Pesquisar homeopatia contra COVID-19 é perda de tempo

Artigo
8 mai 2020
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caixa de medicamentos homeopáticos

Um dos principais fundamentos da homeopatia é “similar cura similar”. Ou seja, se você estiver com o nariz escorrendo, olhos lacrimejando e dores de cabeça em razão de um resfriado, precisará encontrar algo, na natureza, que provocaria esses sintomas numa pessoa saudável. No caso, um dos medicamentos homeopáticos indicado seria o Allium cepa, preparado ultradiluído feito com o extrato de cebola. Quando cortamos cebola, ela pode nos causar os sintomas de olhos lacrimejando, nariz escorrendo, similares aos do resfriado. Porque, afinal, “similar cura similar”.

É importante lembrar que não existe nenhuma lei da química ou da biologia que embase a ideia de que doenças se curam, preferencialmente, por remédios com efeitos “semelhantes” a seus sintomas. Trata-se de um princípio que não é científico, mas místico-filosófico, e que o inventor da homeopatia, Samuel Hahnemman (1755-1843), surrupiou do alquimista Paracelso (1493-1541) sem, no entanto, dar o devido crédito.

Foi com base nesse fundamento que a Associação Médica Homeopática Brasileira (AMHB) criou um grupo de estudo com o objetivo de observar os sintomas característicos do primeiro estágio da COVID-19, doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2. Observando os sintomas causados pela doença, a AMHB espera determinar quais medicamentos homeopáticos seriam indicados para seu tratamento

Essa análise inicial foi feita com um grupo pequeno de pacientes e, no dia 3 de abril, a associação divulgou o relatório intitulado “ESTUDO PRELIMINAR PARA AVALIAÇÃO DE SINTOMAS E MEDICAMENTOS PREVALENTES DO 'GÊNIO EPIDÊMICO' DA PANDEMIA DE COVID-19 NO BRASIL”.

 

Conceitos

Um conceito que aparece no documento da AMHB é o de “miasmas”. A palavra surge no texto em uma citação de Samuel Hahnemann: “O remédio capaz de manter a saúde sem ser infectada pelo miasma da escarlatina...”

Hahnemann desenvolveu os conceitos da homeopatia no final do século 18, início do século 19, época em que se acreditava que as doenças eram transmitidas pelos odores de locais contaminados, como água estagnada ou matéria orgânica em decomposição, chamados “miasmas”. Depois dos estudos de Louis Pasteur, Robert Koch, Ferdinand Cohn e da formulação da Teoria Microbiana das Doenças, o conceito de miasma como agente causador de doenças deixou de ser utilizado na ciência.

Na doutrina homeopática atual, “miasmas” são vistos às vezes como uma predisposição inata a certos tipos de sintoma, às vezes como uma espécie de força mágica que afeta a “energia vital” do paciente. De qualquer modo, seria prudente que os autores do documento da AMHB deixassem isso claro no texto, para não causar ainda mais confusão nos leitores. Ainda mais com um vírus que provavelmente se espalha pelo ar.

 

Estudos

A AMHB criou uma comissão para estudar e avaliar os sintomas da COVID-19. Essa comissão solicitou a médicos homeopatas, por meio de boletins e mensagens enviados pela AMHB em mídias sociais, que remetessem relatos de casos de pacientes brasileiros infectados pelo coronavírus, com diagnóstico laboratorialmente confirmado. Dessa forma a comissão conseguiu acompanhar os sintomas de 27 pacientes. Os sintomas mais prevalentes relatados foram:

Indisposição/Fadiga/Astenia/Fraqueza/Cansaço – 74% dos pacientes

Febre – 70% dos pacientes

Tosse seca – 70% dos pacientes

Levando em conta esses sintomas mais recorrentes e alguns outros, os pesquisadores consultaram volumes de “Matéria Médica Homeopática”, obras que descrevem o conjunto de sintomas relatados por pessoas saudáveis que ingeriram materiais candidatos a medicamentos homeopáticos. Os autores chegaram à seguinte lista de remédios que seriam indicados para o tratamento (ou prevenção) da COVID-19:

1. Arsenicum album: preparado homeopático derivado do elemento metálico arsênico. É usado pelos homeopatas para tratar uma variedade de sintomas que incluem distúrbios digestivos, insônia, alergias, ansiedade, depressão e transtorno obsessivo-compulsivo.

2. Bryonia alba: remédio homeopático produzido a partir de uma planta da família das Cucurbitaceae, que se agarra firmemente a outras estruturas para crescer. Indicada para o tratamento de uma infinidade de doenças e sintomas, como tosse seca, dores de cabeça e febre. Mas também cleptomania e gritar dormindo.

3. China officinalis: substância é preparada da casca da árvore Cinchona calyssaia. Considerada um dos primeiros preparados homeopáticos, experimentado inclusive pelo próprio Hahnemann, que descreveu os sinais e sintomas que foram aparecendo após ingerir a China. Dentre eles, esgotamento físico, apatia mental, desânimo, hipersensibilidade dos sentidos, dor de cabeça, fraqueza por perda de líquidos, palidez, sede de água fria, hemorragias, anorexia e febres a cada três dias

4. Chininum arsenicosu: preparado a partir da quinina (ou quinino). Os sintomas causados pela ingestão da substância são: dores de cabeça, nos olhos e na boca. Sensação de que o coração está parando e febres. A cloroquina e a hidroxicloroquina, que se tornaram famosas pela tentativa de uso para combater a COVID-19, são derivados da quinina.

