A herança maldita de Bolsonaro no meio ambiente

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9 nov 2022
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O presidente Jair Bolsonaro deixa uma série de “heranças malditas” para seu sucessor. Do enfraquecimento das instituições a um orçamento deficitário e inexequível, o governo que assume em janeiro de 2023 terá muito no que trabalhar após a “desconstrução” deliberada promovida em diversos setores do Estado brasileiro nos últimos quatro anos. Uma das áreas que mais sofreu com esta demolição foi o meio ambiente. O Brasil chega à 27ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-27), aberta no último domingo em Sharm El Sheikh, Egito, tendo que correr atrás do prejuízo para cumprir as metas do Acordo de Paris e recuperar o prestígio e a liderança que conquistou nestas discussões desde que sediou a reunião de cúpula que selou o acordo climático global no Rio de Janeiro em 1992, a Rio-92.

Outrora motivo de orgulho no cenário internacional, a política ambiental brasileira regrediu anos, se não décadas, sob a guarda de Bolsonaro, e isso justamente num momento que o mundo precisa de pressa para enfrentar a crise climática. Os números falam por si. Dados do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG) do Observatório do Clima divulgados na semana passada mostram que as emissões líquidas do Brasil atingiram 1,756 bilhão de toneladas de CO2 equivalente em 2021, uma alta de 31,34% frente a 2018, ano imediatamente anterior à posse d governos que se encerra, e o maior número desde 2006. O grande responsável por esta explosão é o desmatamento, registrado no SEEG sob a categoria “mudanças no uso da terra e florestas”. As emissões líquidas deste setor, no ano passado, chegaram a pouco mais de 521 milhões de toneladas de CO2 equivalente, quase o triplo das quase 179 milhões de toneladas de 2018. 

Situação que deverá piorar este ano. Levantamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), também divulgado recentemente, indica que o desmatamento acumulado, apenas na Floresta Amazônica, entre janeiro e setembro de 2022 atingiu 9.069 km², uma área equivalente a quase seis vezes a da cidade de São Paulo. É a maior área observada em 15 anos, desde que a organização implantou seu Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) para a Amazônia Legal, em 2008, e mais do dobro dos 4.358 km² registrados em 2018, antes de Bolsonaro assumir.

Indicador oficial da destruição do bioma amazônico, o Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), comandado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), também observou um forte aumento nos últimos anos. Os dados mais recentes disponíveis, relativos ao período de 1o agosto de 2020 a 31 julho de 2021, apontam 13.235 km² de corte raso da floresta, alta de 21,97% frente aos 10.851 km² do relatório anterior, e de 75,6% ao apurado em 2018, 7.536 km², além da maior área desde 2006.

E a expectativa para os números do Prodes para o período 2021-2022 – que deverão ser conhecidos nos próximos dias, se o governo Bolsonaro não repetir a estratégia de atrasar sua divulgação como no ano passado, quando já estavam disponíveis antes do início da COP-26 em Glasgow, Escócia, mas só foram tornados públicos depois - é de um desmatamento ainda maior. Isto porque outro projeto do Inpe para acompanhamento da destruição da Amazônia, o Sistema de Detecção de Desmatamento da Amazônia Legal em Tempo Real (Deter), observou a pior marca de sua atual série histórica, iniciada em 2015, com uma perda de 9.277 km² de florestas na região só entre 1o de janeiro e 21 de outubro deste ano.

Metas distantes

Com isso, durante todo governo Bolsonaro o Brasil de fato se afastou das metas assumidas pelo país no Acordo do Clima de Paris, fechado em 2015 durante a COP-21. Lá, o Brasil se comprometeu a reduzir suas emissões líquidas de gases de efeito estufa em 37% até 2025 com relação aos níveis de 2005, e indicou querer chegar a um corte de 43% até 2030, na mesma base de comparação. À época, isso significava atingir a marca de 1,3 bilhão de toneladas de CO2 equivalente em 2025, e 1,2 bilhão de toneladas em 2030, níveis que já estava bem próximos de serem atingidos em 2017, quando as emissões líquidas brasileiras ficaram em 1,302 bilhão de toneladas.

