
Em 8 de maio, após menos de 48h do início do conclave, o mundo conheceu o novo papa da Igreja Católica Apostólica Romana. O então cardeal americano Robert Francis Prevost, agora papa Leão XIV, foi eleito pelos seus colegas, tendo obtido pelo menos 89 votos. Aos 69 anos e próximo do papa Francisco, é considerado por muitos como progressista. Eu não vou aqui discutir se o novo papa é a favor ou contra o aborto, se é ou não respeitador ou apoiador dos direitos das minorias, pois não tenho competência para tanto. Mas vale perguntar qual a posição de Leão XIV sobre a evolução biológica.
Sempre considerei que, para os padrões cristãos, os católicos são menos resistentes à evolução. De acordo com uma pesquisa de 2013 do Pew Research Center, restrita aos EUA, isso parece ser verdade. Quando questionados se os humanos sempre existiram como são hoje, ou se evoluíram ao longo do tempo, a maioria dos protestantes brancos (64%) e metade dos protestantes pretos (50%) responderam que os humanos existem como são desde o começo. Em contrapartida, apenas 26% dos católicos brancos não acreditam que os humanos evoluíram ao longo do tempo.
Como instituição, a Igreja Católica Romana nunca condenou formalmente a “crença” na evolução, ou a declarou incompatível com a doutrina. "A Origem das Espécies", por exemplo, nunca compôs parte do Index Librorum Prohibitorum, uma lista de livros proibidos pela Igreja por conterem doutrinas consideradas heréticas, imorais ou contrárias à fé, que existiu de 1559 até ser abolido em 1966.
Alguns líderes da Igreja, inclusive os considerados sucessores de Pedro, já expressaram visões sobre o assunto. Vejamos, por exemplo, o que disse o papa João Paulo II em 1996, em declaração à Pontifícia Academia de Ciência:
“Na encíclica Humani generis (1950), meu predecessor Pio XII já havia afirmado que não há conflito entre a evolução e a doutrina da fé no que diz respeito ao homem e à sua vocação, desde que certos pontos fixos não sejam esquecidos. [...] Hoje, mais de meio século após o aparecimento dessa encíclica, algumas descobertas recentes nos conduzem ao reconhecimento da evolução como algo mais do que uma hipótese. De fato, é notável que essa teoria tenha exercido uma influência cada vez maior sobre o espírito dos pesquisadores, à medida que uma série de descobertas em diferentes disciplinas científicas foi sendo feita. A convergência dos resultados desses estudos independentes — que não foi planejada nem buscada — constitui por si só um argumento significativo em favor da teoria”.
É claro, porém, que não é de se esperar que esses homens tenham aceitado a evolução de forma totalmente materialista. João Paulo II concordava com Pio XII em ainda outro aspecto: “Pio XII destacou o ponto essencial: se a origem do corpo humano provém de matéria viva que existia anteriormente, a alma espiritual é criada diretamente por Deus”. Eu não vejo problema nisso, pois Deus e a existência da alma são mais uma questão de crença religiosa ou espiritual do que de ciência. Como vi certa vez em um comentário de vídeo no YouTube: menos errado é melhor que mais errado.
(Nota: aos leitores católicos ou cristãos de outras vertentes, peço que não tomem isso como ofensa; considero que é um “erro”, pois enquanto ateu não tenho como não considerar a crença em Deus e na alma senão um erro. Contudo, não tenho interesse algum em que você mude de opinião.)
O antecessor de Leão XIV, o controverso papa Francisco, também expôs sua visão de forma bastante clara. Em tom conciliador, Francisco afirmou em sessão plenária da Pontifícia Academia das Ciências, 27 de outubro de 2014.
“Quando lemos no Gênesis o relato da Criação, corremos o risco de imaginar Deus como um mago, com uma varinha mágica capaz de fazer tudo. Mas não é assim. Ele criou os seres e permitiu que se desenvolvessem segundo as leis internas que Ele deu a cada um, para que pudessem se desenvolver e alcançar a plenitude do ser. Ele deu autonomia aos seres do Universo ao mesmo tempo em que lhes assegurou sua presença contínua, dando o ser a cada realidade. E assim a criação continuou por séculos e séculos, milênios e milênios, até se tornar aquilo que conhecemos hoje, justamente porque Deus não é um demiurgo ou um ilusionista, mas o Criador que dá o ser a todas as coisas.
“O início do mundo não é obra do caos que teria sua origem em outro, mas deriva diretamente de uma Origem suprema que cria por amor. O Big Bang, que hoje é apresentado como a origem do mundo, não contradiz o ato divino de criar, mas, ao contrário, o exige. A evolução da natureza não contrasta com a noção de Criação, pois a evolução pressupõe a criação dos seres que evoluem”.
Os trechos destacados são relevantes pois ressaltam que, ao passo em que Deus é o Criador (a causa primária), também existem leis naturais (as causas secundárias) que atuaram ao longo do tempo para produzir o que vemos hoje no mundo.
A posição do papa Francisco, portanto, era aquela que podemos chamar “criação evolutiva” ou “evolução teísta”. Alguns cristãos consideram que há diferença entre essas duas coisas. A evolução teísta é a visão de que Deus criou o Universo e a vida, mas que os seres vivos se desenvolveram por meio da evolução, com Deus guiando ou sustentando esse processo. Já a criação evolutiva é um termo às vezes usado como sinônimo, mas que pode enfatizar mais fortemente a ideia de que certos eventos (como a origem da alma humana) exigiram atos criativos diretos de Deus. Seja como for, a mensagem principal é a seguinte: é realmente uma posição, sem ser exatamente ciência ou teologia.
O leitor pode se perguntar qual o propósito desse texto numa coluna que lida com ciência. A questão é que ciência e religião são partes importantes da vida do indivíduo e da sociedade. Portanto, é motivo de preocupação quais são as posições do líder de mais de 1 bilhão de fiéis. Fiéis que votam, escolhem líderes políticos e são, eles mesmos, atores na sociedade. Então, sim, é do interesse da sociedade, inclusive dos cientistas e divulgadores de ciência, saber no que acredita ou deixa de acreditar o novo papa, dada a sua gigantesca influência.
Ainda não consegui nenhuma informação sobre a posição de Leão XIV sobre a questão. Não é para menos, seu papado literalmente começou hoje (sim, eu sei, essa frase envelhecerá mal). Apesar de apontarem alinhamento entre Francisco e Leão XIV, ainda não sabemos quais são os reais pontos de acordo, nem discordância. Afinal, seria absurdo supor que Leão XIV é um “Francisco II” em todos os aspectos, exceto o nome. Mas seria bastante interessante se o papa Leão XIV, um agostiniano como Gregor Mendel (sim, o cara das ervilhas), assumisse um compromisso com a boa ciência, da qual em grande medida depende o futuro dos filhos de Deus, que gemem e choram neste vale de lágrimas.
João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade