Acreditar em homeopatia vira critério em concurso no interior paulista

Questão de Fato
9 abr 2022
Autor
homeopatia feita de nada

 

 

O Estado brasileiro é laico, aponta a Constituição de 1988, mas a fé move montanhas e encontra cada vez mais espaço no dia a dia da gestão pública. E não são só pastores decidindo o destino de recursos no Ministério da Educação do governo do presidente Jair Bolsonaro. O poder da crença também move muitos dos pseudotratamentos que compõem a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde (PNPIC). Entre eles, a homeopatia, que, apesar de especialidade médica reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), não tem nenhuma base científica de ação, seja na física, na química ou na própria ciência da saúde.

Mesmo assim, conhecer o catecismo dos supostos benefícios da homeopatia parece ter sido considerado fundamental para quem pretende atuar como psicólogo da Prefeitura de Suzano, município do estado de São Paulo. Pelo menos é isso que indica a inclusão de uma questão enaltecendo a prática pseudocientífica em recente concurso público promovido por este município da Região Metropolitana de São Paulo, a 50 km da capital. O enunciado da pergunta 15 da seção sobre “Legislação e Políticas de Saúde” da prova é uma cópia resumida da descrição da homeopatia na Portaria 971, de 3 de maio de 2006, do Ministério da Saúde, que instituiu o PNPIC e tece loas à prática.

Ali encontramos afirmações anódinas, como a de que a homeopatia “recoloca o sujeito no centro do paradigma da atenção, compreendendo-o nas dimensões física, psicológica, social e cultural”; “fortalece a relação médico-paciente como um dos elementos fundamentais da terapêutica, promovendo a humanização na atenção, estimulando o autocuidado e a autonomia do indivíduo”; e “contribui para o uso racional de medicamentos, podendo reduzir a fármaco-dependência”.

Outra chama a atenção pela falta de evidências científicas robustas para embasá-la. Diz que a homeopatia “atua em diversas situações clínicas do adoecimento como, por exemplo, nas doenças crônicas não transmissíveis, nas doenças respiratórias e alérgicas, nos transtornos psicossomáticos, reduzindo a demanda por intervenções hospitalares e emergenciais, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida dos usuários” (grifos do autor). Também considerada “verdadeira” no gabarito do concurso - porquanto constante da portaria de 2006 do Ministério da Saúde -, esta alegação seria motivo de perda de pontos para qualquer candidato que mostrasse uma visão crítica da prática (veja uma reprodução da questão ao final deste artigo; a opção dada como correta no gabarito é a "e", que declara verdadeiros todos os elogios feitos à homeopatia nos itens do enunciado).

“Inusitada esta questão sobre homeopatia em uma prova deste tipo”, avaliou Ronaldo Pilati, psicólogo e professor de Psicologia Social da Universidade de Brasília (UnB). “E é no conhecimento geral sobre saúde e não nas competências específicas do cargo, o que talvez até seja mais preocupante. Toda e qualquer prova de seleção deveria ser baseada na descrição ampla e precisa dos comportamentos esperados na função. Sem isto bem feito, não tem como fazer um processo de seleção adequado”.

Especialista em psicologia do trabalho, Josemberg Moura de Andrade, também professor da UnB, foi outro que estranhou a questão, mas ponderou que o edital do concurso prevê a atuação do psicólogo em conjunto com outros funcionários da Prefeitura de Suzano em ações inter, multi ou transdisciplinares, o que talvez justificasse sua inclusão.

“A banca pode ter ido em uma direção de utilizar algumas perguntas mais generalistas considerando uma atuação interdisciplinar do psicólogo com outros profissionais da saúde”, disse.

 

Proselitismo religioso

Este não foi o único “pecado” do concurso tendo em vista o preceito constitucional da laicidade do Estado. A escolha do texto usado para a parte de interpretação da seção de língua portuguesa da prova e as questões subsequentes são um exemplo de proselitismo religioso disfarçado de debate para defender a “superioridade” do cristianismo a outros sistemas de crenças. O trecho, retirado do artigo “Um mundo sem culpa”, do colunista João Jonas Veiga Sobral para a edição de julho de 2019 da Revista Educação, destaca a importância do perdão no cânone cristão, tanto o vindo de Deus quanto de nossos companheiros humanos que porventura tenhamos ofendido.

O trecho do texto afirma que quando não obtemos o perdão de outras pessoas, “criamos a própria desculpa, transferindo a outros a culpa que seria nossa”. E, assim, continua, criamos “um perdão ‘expresso’, sem a intermediação de líderes religiosos e sem conversar com o ‘Homem lá de cima’”, no que aparenta uma crítica à não intermediação religiosa.

 

Sem explicações

Questionada sobre o conteúdo da prova, a Prefeitura de Suzano informou não ter participado de sua elaboração, a cargo do Instituto de Educação e Desenvolvimento Social Nosso Rumo. Segundo a administração municipal, a empresa “venceu um processo licitatório” para organizar o concurso, sendo a única responsável por sua banca avaliadora e aplicação das provas, às quais a prefeitura não teve acesso prévio. A licitação, no entanto, não consta das listas de concorrências promovidas pela administração municipal nos anos de 2022 e 2021 em seu site na internet.

Já quanto às perguntas da prova, a Prefeitura de Suzano informou que, “segundo a Secretaria Municipal de Administração, não houve nenhum questionamento” da parte dos candidatos. “Contudo, caso haja, a pasta se coloca à disposição do candidato para buscar esclarecimento junto à empresa”, acrescentou em breve nota enviada à Revista Questão de Ciência, orientando buscar mais esclarecimentos junto ao Instituto Nosso Rumo.

Também procurado, o Instituto Nosso Rumo – que se define como uma entidade sem fins lucrativos e que, portanto, poderia ser contratada por dispensa de licitação de acordo com o inciso XIII do artigo 24 da Lei nº 8.666/93 - por sua vez, informou que por se tratar de “processo de seleção pública em andamento” só comentaria o caso após sua homologação pela Prefeitura de Suzano. Então, disse por meio de e-mail seu gerente executivo, Paulo Guilherme Correa Silva Júnior, o instituto solicitaria autorização da prefeitura para, “em caso positivo”, responder aos questionamentos enviados pela RQC.

questão Suzano

 

Cesar Baima é jornalista e editor assistente da Revista Questão de Ciência

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