Iguais perante a ciência

Editorial
5 dez 2018
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xilogravura de alquimista

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) anunciou, no fim de novembro, o lançamento de estudos para a criação de uma regulamentação específica para tratamentos de saúde ditos “tradicionais” – os exemplos dados pela própria agência são a Medicina Tradicional Chinesa (MTC) e os Florais de Bach.

A ideia pode parecer, num primeiro momento, interessante, já que nessa área impera uma verdadeira lei da selva: alguma regra há de ser melhor do que regra nenhuma. No entanto, é estranho, para dizer o mínimo, que a regulamentação em estudo seja “específica”. E o estranhamento logo se converte em desalento quando lemos, em nota divulgada pela agência, que as normas para produtos “tradicionais” prescindirão da “necessidade de registro ou de outro tipo de autorização prévia”.

Em outras palavras: imagine que você é um cientista que, depois de muitos estudos, experimentos e do confronto com as críticas de seus pares e colegas de especialidade, acredita ter uma nova molécula capaz de reduzir os efeitos da enxaqueca. Antes que possa pôr sua descoberta à venda, a regulamentação brasileira exige que você realize experimentos delicados, aprovados por comitês de ética, para demonstrar que o produto é seguro, identificar os efeitos colaterais e demonstrar que traz benefício superior ao de um placebo.

Esse é um procedimento perfeitamente lógico, razoável e necessário: a história da Medicina está repleta de medicamentos que pareciam, aos olhos de seus criadores e adeptos, ótimos, seguros e eficazes, mas que na verdade eram inúteis ou apenas apressavam o fim da vida dos pacientes. A necessidade premente de testes rigorosos de segurança e eficácia foi uma lição aprendida pela humanidade ao longo de séculos de muita dor, morte e sofrimento.

Mas um produto dito “tradicional” não precisará de nada disso. Chame sua molécula contra a enxaqueca de pó mágico dos Incas Venusianos e, de repente, todo o sistema de verificação científica de segurança e eficácia deixa de ser requerido. Bem-vindo ao sempre crescente mercado das Práticas Integrativas e Complementares (PICs).

O que justificaria tal relaxamento? Rigorosamente, nada. A ideia de que a “tradição” – por, talvez, ter sobrevivido ao sempre superestimado “teste do tempo” – representaria, de algum modo, uma prova razoável de segurança e um indício aceitável de eficácia é, na melhor das hipóteses, ingênua; se proferida por profissionais da ciência ou da saúde, revela uma assustadora ignorância da história de seus próprios campos de atuação.

Na Idade Média e na Renascença, as maiores mentes médico-filosóficas da Europa acreditavam que a astrologia era um guia infalível para o diagnóstico médico e a definição de tratamentos de saúde – incluindo sangrias ou preparados à base de materiais tóxicos, como chumbo, porque associados a signos ou planetas vistos como influentes sobre as doenças. Essa era a tradição. Que durou séculos.

No século 18, Benjamin Rush, um dos mais notáveis médicos dos recém-independentes Estados Unidos, decidiu usar um medicamento tradicional – um purgante à base de mercúrio, um metal tóxico – para tratar febre amarela. Não se sabe quantos pacientes ele desidratou ou envenenou, mas Rush escreveu tratados condenado os colegas que se recusavam a enxergar benefícios que, para ele, mostravam-se “óbvios”, e morreu jurando que seu remédio era, sim, a cura da doença.

Tal é a capacidade do ser humano para mentir para si mesmo; por conta disso, tal é a necessidade de testes científicos controlados.

Em tempos mais recentes, cientistas descobriram que as plantas do gênero Aristolochia, usadas há milênios na medicina tradicional da Europa Oriental e da Ásia, são tóxicas e cancerígenas. Antiguidade, como se vê, não é garantia de eficácia, muito menos de segurança.

Isso não significa, claro, que a tradição seja inútil: muitos defensores dos tratamentos tradicionais citam o caso da artemisinina, remédio para a malária desenvolvido a partir da aplicação dos métodos e protocolos da ciência ao estudo de uma planta citada em antigos textos chineses. Mas o que o caso da artemisinina revela é que a utilidade da tradição está em apontar coisas que merecem ser estudadas e testadas. Não em gerar salvos-condutos metodológicos baseados em antiguidade.

E nem mesmo antiguidade parece ser componente necessário da definição de “tradicional” da Anvisa. Os florais de Bach, citados na nota da agência, são uma invenção da década de 30 do século passado: existem, portanto, há menos de 100 anos. Por conta disso, os defensores do uso da desacreditada fosfoetanolamina sintética contra o câncer talvez possam reivindicar a mesma distinção – afinal, a “pílula do câncer” era uma “tradição” de décadas em São Carlos (SP) e arredores. Nosso cientista do pó venusiano também parece bem posicionado para conquistar seu quinhão do mercado, sem se preocupar com a chateação dos testes clínicos!

Alguém poderia argumentar que medicamentos submetidos aos testes científicos de segurança e eficácia também, às vezes, revelam-se inúteis ou perigosos. Mas o que esses casos excepcionais demonstram é que as salvaguardas científicas podem, em determinadas ocasiões, ser insuficientes – e insuficiente é bem o oposto de desnecessário.

Obter a melhor garantia possível de segurança e eficácia dos produtos de saúde disponíveis no mercado nacional é um direito do povo brasileiro, que cabe à Anvisa resguardar. Os testes científicos que geram essa garantia não são meros caprichos de aplicação opcional, mas fruto de séculos de desenvolvimento intelectual de toda a humanidade. Não há justificativa para que um rótulo tão fluido e, no fim, populista como "tradicional" leve a um relaxamento dessas normas e, por consequência, a uma violação dos direitos dos brasileiros e a uma abdicação dos deveres da Anvisa.

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