Livro sobre "memória da água" não chega nem a estar errado

Resenha
20 mar 2020
Capa de "The Missing Drop"

"Se examinarmos a teoria pré-dialética, a pessoa é confrontada com uma escolha: ou aceitar o socialismo ou concluir que a sexualidade tem um significado intrínseco, mas somente se a verdade é igual à sexualidade. Em certo sentido, Gibson desconstrói a leitura derridiana em reconhecimento de padrões, embora ele reitere o socialismo. 'A identidade sexual é intrinsecamente impossível', diz Lacan." 

O trecho acima foi extraído do livro "Ciência e Pseudociência", do psicólogo e professor universitário Ronaldo Pilati. Foi redigido por um gerador automático de textos que usa palavras escolhidas ao acaso, produzindo frases gramaticalmente corretas, mas incoerentes. Caso o parágrafo inicial deste artigo tenha lhe causado estranheza, por não fazer nenhum sentido, então você sentiu algo semelhante ao que senti lendo o livro "The missing drop - The calling for the memory of water" sobre a fantasiosa memória da água.

No texto sobre a mentira das terapias quânticas, já escrevi um pouco sobre o processo de produção de um texto pseudocientífico: essencialmente, ele precisa se fantasiar de ciência para tentar passar alguma bobagem. No livro "The missing drop" não é diferente. Informações referentes a propriedades da água parecem ser pinçadas de maneira randômica, para criar um cenário onde ideias espúrias, sem nenhum respaldo em experimentos confiáveis ou em teorias físico-químicas bem consolidadas, serão inseridas. Em alguns trechos, a omissão da informação completa, seja intencional ou por desconhecimento, induz o leitor a concluir algo que não é verdadeiro. Os capítulos finais são dedicados a mostrar algumas supostas aplicações dessa “água com memória” associadas à homeopatia.

A existência deste livro é bastante peculiar. Trata-se de uma obra em inglês, escrita por brasileiros e publicada numa editora espanhola. O texto tenta mostrar, nos primeiros capítulos, a existência residual de uma memória da água, seja após o contato com um campo magnético ou um soluto. Essa tentativa pode até intrigar um leitor pouco familiarizado com a linguagem científica, mas o fato é que a imensa maioria dos exemplos e explicações dados no livro não sobrevive a uma análise séria. 

Os demais capítulos descrevem supostas aplicações – fantasiosas – de uma memória duradoura da água em homeopatia e agricultura. É importante notar que a maioria das referências fornecidas não passa de livros cheios de especulações, que não passaram por nenhuma revisão por especialistas antes de serem publicados, ou artigos em revistas ditas “científicas”, mas de qualidade duvidosa. 

Os poucos artigos vindos de revistas sérias são exemplos de como não fazer ciência (são parte daquela minoria de trabalhos ruins que, por circunstâncias várias, acabaram aceitos por boas publicações), ou foram pinçados de maneira aparentemente aleatória para dar um verniz de rigor ao conjunto do livro.

Tão pitorescas quanto a epígrafe bíblica no início da obra, antecipando que se trata de um livro quase que dogmático e sem rigor científico, são suas páginas finais. O livro, até então todo em inglês, fecha com um artigo, em português, de um experimento pueril que se propõe a estudar se uma amostra de água, submetida a um campo magnético, acelera o crescimento de plântulas de feijão. 

É um experimento que se encaixa perfeitamente na definição de  "ciência da fada-do-dente", uma expressão cunhada pela médica americana Harriet Hall. A ciência da fada-do-dente consiste basicamente em estudar as características e detalhes de um fenômeno antes de estabelecer se ele existe: você pode medir a quantidade de dinheiro que a fada-do-dente deixou sob o travesseiro, se o pagamento é maior para o primeiro ou último dente ou se a recompensa é maior para um dente embalado em um plástico ou em um lenço de papel. Pode coletar dados de diversas crianças para ter uma estatística razoável sobre o comportamento e as preferências pessoais da fada. O detalhe, porém, é que a fada-do-dente não existe, e há uma explicação muito mais plausível para os resultados experimentais.

Diluições homeopáticas

A homeopatia é prática reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina e integra o currículo de diversas universidades públicas. A constatação desse fato é assustadora, tendo-se em vista que a inexistência de princípio ativo nas poções homeopáticas leva os defensores dessa prática a recorrer a malabarismos e contorcionismos intelectuais que culminam em negação da ciência. Não se trata de estarmos no campo do desconhecido ou em uma zona onde a ciência ainda não desenvolveu métodos para medir os efeitos e causas. É negacionismo, mesmo. 

