos bioquímicos que estão associados ao surgimento de câncer, problemas cardíacos e doenças neurodegenerativas, por exemplo. É por conta desse motivo que, geralmente, essas moléculas são retratadas sempre como uma “grande ameaça” à nossa saúde. Mas, antes de se desesperar, lembre-se de que, para nossa sorte, também existem os compostos que eliminam radicais livres. São os chamados “antioxidantes”, alguns dos quais são produzidos pelo próprio corpo e outros, obtidos por meio da dieta (como a vitamina C).

Com essa breve discussão em mente (e que você pode encontrar com mais detalhes aqui e aqui), vejamos os problemas com a alegação sobre radicais livres e grounding: o primeiro é que ela pode passar a ideia de que precisamos eliminar completamente os radicais livres do organismo, o que é incorreto, uma vez que estão envolvidos em diversos processos bioquímicos essenciais; o segundo é que compostos antioxidantes têm mecanismos de ação diversos e complexos. Assim, é uma ilusão afirmar que os elétrons livres, supostamente recebidos pelo aterramento corporal, certamente atuarão como antioxidantes, percorrendo nosso corpo de modo obstinado a encontrar e eliminar qualquer radical livre que esteja pelo caminho.

Por fim, é importante destacar que alegações que sugerem coisas como “precisamos equilibrar ou neutralizar cargas elétricas presentes no corpo humano” para mantermos boa saúde é completamente equivocada: basta lembrar que diversos mecanismos biológicos que sustentam o bom funcionamento do corpo, como as trocas de compostos por meio das paredes celulares, dependem, justamente, da presença de íons (que são moléculas ou átomos eletricamente carregados). Se fôssemos completamente neutralizados instantaneamente, morreríamos.

 

As evidências

A argumentação que tenta fundamentar o grounding está essencialmente errada: a terra não é uma fonte que nos fornece elétrons continuamente; radicais livres não podem ser eliminados por simples trocas de carga com o solo; e, ainda, se, como alegam, é impossível medir a corrente elétrica associada à prática do aterramento corporal, isso decorre do simples fato de que ela não existe.

Porém, colocando tudo isso de lado, uma das páginas sobre o assunto apresenta uma lista com diversos estudos – tanto isolados como de revisão – que mostram supostos bons resultados do aterramento corporal para diferentes problemas de saúde. Mas, cuidado com conclusões apressadas: o neurologista Steven Novella verificou, por exemplo, os trabalhos individuais discutidos neste artigo de revisão sobre o grounding e concluiu que “são típicos do tipo de estudos projetados para gerar falsos positivos (...). Você pode ver que são todos pequenos estudos piloto ou preliminares com metodologia inadequada” (tradução nossa).

Novella ainda alerta que muitos artigos favoráveis à prática sugerem que pacientes de uma variedade grande de condições médicas podem der beneficiados. Sobre isso, a mensagem dele é clara: “na realidade, isso não costuma ser evidência de que o aterramento é eficaz para melhorar uma ampla variedade de condições. Quando uma prática parece tratar qualquer coisa, isto é evidência de estudos feitos com falhas no cegamento ou com controles inadequados” (tradução nossa).

O que não falta, porém, para tentar amparar a suposta eficácia do aterramento corporal são relatos de experiência pessoal, mas, como leitores frequentes da Revista Questão de Ciência já sabem, testemunhos de sucesso não formam evidências científicas confiáveis. Parece que até mesmo o pessoal que vende produtos para fazer o seu próprio aterramento em casa reconhece a falta de evidências sobre o tema, pois colocam o seguinte alerta no rodapé da página: “estas alegações não foram avaliadas pela FDA [agência reguladora do setor de drogas e alimentos dos Estados Unidos]. Estes produtos não têm pretensão de diagnosticar, tratar, curar ou prevenir qualquer doença” (tradução nossa).

 

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)

Flávia Barbosa Schappo é cientista de alimentos, com mestrado na área e doutorado em andamento. É especialista em docência para o ensino superior, faz pesquisas na área de nanotecnologia aplicada em alimentos, e ainda é dedicada a atividades de divulgação científica: é uma das autoras do livro “Armadilhas Camufladas de Ciência: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia) e contribui no desenvolvimento de temas relacionados a ciência de alimentos tanto para seu instagram pessoal (@flaviaschappo) como para o canal Nunca Vi Um Cientista.

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