Um documentário nacional sobre Darwin

Artigo
9 jun 2025
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Retrato de Charles Darwin

Recentemente, assisti ao videodocumentário Darwin – O Cientista Que Desafiou Deus, uma produção do Canal Nostalgia, de Felipe Castanhari. Eu já ouvi falar muitas coisas sobre as produções do Canal Nostalgia, mas como não sou telespectador assíduo, recebo quase tudo em segunda mão. Como as opiniões que chegam a mim não são unânimes, resolvi assistir à produção para formar uma opinião própria, já que dessa vez o tema não me é estranho.

Acho que vale a pena comentar um vídeo desses, publicado em um canal com 15 milhões de inscritos. Quando escrevo, o vídeo já está bem perto da marca de meio milhão de acessos. Então, será que esse número considerável de pessoas recebeu um conteúdo de qualidade sobre Darwin e sua obra? Em resumo, sim. E devo dizer que ver o nome do Reinaldo José Lopes listado como consultor e revisor já me deu um alívio tremendo. Não estou fazendo pouco caso dos demais, apenas ressalto o quanto confio na qualidade do trabalho do Reinaldo.

Vocês devem conhecê-lo: escreve a coluna Darwin & Deus na Folha de São Paulo, tem canal no YouTube, é tradutor e acadêmico de Tolkien, além de já ter publicado alguns livros, entre eles Darwin Sem Frescura, assinado por ele e pelo Pirulla. (Em tempo, você pode seguir ajudando o Pirulla nesse momento tão difícil. Faça sua contribuição aqui, ou maratone os vídeos do canal dele para manter a engrenagem do YouTube rodando. Nosso querido paleontólogo precisa que esteja tudo certo para quando ele voltar.)

Bom, mas voltando ao documentário... Primeiro, os elogios. A produção é belíssima. A direção de arte e animação está de parabéns. A trilha sonora também é envolvente e a narração, que conta com ninguém menos que Guilherme Briggs, é realmente muito boa. Castanhari também vai bem como apresentador e condutor. Claro, isso porque tem um roteiro bem escrito. E olha que não é fácil resumir uma vida de 73 anos, com tantos acontecimentos marcantes, em menos de uma hora.

E aqui já vai um alerta: a produção é realmente sobre Darwin, não sobre evolução em si. Isso vai ser relevante para sopesar as críticas que farei a seguir. Mas, sabendo disso, me agrada muito o fato de terem contado com sucesso a história por trás das principais publicações de Darwin. Seria muito fácil e cômodo relegar outras obras ao esquecimento quando se tem “A Origem das Espécies” no currículo do biografado, ou então só citá-las de passagem. Mas não: dentro do esquema da produção, ficou interessante a forma como as publicações foram abordadas, ainda que brevemente.

Aliás, a questão da brevidade com que alguns temas são tratados pode incomodar alguns, mas penso que é compreensível, dado o tempo limitado. Por sinal, há aspectos da vida de Darwin, como suas opiniões racistas e machistas, que poderiam ser cortados com a desculpa da “falta tempo”. Não, isso não foi feito. Gostei da forma como esse tema foi abordado, com uma postura que compreende o período no qual Darwin viveu, mas que nem por isso “passa pano” para as crenças problemáticas do grande naturalista. Sim, Darwin era contra a escravidão, mas isso não significa que ele acreditasse na igualdade entre todas as “raças”, etnias, ou entre os sexos. Basta ler The Descent of Men (1871) que tudo fica bem claro.

Obviamente que o roteiro teria de falar sobre a viagem do HMS Beagle e a passagem de Darwin pelo arquipélago de Galápagos. Fiquei feliz demais ao ver que a lenda dos tentilhões, sobre a qual já escrevi aqui na coluna, não foi replicada. Porém, e aqui começam as minhas críticas, creio que a história dos tordos imitadores (mockingbirds) acabou se misturando um pouco com a dos tentilhões. No documentário, sugere-se que quando Darwin voltou à Inglaterra, um olhar mais minucioso sobre os tordos revelou que havia um conjunto diferente de adaptações em cada ilha. Pois bem, é aí que eu acho que as histórias se misturaram, pois esse exame pós-retorno diz respeito sobretudo aos tentilhões, não aos tordos. Sobre esses últimos, ele já havia percebido a questão biogeográfica ainda em Galápagos, como a própria produção também reconhece.

Outra questão passível de discussão é o impacto de Robert Grant, professor de Darwin em Edimburgo. O documentário diz que as ideias desse lamarckista mexeram com a cabeça de Darwin, mas a própria Autobiografia de Charles Darwin não concorda muito com essa visão.  Sobre Grant, Darwin escreveu:

“Eu o conhecia bem; ele era seco e formal nos modos, mas com muito entusiasmo por baixo dessa crosta exterior. Um dia, enquanto caminhávamos juntos, irrompeu em admiração entusiasmada por Lamarck e suas ideias sobre evolução. Ouvi em silêncio, surpreso, e, pelo que posso julgar, sem que isso tivesse qualquer efeito sobre minha mente”.

Claro, talvez o velho Darwin já não estivesse julgando bem o efeito que algumas ideias de determinadas pessoas podem ter tido em condicionar o caminho trilhado por ele. Meu amigo Niles Eldredge, por exemplo, acredita (ver Eternal Ephemera, 2015) que, quando viaja no Beagle, Darwin já estava bem por dentro da perspectiva lamarckista (e talvez outra, a do Italiano Giambattista Brocchi, que não cabe comentar aqui) sobre a transmutação das espécies, pois ele poderia ter lido artigos lamarckistas ainda em Edimburgo. Claro, a bordo do Beagle ele leu os três volumes dos Princípios de Geologia de Charles Lyell, que criticava as ideias de Jean-Baptiste de Lamarck. Aliás, isso deve explicar o medo que Darwin teria de tornar públicas suas ideias sobre a instabilidade das espécies.

E por falar em Lamarck, não me agradaram as girafas, sempre elas. Escrevi sobre a questão recentemente, então não vou elaborar muito aqui. Mas sabemos que esse exemplo não foi dominante nem para Lamarck, nem para Darwin. E que tanto Darwin quanto Lamarck acreditavam em uso e desuso, bem como na herança dos caracteres adquiridos. E essas duas ideias, especialmente a segunda, nem são de autoria de Lamarck (por exemplo, ver Zirkle 1946). Eu sei que é um vídeo sobre Darwin, mas seria legal aproveitar a oportunidade para destruir um mito, como fizeram implicitamente com a questão dos tentilhões.

Sobre a descoberta da seleção natural, penso que da forma como aparece no vídeo, já passada meia hora, depois de já terem falado tantas coisas, dá a entender que ele descobriu isso muito mais tarde do que de fato ocorreu. Não sei se foi efeito de montagem, ou decisão de roteiro, mas estranhei. Contudo, aprecio como deixaram clara a influência que o contexto sociocultural pode ter tido sobre Darwin.

Há questões menores, como chamar Darwin de “pai da teoria da evolução”, ou o próprio título do vídeo (desnecessariamente beligerante), mas eu já me alonguei demais, e não quero deixar uma impressão ruim. Pelo contrário, gostaria de recomendar aos leitores que assistam e recomendem o vídeo. É uma contribuição relevante para a divulgação científica no Brasil. De uma maneira muito positiva. Isso me deixa feliz demais. Nota 9/10. Parabéns aos envolvidos!

João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

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