Mas o que é a homeopatia? Antes de tudo, é importante que não se confunda homeopatia com fitoterapia. A fitoterapia tem alguns problemas intrínsecos à prática, mas de fato existe algum princípio ativo nos preparados fitoterápicos. Na homeopatia, não existe nada. É água, açúcar ou alguma outra coisa desprovida de qualquer princípio ativo. A Revista Questão de Ciência já publicou diversos textos sobre este assunto.

A confecção de poções homeopáticas se dá através de diluições sucessivas, até que não sobre nenhuma molécula do princípio ativo no solvente. Ao longo do processo de diluição, devem ser feitas agitações vigorosas da poção para que, nas palavras do próprio criador da prática, sejam "despertadas as propriedades medicinais, latentes nas substâncias naturais enquanto em estado bruto". A inexistência de qualquer princípio ativo faz com que alguns homeopatas recorram à hipótese estapafúrdia, já refutada, da memória da água. Mas voltemos ao livro. 

 

Origem da “memória da água”

A epígrafe antecipa que se trata de uma obra essencialmente dogmática. O assunto que consta no título não tem lastro em nenhuma publicação de revista científica respeitada pela academia. Porém, para um leitor que não esteja familiarizado com o assunto, esta afirmação pode soar um pouco estranha porque logo no início da obra existe uma citação do trabalho de Jacques Benveniste sobre a memória da água publicado na Nature, a revista científica de maior impacto no mundo, ao lado da Science.

Os autores, logo no primeiro capítulo, escrevem que o grupo de Benveniste já demonstrou que um soluto submetido a ultradiluições, mesmo que não esteja presente no composto final, ainda é capaz de causar efeitos biológicos. Esta informação está incompleta, e não é compreensível o motivo para a omissão de toda a história. Arrisco dizer que existem três possibilidades, todas muito graves: os autores desconhecem a história por trás do artigo; omitem-na de propósito; ou negam o desfecho, publicado na mesma Nature.

O editor da Nature, no momento em que a submissão de Benveniste chegou aos escritórios da publicação, era o físico e químico John Maddox. Ao receber o artigo de Benveniste, Maddox achou o resultado e a conclusão do trabalho completamente implausíveis, mas ao mesmo tempo, surpreendentes. As respostas de Benveniste aos questionamentos dos árbitros da revista convenceram Maddox a publicar o artigo tendo em vista que, se o resultado fosse verdadeiro, os desdobramentos seriam incríveis. 

Maddox escreveu um editorial sobre os motivos que o levaram a aceitar o artigo, mas também impôs, como condição para a publicação, que Benveniste permitisse o acesso aos cadernos de laboratório, e que o experimento fosse repetido sob a supervisão do próprio Maddox, do ilusionista James Randi e de Walter Stewart. 

Seguiu-se que o resultado obtido não pôde ser reproduzido pelo próprio grupo de Benveniste, enquanto sob supervisão do grupo da Nature. Concomitantemente, houve também a manifestação de diversos laboratórios no mundo que não conseguiram reproduzir o resultado. 

O contato com os cadernos de laboratório do grupo de Benveniste mostrou uma série de erros grosseiros envolvendo a análise de dados e, mais grave ainda, o descarte sumário de dados contrários à conclusão pré-determinada, de que a água tinha memória. Não é preciso ser especialista em estatística para concluir o que acontece quando, após jogar uma moeda para o alto diversas vezes, você decide que todas as vezes em que ela deu cara “não contam”: você vai concluir que, ao jogar a moeda, o resultado é sempre coroa. 

Embora o artigo de Benveniste não tenha sido retratado (isto é, formalmente excluído da revista e da literatura científica), um artigo do trio que investigou o trabalho expôs, na própria Nature, as inúmeras falhas da pesquisa de Benveniste. O artigo que buscava demonstrar a “memória da água” tornou-se um exemplo didático do que não deve ser feito em ciência. Encontrá-lo, portanto, nas primeiras páginas de um livro, e citado como referência séria, é deplorável. 

Trecho da Nature

 

Quântico ou clássico

A utilização indevida do termo “quântica” (e variações) associada a situações do cotidiano, considerando pessoas como se fossem átomos, prótons ou elétrons, tornou-se algo muito comum atualmente. Fenômenos associados à mecânica quântica, por exemplo, existem somente em determinados contextos e não podem simplesmente ser estendidos para o dia a dia. 

Um dos motivos é que a interação do sistema físico com o ambiente faz com que o comportamento do sistema adquira um caráter clássico: não há, por exemplo, nenhum problema em determinar exatamente onde uma bola de basquete parada está. Toda a incerteza decorrente da mecânica quântica não existe mais. 

