Auto-hemoterapia, pseudociência com versão brasileira

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16 mai 2025
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hemáceas circulando num vaso sanguíneo

 

Há um aspecto positivo em conviver com adeptos de terapias alternativas e conspirações: eles são fontes eternas de assunto.

Em meu mais recente encontro com um desses colegas, ele me perguntou se eu já ouvira falar da auto-hemoterapia — uma prática pseudocientífica em que o paciente retira um pouco de sangue de uma veia e o injeta no músculo.

Após afirmar que não conhecia, ele contou participar de um grupo no Facebook chamado “Auto-hemoterapia: meu sangue me cura”, e que estava tentado a iniciar as sessões, já que havia lido inúmeros relatos de pessoas que se curaram de sinusite, enxaqueca e dores musculares, problemas que ele vinha enfrentando.

Por receio de que ele estivesse fazendo algo perigoso, indaguei se algum conselho de saúde reconhecia a prática, o que o levou a dizer que não sabia, mas que havia inúmeras enfermeiras, biomédicas e médicos que realizavam o procedimento tanto em consultório quanto em domicílio.

Com base em informações iniciais desse colega, fui pesquisar o assunto. Ficou claro que, diferentemente de outras pseudociências que acabam ganhando as manchetes, a auto-hemoterapia é uma prática marginal, que se dissemina por meio de grupos online, utilizando um modus operandi já conhecido: uma conspiração entre governos e indústria farmacêutica para esconder a "verdadeira cura" das pessoas; a afirmação de que a prática é útil para uma infinidade de patologias; a base exclusiva em relatos pessoais, e não em evidências científicas; e, como não podia faltar, a centralização em torno de uma figura quase messiânica, perseguida pelo establishment médico por se rebelar contra o status quo.

Curiosamente — e como também é praxe —, embora tenha mencionado que essa prática não seja popular como outras pseudociências, ela conta com uma adepta extremamente famosa: a cantora Madonna.

Em 2019, ela publicou em suas redes sociais que estava utilizando diferentes terapias alternativas, incluindo a auto-hemoterapia, infusão intravenosa de vitaminas, entre outras, para se recuperar antes de sua turnê.

Felizmente, e digo isso sem sarcasmo, os conselhos brasileiros de saúde, na figura do CFM e do COFEN, fizeram um papel excepcional ao apontarem, desde 2007, que a prática não tem respaldo de evidências científicas que corroborem sua eficácia e segurança. Também alertaram para os sérios riscos à saúde dos pacientes, como infecção, e proibiram que os profissionais a adotem em seu arsenal terapêutico, estipulando penas severas para quem descumprir, podendo inclusive resultar na cassação do registro profissional.

Na verdade, acredito que o posicionamento mais esclarecedor sobre a prática foi publicado em 2017 pela Anvisa, sob o título “NOTA TÉCNICA Nº 6/2017/SEI/GSTCO/DIARE/ANVISA: Posicionamento da ANVISA a respeito da prática Auto-Hemoterapia”. No documento, o órgão destacou que a auto-hemoterapia não é reconhecida como procedimento médico e carece de estudos que comprovem sua eficácia.

Além disso, a prática também carece de estudos que investiguem aspectos essenciais para avaliar sua viabilidade terapêutica, como indicações específicas, contraindicações, dosagens seguras ou ideais, interações medicamentosas e possíveis reações adversas.

Outro ponto igualmente grave é que o procedimento pode representar riscos à saúde dos pacientes de duas formas: pela possibilidade de transmissão de doenças infecciosas, em decorrência da manipulação de material biológico; e pelas promessas de cura infundadas, que podem afastar o paciente de tratamentos terapêuticos comprovadamente eficazes.

O parecer CFM nº 12/07, emitido pelo Conselho Federal de Medicina, apontou que, a partir da literatura científica disponível até 2007 (ano da publicação do parecer), não havia evidências confiáveis em periódicos científicos de elevado padrão que comprovassem a eficácia da auto-hemoterapia para qualquer doença em seres humanos.

