A construção de evidências da medicina baseada em evidências

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24 set 2022
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garrafas de laboratório

 

Referência para pesquisadores e praticantes da medicina baseada em evidências, a iniciativa Cochrane realiza frequentes revisões sistemáticas e meta-análises de estudos e ensaios clínicos sobre a eficácia de tratamentos e intervenções em saúde. Agora, porém, a própria Cochrane foi alvo de uma revisão para classificar a qualidade das evidências em prol do uso das terapias analisadas pela iniciativa nos últimos anos, assim como seus possíveis danos. O levantamento, publicado no Journal of Clinical Epidemiology, revelou que apenas cerca de um em cada dez tratamentos avaliados entre 2008 e 2021 tem evidências de alta qualidade a seu favor, e só 5,6% da amostra cumpriu todos os critérios de aprovação propostos pelos autores, que também incluíam o nível de significância estatística das evidências e se sua incorporação à prática clínica foi recomendada pelos revisores da Cochrane.

À primeira vista, os resultados não parecem muito bons para a medicina baseada em evidências. Mas uma análise mais detalhada do estudo mostra que, pelo contrário, quando o tratamento tem plausibilidade biológica e os ensaios clínicos são bem estruturados e conduzidos, a comprovação dos benefícios fica clara, enquanto terapias com premissas duvidosas e ditas “alternativas”, como a homeopatia, são incapazes de provar sua eficácia. Mas o levantamento também mostra que ainda há um longo caminho pela frente, e muito trabalho a ser feito, para que diversas intervenções, algumas já muito comuns na prática clínica, alcancem um embasamento científico ideal.

“A medicina baseada em evidências é um projeto em construção. Ninguém diz que ele está terminado, e todos nós sabemos que ainda vai precisar de muito trabalho”, resume Edzard Ernst, professor emérito da Universidade de Exeter, Reino Unido, e um dos principais estudiosos de terapias alternativas do mundo. “Na verdade, quando vi estes resultados, fiquei animado em saber que estamos fazendo progresso. Só precisamos continuar a trabalhar e apoiar os pesquisadores engajados neste trabalho”.

Primeiro autor e líder do estudo, Jeremy Howick, epidemiologista e professor de Filosofia da Ciência da Universidade de Oxford, Reino Unido, vai na mesma linha.

 “Por um lado, foi a medicina baseada em evidências que nos ajudou a identificar este problema, então não é um mau sinal. Por outro, a medicina baseada em evidências está por aí há quase 30 anos, então deveríamos ver evidências melhores”, considera. “Precisamos priorizar as questões mais importantes, e então fazer com que equipes de pesquisadores reconhecidos conduzam grandes ensaios clínicos de forma apropriada. Mas outro problema é que poucos pesquisadores estão completamente livres de conflitos de interesse”.

 

Aos números

Vejamos então os números do estudo. Primeiro, os pesquisadores liderados por Howick identificaram 6.928 revisões realizadas pela Cochrane entre janeiro de 2008 e março de 2021. Destas, eles colheram uma amostra aleatória de aproximadamente 35% em cada um dos 53 grupos de trabalho da iniciativa, que abrangem condições que vão de infecções respiratórias agudas a ferimentos, num total de 2.428 revisões.

Em seguida, filtraram as revisões e as intervenções nelas avaliadas segundo os critérios de inclusão para a análise. As intervenções tinham que ser comparadas com placebo, não tratamento ou tratamento padrão, mas não contra um comparador ativo, isto é, uma terapia já usada e considerada eficaz, de forma a evitar comparações com uma intervenção que talvez não seja apoiada por boas evidências. Também só foram incluídas revisões com intervenções cujos efeitos foram classificados de acordo com as diretrizes GRADE (sigla em inglês para Graduação de Recomendações, Análise, Desenvolvimento e Avaliação). Por fim, foram excluídas intervenções em versões defasadas das revisões, e intervenções estudadas em revisões revogadas.

Isso deixou o levantamento com uma amostra de 1.567 intervenções avaliadas em 1.076 revisões independentes. A maioria das intervenções (892) foi testada apenas em adultos, outras 413 em adultos e crianças, 80 apenas em crianças, 38 em crianças e bebês, 77 em bebês e 67 em populações de faixa etária indefinida. Quase todos os efeitos das intervenções (93,7%, ou 1.468) foram testados em ensaios clínicos randomizados, 88 numa mistura de ensaios clínicos randomizado e não randomizados e 11 em ensaios não randomizados. Mais da metade das intervenções (820, ou 52,3%) foram farmacológicas, 247 (15,8%) comportamentais ou psicológicas, 100 (6,4%) cirúrgicas, 62 (4%) dietéticas, 56 (3,6%) exercícios físicos, 46 (2,9%) alternativas, 38 (2,4%) terapias manuais e 198 (12,6%) “outras” não incluídas nas demais categorias. Em 708 (45,2%) delas, a comparação foi com placebos, 546 (34,8%) com o tratamento padrão e 313 (20%) com não tratamento.

Segundo a análise, apenas 158 das 1.567 intervenções, ou pouco mais de uma em cada dez, tinham o principal desfecho primário apoiado por evidências classificadas como de alta qualidade pelas diretrizes GRADE. Destas, 106 (ou 6,8% do total) dos resultados positivos eram estatisticamente significativos, enquanto 87 (5,6%) também foram classificadas como provavelmente benéficas e recomendadas pelos autores das revisões da Cochrane. Outras 31 intervenções (2%) também foram apoiadas por evidências de alta qualidade de acordo com as diretrizes GRADE para ao menos um dos desfechos primários, mas não o primeiro relatado, e 472 (30,1%) tinham evidências de qualidade considerada “moderada”.

Além disso, 577 (36,8%) das 1.567 intervenções tiveram danos relatados e quantificados. Muito poucas delas (33, ou 5,7%), porém, tiveram efeitos deletérios constatados por evidências de alta qualidade, incluindo apenas 18 em que as evidências destes potenciais agravos – que podiam ser morte, outros desfechos objetivos e, em alguns casos, também subjetivos – também foram estatisticamente significativas.

“Creio que as diretrizes GRADE são muito complicadas, e talvez um tanto rigorosas demais", aponta Howick. “Mas também, como apontamos nas referências da introdução de nosso estudo, não importa como as pessoas avaliem a qualidade das evidências, muitas delas não são fortes”.

 

Outras contas

Chamam a atenção, porém, algumas contas não feitas pelos pesquisadores. Das 820 intervenções farmacológicas da amostra, por exemplo, 108 (13,7%) apresentaram evidências de alta qualidade a seu favor, e 64 (7,8%) cumpriram os três critérios máximos do estudo – que incluem resultados positivos estatisticamente significativos e reconhecimento de prováveis benefícios pelos revisores -, ambas proporções superiores ao resultado geral. Tão boas quanto isso, só as intervenções tipificadas como exercícios, em que, das 56 na amostra, sete (12,5%) tiveram evidências de alta qualidade, sendo cinco (8,9%) também com efeitos benéficos estatisticamente significativos e prescrição apoiada pelos revisores.

Por outro lado, entre os 46 tratamentos alternativos avaliados, apenas dois (4,3%) tinham evidências favoráveis apontadas como de alta qualidade, e nenhum cumpriu os três critérios. Pior ainda para as chamadas terapias manuais, que das 38 na amostra só uma (2,6%) tinha evidências classificadas como de alta qualidade e, novamente, nenhuma com efeitos estatisticamente significativos e tampouco recomendação dos revisores.

Diante disso, Ernst brinca que apesar da preocupação com a falta de evidências de alta qualidade para alguns tratamentos atuais da medicina convencional – o que pode ser sanado com mais e melhores estudos sobre eles – destacada pelos autores, a manchete do estudo na verdade deveria ser a completa ausência de evidências para apoiar terapias alternativas, ou como estas nublam a imagem produzida pelos critérios da medicina baseada em evidências.

“Os resultados mostram que ensaios clínicos demais são de baixa qualidade e, portanto, inconclusivos”, considera. “Isto está mudando lentamente, mas mais precisa ser feito, e os pesquisadores precisam ser treinados e equipados adequadamente para melhorarem suas pesquisas”.

Já o fato de a maior parte das intervenções com o mais alto grau de comprovação de benefícios no levantamento ser farmacológica, diz, é um testemunho de que ensaios clínicos bem desenhados e conduzidos podem e vão produzir evidências de eficácia de tratamentos que são de fato eficazes, e demonstrar a ineficácia de propostas com bases frágeis ou fantasiosas como as da chamada “medicina alternativa”.

“E também é um testemunho do fato de que ensaios clínicos com remédios são frequentemente mais fáceis de conduzir, mais do que intervenções físicas ou psicológicas, por exemplo, e, claro mais fáceis de serem financiadas”, complementa.

Não é, também, o que acontece com intervenções que envolvem mudanças na dieta, em que muitas vezes é  extremamente difícil isolar e controlar fatores de confusão. O que ajuda a explicar porque apenas uma das 62 intervenções analisadas (1,6%) apresentou evidências de alta qualidade de benefícios mas, diferentemente das terapias alternativas e manuais, também acabou por cumprir os três critérios máximos do levantamento.

“Estudos de tratamentos dietéticos são notoriamente difíceis de conduzir, e os resultados refletem isso claramente”, comenta Ernst, que finaliza: “Os resultados foram puxados para baixo pela inclusão de tratamentos e intervenções da chamada medicina alternativa. Se olharmos para estes subgrupos, vemos claramente que as terapias alternativas só têm apoio nas mais frágeis e menos convincentes evidências”.

Howick, no entanto, é mais cauteloso, e ressalva que seu estudo não teve como objetivo avaliar diretamente a validade e a qualidade das evidências em torno da medicina alternativa.

“Nosso estudo não tem o poder de indicar se a medicina alternativa é pior ou melhor que outras medicinas em termos de qualidade das evidências, nem foi nosso objetivo fazer isso”, diz. “Para fazer isso, teríamos que repetir nosso estudo, mas incluindo todas as revisões da Cochrane para a medicina complementar e alternativa. Mas isso será muito difícil, pois leva tempo e requer uma equipe de pesquisadores”.

 

Este artigo foi atualizado em 26/09/2022 para incluir os comentários de Howick.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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