Há, ainda, situações em que átomos ou moléculas formam estruturas quânticas denominadas "estados ligados". Esses sistemas microscópicos fazem com que dois, três, ou mais átomos ou moléculas formem uma estrutura coesa, com uma certa geometria. Apesar do formalismo matemático ser completamente distinto do sistema Sol-Terra-Lua, é ilustrativo lembrar desse sistema formado por três corpos celestes para visualizar o seria um estado ligado no nível microscópico. Porém, diferente dos corpos celestes, os estados ligados de átomos e moléculas em líquidos ou gases não possuem uma trajetória definida. 

A introdução acima se faz necessária para dizer que a formação de estruturas, ou “clusters”, decorrentes da associação de moléculas de água, pode existir por tempos curtíssimos e em situações muito específicas. O contato da água com alguma superfície, ou a presença de um soluto na amostra, faz com que haja a formação de uma estrutura próxima ao soluto ou à superfície, mas que some quase que instantaneamente assim que o contato termina. O mesmo acontece com a aplicação de um campo magnético: a água é afetada pela presença do campo, mas tão logo ele é afastado, a influência desaparece.

Nenhuma das coisas mencionadas no livro, sejam os clusters ou a reação da água por causa da presença do campo magnético, podem ser invocadas para afirmar que a água tenha alguma memória. Qualquer efeito remanescente se esvai em intervalos de tempo ínfimos, o que o torna incapaz de causar influências relevantes em humanos, animais ou plantas. 

 

Decoerência

Os autores afirmam ainda que a agitação do solvente e soluto faz com que ambos estejam instantaneamente conectados por causa do emaranhamento quântico. Isso está errado. A maioria dos fenômenos que podem ser descritos utilizando-se a mecânica quântica simplesmente desaparece quando interage com o ambiente, através de um processo chamado de decoerência. 

Um sistema quântico pode ser descrito por uma superposição de estados. Em outras palavras, imagine que você pôs uma "moeda quântica" dentro de uma caixa. Você pode abrir a caixa para saber se a moeda está com a cara ou a coroa virada para cima, mas antes disso, a moeda estava em um estado formado pela superposição de cara E coroa. Ela era, simultaneamente, cara E coroa. 

Suponha, agora, que essa mesma moeda tenha um comportamento clássico. Neste caso, mesmo que você não saiba de que lado a moeda está na caixa, a única possibilidade é que ela seja cara OU coroa. É uma OU outra. 

Um sistema quântico emaranhado é uma composição de dois ou mais estados quânticos que simplesmente não existem individualmente. Apesar de não haver nenhum análogo clássico para exemplificar o que seria esse estado emaranhado, podemos tentar entendê-lo através de uma metáfora. 

Imagine que temos dois dados, mas que você só tenha acesso à soma total dos dois, por exemplo, 7. A combinação dos valores individuais dos dados poderia ser qualquer uma dessas duplas (6,1), (5,2), (4,3), (3,4), (2,5) ou (1,6). Um sistema emaranhado é parecido com a situação colocada aqui: você conhece o resultado final, mas não conhece os estados individuais. Porém, uma vez que você meça qualquer um dos dois componentes do sistema, você descobre qual é o valor do outro. 

Experimentos envolvendo emaranhamento quânticos são usualmente feitos em condições experimentais bem especiais como, por exemplo, baixíssimas temperaturas, ou utilizando alguns materiais bem específicos – nada a ver com frascos de vidro cheios de água, chacoalhando no bolso do paletó, ou a água de um regador utilizada para molhar um pé de feijão.

As analogias acima, contrapondo os comportamentos quântico e clássico, são realmente estranhas, mas não existe nenhuma dúvida de que a natureza se comporta assim. Embora a questão de como se dá a transição entre os comportamentos quântico e clássico ainda seja tema atual de estudo, não há dúvida de que o emaranhamento quântico, mencionado no contexto deste livro, é apenas uma tentativa pueril de confundir o leitor. 

Os últimos capítulos tentam mostrar possíveis aplicações de algo que não existe. É claro que, a partir de pressupostos errados, pode-se navegar pela fantasia que se quiser (assuma que dois é igual a um. Como você e o papa são dois, temos que você e o papa são um, diria o filósofo Bertrand Russell). A única conclusão possível da verificação de eventuais efeitos provenientes da "memória da água", invocada no livro, é que provavelmente os estudos estão errados, ou que apresentam  alguma flutuação estatística insignificante. 

No geral, o texto é ruim e falha ao tentar defender a tese proposta. A imensa maioria das referências é composta por livros ou jornais de qualidade duvidosa. A famosa frase do ganhador do Nobel de Física de 1945, Wolfgang Pauli, cai como uma luva para este livro: “not even wrong” – “nem chega a estar errado”.

Marcelo Yamashita é doutor em Física, professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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