 5. Phosphorus: produzido a partir do elemento químico fósforo. O remédio é recomendado para tratar problemas circulatórios, como mãos frias ou membros excessivamente quentes. É muito útil para o medo e a ansiedade que provocam stress, insônia e cansaço.

Todas as descrições acima foram adaptadas das matérias médicas dadas como referência no relatório da AMHB. Quem ficou preocupado ao ver materiais tóxicos, como arsênico ou fósforo, na lista, pode relaxar: remédios homeopáticos, em geral, usam princípios ativos diluídos até um ponto em que não resta uma única molécula do ingrediente na preparação final.

 

Pressupostos

Os autores indicam que esse estudo é o ponto de partida para o início de estudos clínicos utilizando os cinco medicamentos homeopáticos citados. Essa lista de remédios não é final e pode sofrer alterações, conforme novos sintomas da COVID-19 forem sendo descobertos.

Pois bem, aqui temos um clássico caso de ciência da Fada do Dente, termo cunhado pela médica Harriet Hall, que também escreve sobre pseudociência e práticas médicas questionáveis. Já traduzimos um texto dela aqui e citamos aciência da Fada do Dente” aqui.

Sem entrar em detalhes, fazer ciência da Fada do Dente significa estudar um fenômeno antes de estabelecer se ele existe: no caso, a eficácia da homeopatia para qualquer problema de saúde. Tanto o apego à lei dos similares quanto, mais crucialmente, o uso de diluições extremas tornam a ideia de que tratamentos homeopáticos possam ser úteis para alguma condição de saúde muito pouco plausível.

E por mais que médicos homeopatas bradem por todos os cantos que há evidências comprovando que homeopatia é um fenômeno real, quando essas evidências são analisadas de modo crítico e desapaixonado podemos concluir que elas são extremamente frágeis. Não é por outro motivo que os sistemas de saúde de países como França e Inglaterra abandonaram a prática.

Por conta disso, todo o trabalho que provavelmente será realizado por homeopatas e certificado pela AMHB será um exercício de ciência da Fada do Dente. Vamos olhar um cenário hipotético, baseado num histórico do tipo de artigo “científico” que homeopatas costumam produzir:

Um grupo de 40 pessoas com sintomas que parecem indicar COVID-19 será dividido em dois: 20 pessoas receberão um dos cinco remédios homeopáticos indicados e as outras 20 não receberão nada, formando o grupo controle.

Como a COVID-19 não é uma sentença de morte, é muito provável que uma parcela do grupo que recebeu o medicamento não tenha os sintomas graves da doença e se recupere. O que é passível de acontecer com o grupo controle também.

Como eles já têm certeza formada de que o medicamento funciona, o viés de confirmação – a tendência de enxergar os resultados da maneira mais positiva possível – é alto. Por exemplo, talvez o grupo dos 20 que receberam tenha um acompanhamento mais intenso e cuidadoso do que os outros 20 que não receberam o tratamento.

Ou que o estudo, ao produzir um resultado negativo, seja desconsiderado, a pretexto de alguma suposta “falha”, e refeito e refeito, até que alguma repetição os resultados mostre – provavelmente, por pura sorte – o que os autores gostariam de ver. Números ruins também podem sofrer “massagem estatística” e parecer significativos.

 

Inveja da ciência

Uma maneira muito usada de produzir esse efeito é a das “comparações múltiplas”, quando vários resultados são medidos no mesmo estudo – digamos, duração dos sintomas em horas e também em dias; intensidade da febre após uma semana, dez, quinze dias; número de acessos de tosse ao dia etc – até que um deles (de novo, por pura sorte) dê a impressão de que o remédio traz algum benefício.

Práticas assim, infelizmente, não são exclusividades de terapias alternativas que sofrem com “inveja de ciência”. A pandemia nos mostrou que diversos cientistas estão deixando de lado princípios básicos dos testes clínicos e politizando tratamentos, como vem acontrecendo com testes para avaliar a eficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina. No início da pandemia, dizia-se que não haveria tempo para fazer testes bem controlados, era urgente salvar vidas. Agora o tempo passou, e o que temos são estudos de má qualidade, que consumiram recursos escassos e não provaram nada.

Diferente da cloroquina, a homeopatia, se preparada corretamente, não é tóxica – já que não contém nada. Ainda assim, representa um beco sem saída pseudocientíficio que consumirá tempo e esforços que poderiam ser muito melhor empregados. Como bem disse artigo de opinião recém-publicado na renomada revista Nature, urina de vaca, água sanitária e cocaína já foram recomendas como curas da COVID-19, e é hora de dar um basta. Devemos parar de tolerar e legitimar as pseudociências – e ciência mal feita – em saúde.

Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia, pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo e atual coordenador nacional do Pint of Science no Brasil

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