De forma semelhante, a Resolução COFEN nº 346/2009, produzida pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), proibiu a realização do procedimento, considerando tratar-se de um tratamento sem consenso técnico e científico, além de não contar com aprovação dos conselhos profissionais da área da saúde.

O Conselho Federal de Farmácia (CFF) também se posicionou contra a prática, não a recomendando e classificando-a como uma infração grave, passível de suspensão de 3 a 12 meses para todos os farmacêuticos que a praticarem.

Os avisos, lamentavelmente, não foram suficientes para impedir que a prática ressurgisse em 2020, durante a pandemia de COVID-19. A Anvisa, mais uma vez, teve de se posicionar veementemente contra a auto-hemoterapia.

Infelizmente, cinco anos depois, a prática continua sendo recomendada informalmente, e atraindo novos adeptos. Por isso, acredito que seja válido olhar criticamente para os poucos estudos que se debruçaram sobre ela. Mas antes, um pouco de contexto histórico.

 

A origem

Todas as informações desta seção vêm das teses de doutorado "Contribution à l'Étude de l'Auto-hémothérapie en Médecine Vétérinaire", "L'Auto-hémothérapie en Dermatologie et Particulièrement dans l'Urticaire et les Prurits", e "A Auto-Hemoterapia nas Dermatoses", publicadas entre 1920 e 1930.

A origem da auto-hemoterapia se confunde com a dos primeiros experimentos de transfusão sanguínea do século 17.  O impulso atual teve início em 1912, quando os neurologistas Jean Sicard e Ludwig Gutmann conduziram uma série de pesquisas sobre o tema, testando auto-hemoterapia em pacientes epilépticos, sem observar incidentes relevantes. Outro médico, Raymond Francis, passou a recomendar a prática como tratamento para pacientes tuberculosos.

Em 1913, o médico francês — e considerado o principal expoente da prática — Paul Ravaut descreveu em detalhes a técnica em artigo publicado nos Annales de Dermatologie et de Syphilographie, em que defendia o uso da auto-hemoterapia para problemas dermatológicos, como urticárias e eczemas.

A explicação mais amplamente aceita para a suposta “eficácia” da prática — e que permanece até hoje — surgiu após estudos conduzidos por Lucien Lamy. Este administrou a terapia em pacientes com câncer e observou que apresentavam um aumento no número de glóbulos brancos e melhoravam, provisoriamente, de sintomas como perda de massa muscular.

Com base nesses achados, teorizou-se que a terapia com sangue poderia ter ação imune.

 

A versão nacional

No Brasil, a auto-hemoterapia se disseminou a partir do trabalho do médico, e usuário da prática, Luiz Moura, que, em 2006, estrelou um DVD sobre o assunto cujo conteúdo é, até hoje, citado pelos entusiastas da prática como prova cabal de eficácia. Moura faleceu em 2016, aos 91 anos, e “converteu-se” à auto-hemoterapia em 1943, quando ainda era estudante de Medicina.

Moura conta que seu pai era um adepto ferrenho da prática, administrando-a para todos os pacientes que passariam por alguma operação.

Por trás dessa adesão estava o trabalho do médico Jesse Teixeira, que comparou o número de pacientes acometidos por infecções pós-operatórias entre aqueles que receberam a auto-hemoterapia e aqueles que não receberam. De acordo com o vídeo, dos 150 pacientes tratados com a prática, a taxa de infecções foi de 0%, enquanto o grupo que não recebeu a terapia apresentou uma taxa de 20%.

A parte mais fantástica de todo o depoimento é o fato de que Moura não esconde que não segue nem respeita padrões científicos. No último bloco, intitulado "A Missão da Medicina", o médico afirma que, para ele, o importante é aliviar o sofrimento e, quando possível, curar o paciente — independentemente das evidências científicas. Na sua visão de mundo, o que comprova a eficácia de qualquer tratamento é o paciente sentir-se melhor.

