Pane do CNPq reflete descaso oficial com ciência brasileira

Questão de Fato
9 ago 2021
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Na noite de 23 de julho, uma pane nos servidores computacionais do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) “tirou do ar”, tornando indisponíveis, as plataformas Lattes (que armazena os currículos de todos os cientistas e acadêmicos brasileiros), Carlos Chagas (que gere todo o fomento da agência, como concessão de bolsas, contratação de projetos e prestação de contas, por exemplo), além do Diretório de Grupos de Pesquisa (no qual estão os cadastros de todos os grupos de pesquisa científica do país). A situação seguia sem solução até o momento em que esta reportagem era publicada, 16 dias depois.

Apesar da gravidade da situação, o CNPq não tem atendido à imprensa, nem prestado informações diretamente aos cientistas ou às universidades e instituições de pesquisa. Todas suas manifestações sobre o ocorrido têm sido feitas exclusivamente por meio de informes divulgados em suas redes sociais. No mais recente, de 7 de agosto, o órgão informa que a Plataforma Lattes foi restabelecida. “Esse restabelecimento inclui a possibilidade de atualização dos currículos e de cadastro de novos usuários”, diz o Informe 10. “Como informado neste sábado pela manhã, foi restaurado, também, o serviço de extração do Lattes, que permite, a mais de 300 instituições de ensino e pesquisa, a extração dos currículos de seus pesquisadores, docentes e discentes”. Os demais sistemas – tais como a Plataforma Carlos Chagas e Diretório de Grupos de Pesquisa – ainda estão inoperantes.

As manifestações oficiais são escassas em informação concreta, contendo apenas promessas: de que não houve perda de dados, que novos equipamentos já estão disponíveis e que o CNPq trabalha para normalizar o sistema.

Esse conta-gotas informativo não tem agradado aos pesquisadores. Eles reclamam da falta de transparência e de informações mais detalhadas sobre o que de fato ocorreu. É o caso do médico, pesquisador e professor de Saúde Coletiva Alcides Silva De Miranda, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS). “Nos programas de pós-graduação e nos núcleos de pesquisas nós não obtivemos quaisquer informações provenientes do CNPq sobre o ocorrido nem previsão de normalização”, reclama ele, que também é coordenador da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). “O que denota despreparo da atual condução do órgão, até mesmo para lidar com eventos dessa natureza”.

Segundo a química Teresa Dib Zambon Atvars, do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o CNPq se limitou a enviar aos pesquisadores um comunicado resumido, depois da pane estar consumada e ter se tornado de conhecimento público. “Recebemos informações mais detalhadas dos contatos que temos dentro do CNPq”, conta. “Os funcionários de carreira do órgão estão muito abalados e tristes, porque sabiam e cobravam da direção e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) providências que não vieram, porque para o ministro [Marcos Pontes] e para o governo, ciência e tecnologia não são prioridades”.

Uma dessas informações passadas de dentro do CNPq e que vazou para a imprensa diz:  “A placa do servidor que queimou não tinha backup, a gente não sabe exatamente o que a gente perdeu (de dados), se perdeu alguns segundos, minutos, horas, dias. A folha de pagamento também está comprometida, vai ter que fazer algum processo manual, enfim, está um caos no CNPq”.

“Veio de dentro”, confirma Teresa. “Como disse, os funcionários de carreira estão muito abalados, pois gostariam de prestar um serviço de qualidade e não estão conseguindo. Estão sobrecarregados e quando esses problemas aparecem são eles que ficam na linha de frente do atendimento, recebendo as críticas e sem capacidade de resolver”.

 

Boletins

Em seus primeiros informes sobre a indisponibilidade dos sistemas, o CNPq não relatou exatamente o que havia ocorrido. Disse apenas que “o problema que causou a indisponibilidade dos sistemas já foi diagnosticado, em parceria com empresas contratadas, e os procedimentos para sua reparação foram iniciados”. Também afirma que o órgão já tinha adquirido novos equipamentos, e fala sobre as consequências do problema. “O CNPq/MCTI já dispõe de novos equipamentos de TI e a migração dos dados foi iniciada antes do ocorrido”, dizia o informe 3. “Independentemente dessa migração, existem backups, cujos conteúdos estão apoiando o restabelecimento dos sistemas. Portanto, não há perda de dados da Plataforma Lattes. O pagamento das bolsas implementadas não será afetado. Todos os prazos de ações relacionadas ao fomento do CNPq, incluindo a Prestação de Contas, estão suspensos e, de ofício, serão prorrogados”.

