Medicina alternativa é o elefante na sala da pandemia

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25 mai 2020
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A Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu, no início de maio, uma nota advertindo contra o uso de ervas e outras curas “naturais”, não testadas, no contexto da pandemia atual. Num impressionante ato de malabarismo retórico, a agência, por um lado, “reconhece que a medicina tradicional, complementar e alternativa tem muitos benefícios” mas, por outro, afirma que “o uso de produtos para tratar COVID-19, que não tenham sido investigados de modo robusto, pode pôr pessoas em perigo”.

Nem mesmo os quatro parágrafos que separam as duas sentenças amenizam a contradição evidente: o fato de um tratamento ser considerado tradicional, complementar ou alternativo é, quase sempre, um salvo-conduto e um pretexto para isentá-lo da exigência de qualquer tipo de investigação robusta. Não faz muito tempo, por exemplo, a Anvisa brasileira preparava uma regulamentação especial para tratamentos “tradicionais”, muito menos exigente do que a imposta a medicamentos “normais”. E, em todo o mundo, é comum que preparados homeopáticos, por exemplo, sejam isentos da exigência, imposta a todos os demais fármacos, de demonstrar segurança e eficácia em testes clínicos controlados.

De fato, boa parte da defesa ideológica das terapias tradicionais e alternativas tem por base a crítica àquilo que às vezes é chamado de “episteme” ou “paradigma” da ciência dita “ocidental”, que seria apenas mais um “modo de saber”, uma narrativa em pé de igualdade com a “experiência vivida dos povos”, tradições orais, a vivência cotidiana dos médicos (ou xamãs, ou benzedeiras, etc.) no trato dos pacientes.

Por exemplo, a editora de revistas científicas Elsevier publica um livro-texto, “Fundamentals of Complementary, Alternative, and Integrative Medicine” (“Fundamentos da Medicina Complementar, Alternativa e Integrativa”), onde o autor, Marc Micozzi, escreve: “o sistema biomédico [isto é, a medicina 'comum'] nem sempre é capaz de justificar e usar muitas observações importantes nos reinos da experiência clínica e pessoal, da lei natural e da espiritualidade humana”.

 

Cloroquina

A ideia de que o processo “normal” de validação científica de procedimentos médicos e tratamentos de saúde é apenas um rito arbitrário, ou luxo ou, no máximo, um “igual entre pares” (onde os demais "pares" são experiência pessoal, folclore etc.), ganhou circulação, mesmo entre médicos que nunca se viram como “alternativos”, com a emergência do mito da cloroquina/hidroxicloroquina (CQ/HCQ) como tratamento mágico contra a COVID-19.

O desencadeador da onda da cloroquina, o pesquisador francês Didier Raoult, defende uma “ciência pós-moderna”, onde “teorias arrogantes” não nos impedirão de “ver o que está diante do nariz” (essas ideias estão no livro de Raoult de 2015, “Of Ignorance and Blindness”, ou “Sobre Ignorância e Cegueira”).

Pós-modernismo à parte, não deve ser coincidência o fato de que uma das principais proponentes do uso de CQ/HCQ no Brasil, a médica Nise Yamaguchi, tenha um currículo recheado de trabalhos com terapias como homeopatia, reiki e medicina antroposófica, todas consideradas “integrativas e complementares”, beneficiárias usuais do argumento das “diferentes epistemes”.

 É interessante notar que, assim como a CQ/HCQ — cujo uso contra a COVID-19 foi “revelado” ao mundo por Didier Raoult, que teria visto “o que está diante do nariz”, mas que ninguém mais havia enxergado —, terapias alternativas como as citadas no parágrafo acima (reiki, homeopatia, antroposofia) brotaram todas, também, da imaginação de autoproclamados “gênios” singulares (respectivamente, Mikao Usui, Samuel Hahnemann, Rudolf Steiner) que “desafiaram a ortodoxia” de seus tempos. É possível multiplicar ainda mais os exemplos: quiropraxia (D.D. Palmer), constelação familiar (Bert Hellinger), florais (Edward Bach), e assim por diante.

Existe um padrão histórico de homens (quase sempre são homens) que põem o fruto de seus insights e experiências pessoais num patamar igual — ou superior! — ao dos resultados de testes científicos bem controlados, ou de princípios fundamentais da ciência, e se tornam gurus de movimentos que prometem cura e saúde. Muito da medicina alternativa é, na verdade, Medicina Baseada em Arrogância. Raoult e a cloroquina seguem esse gabarito.

 

Um novo paradigma?

Proponho que parte significativa da facilidade com que o relaxamento dos padrões de evidência médica foi abraçado, frente à pandemia atual, deve ser atribuída à leniência fomentada, historicamente, pelos movimentos de promoção de terapias alternativas. A própria OMS, em diversas diretrizes anteriores (como na promoção incessante e acrítica da Medicina Tradicional Chinesa), vinha incentivando uma leitura bem generosa do que conta como “evidência”.

A nota atual, no entanto, traz uma reviravolta a esse respeito: para resolver a contradição entre “tradicional, complementar e alternativa” e “investigados de modo robusto”, o texto da Organização Mundial da Saúde, produzido no contexto do combate à pandemia na África, afirma categoricamente que “é crítico que mesmo terapias derivadas de práticas tradicionais e naturais tenham eficácia e segurança estabelecidas por meio de testes clínicos rigorosos”.

Esta diretriz da OMS choca-se frontalmente com todo o discurso — que, no passado, teve endosso de setores da própria Organização — de que aquilo que é “tradicional e natural” deve ser avaliado por regras próprias, ou que o uso tradicional já conta, em si mesmo, como evidência crível.

Se a norma apresentada para a África frente à COVID-19 não for esquecida quando a emergência global passar, assistiremos a uma verdadeira revolução — uma “mudança de paradigma”, para ficar num jargão conhecido — na conversa sobre o lugar e o papel das terapias alternativas no mundo.

A crise sanitária trazida pelo novo coronavírus pôs em altíssimo relevo e em primeiro plano as implicações, em termos de vidas humanas, de um debate que, na maior parte do tempo, pode parecer mera disputa filosófica (ou política): o que é conhecimento, como se produz conhecimento válido, o que é uso responsável do conhecimento. Que não se perca, daqui a pouco, a nitidez cristalina dessa imagem.

 

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência. É coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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