O Acordo de Paris, no entanto, previa que os países com metas até 2025 deveriam apresentar uma revisão de suas ambições antes do fim de 2020. Com isso, o governo Bolsonaro aproveitou para fazer uma verdadeira “pedalada ambiental”. Embora tenha mantido o compromisso de corte de 37% nas emissões até 2025 e oficializado a meta indicativa de redução de 43% até 2030, o Brasil mudou em muito a linha de base para estes cálculos, elevando de 2,1 bilhões de toneladas de CO2 equivalente para 2,84 bilhões de toneladas as emissões líquidas registradas em 2005. Desta forma, os objetivos para cada ano também subiram, passando para 1,76 bilhão de toneladas em 2025 e 1,6 bilhão em 2030.

Em nova atualização enviada à Convenção-Quadro da ONU em março deste ano, o governo Bolsonaro diminuiu o tamanho da "pedalada" e elevou a meta de 2030 para 50%. Ainda assim, o compromisso final, de emissões em 1,28 bilhão de toneladas de CO2 equivalente, continua acima da meta inicial informada em 2016, e aquém do necessário para evitar que o aquecimento global fica acima do 1,5 grau Celsius até o fim do século, conforme previsto no Acordo de Paris.

Ou seja, de acordo com as estimativas do SEEG, mesmo com as “pedaladas” as emissões de 2021 já estão no limite da primeira meta, que certamente será estourada quando os números de 2022 forem apurados, dado o aumento no desmatamento da Amazônia verificado este ano. Mas a lacuna deverá ser ainda maior, diante do fato de que os números do SEEG costumam ficar aquém da contagem oficial dos Inventários Nacionais de emissões comunicados à ONU, alerta Bárbara Zimbres, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e uma das responsáveis pelos cálculos sobre as emissões por mudanças no uso da terra e florestas do sistema coordenado pelo Observatório do Clima.

“2022 não será o ponto de virada”, diz. “Ainda devemos ver um aumento das emissões este ano como resultado do desmatamento, a mudança no uso da terra em que acontece a maior perda do estoque de carbono, que é a floresta em pé”.

Esperança

Zimbres, porém, está otimista que o Brasil conseguirá cumprir o prometido no Acordo de Paris. Segundo ela, sua confiança se baseia no próprio histórico do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, que quando assumiu para seu primeiro governo em 2003 enfrentou taxas recordes de desmatamento na Amazônia e as reduziu para algumas das menores da história.

“Temos muito prejuízo para correr atrás, mas estou otimista”, conta. “O novo governo vem com muitas promessas na área ambiental, e já é positivo ver o assunto na pauta de prioridades do país. Além disso, ele também já tem experiência e vontade política para reduzir o desmatamento na Amazônia, que recebeu em 2003 e 2004 em níveis estratosféricos e em poucos anos reduziu para alguns dos menores já vistos”.

Trabalho que Lula deve começar colocando a caneta da Presidência para funcionar. Para se ter uma ideia do tamanho do problema, o relatório “Reconstrução”, publicado no último dia 31 de outubro pelo Instituto Tanaloa, identificou nada menos que 401 atos infralegais do Poder Executivo Federal editados entre 2 de janeiro de 2019, primeiro dia útil do governo Bolsonaro, e 31 de julho de 2022 que precisariam ser revogados ou revisados para reconstruir as agendas climática e ambiental brasileiras.

Isto é, um processo de desmonte que começou muito antes da nefasta reunião ministerial de 22 de abril de 2020, em que o então titular da pasta do Meio Ambiente, Ricardo Salles, aconselhou o presidente a aproveitar que a atenção da mídia estava voltada para a pandemia de COVID-19 para “passar a boiada” no regramento sobre o assunto, destaca Ana Paula Prates, diretora de Políticas Públicas do Instituto Tanaloa.

“A boiada na verdade começou a passar em 2 de janeiro de 2019, quando Bolsonaro iniciou seu governo já desmontando as estruturas dos ministérios”, conta. “Foram várias competências perdidas  com decretos que extinguiram ou mudaram a composição diversas comissões, afetando a participação da sociedade civil e até mesmo a de algumas instâncias do governo, excluindo de algumas delas instituições como o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e o MPF (Ministério Público Federal)”.

Um caso exemplar deste desmonte foi o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), principal órgão consultivo do Ministério do Meio Ambiente, responsável, entre outras funções, por estabelecer critérios para licenciamento ambiental e normas para o controle e a manutenção da qualidade do ar. Criado por lei, o Conama não pode ser extinto com uma “canetada”, mas seu funcionamento pode ser regulado por decreto. Assim, em 28 de maio de 2019, Bolsonaro editou texto que cortou de 96 para 23 o número de conselheiros em seu plenário, reduzindo fortemente a participação de organizações ambientais, que caiu de 22 para apenas quatro vagas, enquanto aumentou muito o peso do governo federal, que passou a controlar sozinho nove votos.