Esse posicionamento ignora toda a lógica por trás da necessidade de testes clínicos controlados: a possibilidade da interferência de fatores de confusão, como tratamentos concomitantes ou o ciclo natural dos sintomas; a presença do efeito placebo; o mascaramento de condições graves pelo alívio superficial de sintomas; e a simples possibilidade de paciente e médico estarem iludindo-se.

Agora, sobre o estudo que tornou Moura e seu pai adeptos da prática, devo adiantar que as informações são desencontradas. Enquanto Moura afirma que o trabalho de Teixeira contou com 300 participantes (dois grupos de 150), a versão do trabalho que encontrei online e o parecer do CFM mencionam um único grupo com 150 participantes. Acredito que a segunda versão seja a mais precisa e, por isso, a adotarei para destacar as críticas feitas pelo conselho.

De acordo com o documento, o principal problema do trabalho de Teixeira é que não se trata de um ensaio clínico randomizado, que poderia comparar os efeitos da auto-hemoterapia com a intervenção usual. Além disso, como não houve randomização entre os voluntários, abre-se a possibilidade de questionar a idoneidade da escolha dos pacientes que receberam a auto-hemoterapia — é possível que eles tenham sido selecionados por Teixeira por apresentarem um quadro de saúde melhor do que outros pacientes, o que pode ter influenciado os resultados.

Da mesma forma, aponta-se que, embora tenham sido realizadas 150 operações com o objetivo de verificar as complicações pulmonares pós-operatórias, o número de complicações esperadas é de cerca de 3%. Ou seja, desses 150 pacientes, eram esperados apenas 5 casos. Na verdade, se considerarmos o tipo de operação realizada, essa porcentagem é até alta. Segundo o parecer, das 150 cirurgias, quase a totalidade (133, ou 88,7%) foi realizada abaixo do umbigo, uma área reconhecida por gerar menos complicações pulmonares pós-operatórias.

Por fim, e não menos importante, destaca-se que o trabalho de Teixeira nunca foi replicado. Mesmo que fosse, isso apenas demonstraria que a técnica poderia ser útil para diminuir a incidência de complicações pulmonares pós-operatórias. No entanto, todas as demais alegações de saúde feitas por Moura e seus seguidores necessitariam de evidências específicas – o que, até hoje, não existe.

E, para deixar claro, mesmo que o estudo tenha envolvido 300 pacientes (150 em cada grupo de comparação), as críticas continuam sendo válidas.

 

Novas evidências

Em 2014, foi publicado um estudo intitulado A Systematic Review of Autohemotherapy as a Treatment for Urticaria and Eczema”. Como o nome sugere, trata-se de uma revisão sistemática com o objetivo de investigar e resumir as evidências da auto-hemoterapia como tratamento para urticária crônica espontânea e eczema.

Para isso, foram analisados todos os trabalhos publicados até agosto de 2014 (incluindo ensaios clínicos, estudos de caso e outras metodologias) que abordaram esses desfechos. A análise incluiu apenas ensaios clínicos randomizados com delineamentos que permitissem determinar o efeito independente da prática sobre a doença ou sobre a gravidade dos sintomas. De 435 estudos identificados, restaram apenas oito.

Quanto aos resultados, a análise da eficácia geral da auto-hemoterapia revelou que os pacientes que receberam a intervenção relataram sintomas menos severos de urticária e eczema no final do acompanhamento, em comparação com os pacientes do grupo controle. Em média, essa redução foi de 19%.

Curiosamente, na maioria dos estudos sobre urticária, também foi observada uma queda moderada nos sintomas do grupo placebo. A  revisão apresenta diversas limitações e faz ressalvas importantes sobre os estudos analisados. Nenhum dos ensaios clínicos realizados sobre urticária forneceu informações sobre a alocação aleatória nos grupos de tratamento. Da mesma forma, nem todos os estudos relataram informações sobre cegamento, o que põe em dúvida a validade dos resultados.