A mudança abriu caminho para diversas medidas consideradas prejudiciais ao meio ambiente, como a revogação de resoluções que restringiam o desmatamento e ocupação de áreas de preservação no entorno de reservatórios d'água e de vegetação nativa, como restingas e manguezais, e estabeleciam critérios de eficiência de consumo de água e energia para aprovação de projetos e irrigação, além de liberar a queima de resíduos de agrotóxicos e lixo tóxico em fornos para produção de cimento, bem como alterações no Cadastro Nacional de Entidades Ambientalistas (CNEA) para dificultar a participação e fiscalização da sociedade sobre o setor.

A desfiguração do Conama foi tamanha que o decreto de Bolsonaro acabou alvo de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), com a ministra Rosa Weber concedendo liminar suspendendo as atividades do conselho até que o assunto fosse julgado pelo plenário da corte. A decisão levou o governo a editar outro decreto em 30 de março deste ano, alterando novamente a composição do Conama, aparentemente para devolver a participação da sociedade civil, mas que segundo o relatório do Instituto Tanaloa “ainda está muito aquém do ideal”, numa modificação que mostrou-se “inócua, por nunca ter sido retomada a agenda de atividades do Conama”.

“Ficou clara a intenção do Executivo de tirar dos colegiados e comitês todos que pudessem se opor a suas políticas, interferir na participação da sociedade civil organizada e da academia de forma a afetar o que vai ser executado e/ou fiscalizado por aquele órgão”, avalia Liuca Yonaha, vice-presidente do Instituto Tanaloa. “E com isso também veio a redução ou a perda de transparência. Muitos destes grupos tinham reuniões com agendas e atas públicas e até transmissão pela internet, que foram vetadas ou tiveram sua publicação atrasadas em nome de uma suposta confidencialidade, com justificativas como a de que se tratavam de ‘discussões internas’. Sem transparência, as questões tratadas por eles também vão ficando fora do radar da sociedade, diminuindo a atenção e a discussão entre o público em geral”.

Mas só a caneta não será suficiente para a recuperação da política ambiental brasileira. Muito trabalho também terá que ser feito em campo, com desafios como a retirada de mais de 20 mil garimpeiros que invadiram a Terra Indígena Yanomami na Região Norte do país, lembra Bárbara Zimbres, do Ipam.

“Temos a vantagem de que o desmonte se deu principalmente no nível infralegal, com textos que podem ser facilmente revertidos ou substituídos, mas não vai ser tão rápido e fácil lidar com as porteiras físicas abertas pelo governo Bolsonaro, que permitiu que muitas organizações criminosas chegassem à Amazônia”, critica. “Vai ser muito trabalho em campo. Não é só papel”.

Liuca Yonaha, do Instituto Tanaloa, tem opinião parecida:

“Não é que a reconstrução do ponto de vista das normas regras pode ser rápida que não vai dar trabalho. Pelo contrário. Sabemos que a situação é complicada e envolve muitos setores, inclusive do ponto de vista orçamentário”.

Apesar disso, as integrantes do Tanaloa também se mostram esperançosas com a reconquista do protagonismo e liderança do Brasil nas discussões globais sobre o meio ambiente e o clima, expectativa reforçada pela ida de Lula à COP-27 a convite do presidente do Egito, Abdel Fattah El Sisi. O presidente eleito está previsto para participar das reuniões nos dias 17 e 18 de novembro. Bolsonaro, por seu lado, não vai, assim como não foi para a cúpula do ano passado em Glasgow.

“O Brasil não só perdeu um tempo precioso, quatro anos preciosos, em termos de políticas públicas para o meio ambiente como andou para trás”, considera Prates. “Nossa esperança é que dá para fazer saltos à frente e recuperar o tempo perdido com o novo governo recolocando as agendas climática e ambiental no centro das políticas públicas”.

“Só a participação de Lula na COP-27 já ajuda a pôr o Brasil de volta no jogo internacional”, complementa Yonaha. “O Brasil ainda tem todas as condições para se tornar a primeira grande potência global da economia verde. Sorte de todos que temos esta segunda chance, pois se a gente perde, o mundo inteiro também perde”.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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