Outra limitação importante é que todos os desfechos nos estudos sobre urticária se basearam em autorrelatos, que, como se sabe, não são uma medida confiável. Além disso, alguns dos resultados utilizados na análise foram estimados manualmente a partir de gráficos de relatórios originais, o que pode ter introduzido algum erro.

Vale ainda ressaltar que, dos oito estudos analisados, três relataram financiamento externo, sendo dois de fundações privadas (uma voltada à medicina alternativa) e um de uma empresa farmacêutica. Embora isso não seja, por si só, um problema, é importante destacar que as fontes de financiamento podem influenciar os resultados.

Em 2021, foi publicada outra revisão sistemática intitulada Effect of Autohemotherapy in the Treatment of Viral Infections - A Systematic Review, que investigou se a auto-hemoterapia oferece benefícios em caso de doenças virais.

Foram incluídos estudos publicados em todos os idiomas, a partir de 2010, com pelo menos cinco pacientes e que utilizaram diferentes tipos de auto-hemoterapia (auto-hemoterapia convencional maior e menor, ozonioterapia ou tratamento do sangue com radiação ultravioleta). Relatos de caso, revisões, cartas ao editor, estudos in vitro e em animais foram excluídos.

Ao todo, foram identificados 4.915 artigos. Aplicados critérios de qualidade, restaram apenas oito, que somaram 431 pacientes. Os estudos incluídos viram benefícios da auto-hemoterapia, em alguns casos associada à ozonioterapia, no combate a infecções por vírus de hepatite (B e C) e coronavírus. Mas todos têm limitações e outros problemas graves.

Metade dos trabalhos avaliados apresentou risco moderado de viés. Além disso, como a revisão incluiu diferentes formas de auto-hemoterapia, como tratamento com UV e ozonioterapia, não é possível afirmar com certeza que os resultados positivos observados sejam exclusivamente atribuíveis à prática.

Dos oito trabalhos analisados, seis são estudos de caso. Devido às metodologias mais frouxas e suscetíveis a viés, esses estudos criam uma falsa impressão de que a prática teria eficácia real. Os dois únicos estudos que utilizaram metodologias mais rigorosas (ensaios clínicos randomizados), trouxeram resultados conflitantes.

O estudo intitulado "Preliminary Result of Ozone Therapy as a Possible Treatment for Patients with Chronic Hepatitis C", que verificou os efeitos da ozonioterapia e da auto-hemoterapia, concluiu que a prática era superior ao placebo. No entanto, a condução do estudo foi lamentável, com falhas graves que abriram as portas para viés — algo reconhecido pelos autores da revisão sistemática.

Já o trabalho “Ozone as Adjuvant Support in the Treatment of COVID-19: A Preliminary Report of Probiozovid Trial”, que investigou a ação da ozonioterapia no tratamento da COVID-19 e não encontrou eficácia superior ao controle (resultado contrário aos demais estudos de caso analisados), foi considerado adequado. No entanto, em minha opinião, a amostra utilizada foi muito pequena (apenas 28 voluntários).

Além disso, dos oito artigos analisados, quatro são estudos preliminares, ou seja, versões iniciais de pesquisas que ainda estão sujeitas a alterações. Isso já nos dá uma boa indicação da fragilidade das evidências.

Após quase duas décadas desde o lançamento do DVD do Dr. Moura, a busca por evidências parece ter evoluído – pelo menos agora há (poucos) ensaios clínicos randomizados e revisões sistemáticas.

Contudo, isso não significa que a qualidade das evidências produzidas tenha melhorado. Até o momento, todas as informações disponíveis sobre a prática são extremamente frágeis e apenas confirmam o que já sabemos: a auto-hemoterapia não parece ser mais eficaz do que um placebo e, com certeza, não é uma panaceia. A eficácia da prática não é respaldada por nenhuma evidência convincente e, além disso, ela pode representar riscos à saúde.

 

 

Mauro Proença é nutricionista

 

REFERÊNCIAS

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