No informe 4, feito por meio de um vídeo no YouTube, o presidente do CNPq, Evaldo Vilela, fala mais especificamente da causa do problema e descarta a ação de um hacker. “Ontem [27 de julho] tivemos a confirmação do diagnóstico, realizado por duas empresas, que apontou o problema em um dispositivo do equipamento, chamado controladora do storage”, disse ele. “Importante ressaltar que não foi um agente externo, nada de hacker, mas sim uma questão técnica. A falha de uma peça que pode ser substituída. Assim, tão logo pudemos afirmar com segurança, divulgamos que o backup das informações está garantido”.

No informe 9, divulgado em 5 de agosto, dizia que havia sido concluído o processo necessário para realização dos pagamentos. “O valor das bolsas será creditado dentro do prazo tradicionalmente estabelecido: quinto dia útil de cada mês”, diz o texto. “Foram reforçadas ações de segurança da informação, intensificando a cooperação com a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa - RNP para reativar o site de contingência do banco de dados e a parceria com o SERPRO para uso do serviço de nuvem para todas as plataformas”. O comunicado também diz que está em andamento a migração dos sistemas, visando à utilização de uma infraestrutura mais segura, com o equipamento novo, já adquirido.

 

Sem manutenção

Entre os dois informes, o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marcos Pontes, fez uma live, no dia 28 de julho, tentando tranquilizar a comunidade científica e jogando a culpa da pane nos governos de Dilma Rousseff e Michel Temer. Disse ele no pronunciamento: “Desde quando eu entrei em 2019, eu cheguei lá, eu recebi uma herança muito legal, de 2018, que era o seguinte, R$ 330 milhões faltando para as bolsas do CNPq”, começou. “Então, essa foi a herança que eu ganhei, quando entrei no ministério, de 2018. Me passaram, toma aí o CNPq, tá faltando 330 milhões aí dentro, pra você pagar as bolsas, boa sorte. Poderia ser feito lá atrás, sei lá, em 2013, quando o orçamento tava bom, do ministério tudo. Porque não fizeram? Sei lá porque não fizeram. Não pensaram nisso ou não fez parte da preocupação do pessoal na época”.

Não é bem assim. Os R$ 330 milhões a que Pontes se referiu eram destinados, como ele mesmo disse, ao pagamento de bolsas e não ao custeio do órgão, que deveria ter orçamento próprio para compra e manutenção de equipamentos, por exemplo. Entre os equipamentos que deveriam ter manutenção constante e garantida está o que deixou de funcionar no dia 23 de julho. Trata-se de um Storage VNX 8000 comprado, em 2014, no governo Dilma, da empresa EMC Corporation, que a partir de 2016 passou a se chamar Dell EMC.

"Storage" ("armazenagem") é um equipamento feito para armazenar dados de servidores, da rede local de empresas e residências ou mesmo de um celular. No vídeo, divulgado no dia 28 de julho, Vilela, o presidente do CNPq, diz que o problema foi num dispositivo chamado “controladora do storage”. O que ele não explicou foi a causa do problema. Mas se sabe que o contrato de manutenção do equipamento terminou em 2018 e não foi renovado pelo então ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Gilberto Kassab, nem pelo sucessor, Pontes, que, não custa lembrar, está no cargo há dois anos e meio.

Seja como for, o CNPq sabia – e o ministro deveria saber – da fragilidade dos equipamentos em uso. Tanto que, por meio de um pregão eletrônico lançado no início do ano, contratou a empresa Adistec Brasil Informática Ltda, para a compra de “duas unidades de armazenamento (Storage) All Flash, com instalação, configuração e garantia e suporte técnico por 60 meses”. A Adistec representa a marca Pure Storage e deveria fornecer dois equipamentos de armazenamento de dados, do tipo FlashArray – storages que utilizam memórias flash (SSD), em vez de discos rígidos, para armazenar dados. São a estes dispositivos, adquiridos em abril, que os informes do CNPq sobre a pane se referem, quando dizem que o órgão já dispõe de novos equipamentos.

Outra evidência de que o CNPq sabia das fragilidades de seus servidores é a justificativa para a necessidade de aquisição de novos equipamentos. O órgão disse que, na época, tinha 50 servidores físicos – hoje são 267 –, que armazenavam seus dados no storage modelo VNX 8000, marca EMC, e que havia a necessidade de ampliação e reestruturação de sua capacidade. Um dos objetivos disso era proporcionar aos usuários do CNPq maior facilidade, rapidez e maior portabilidade em suas atividades diárias. Além disso, o órgão acrescentou outra razão. Explicou que não tinha equipamentos de contingência disponíveis, para uma eventual falha do EMC VNX 8000, que se encontrava sem garantia do fabricante e sem contrato de suporte técnico vigente.

Essas podem ter sido as causas diretas do problema. Mas para a comunidade científica, a origem mais profunda do “apagão” do CNPq está no negacionismo, no desprezo pela ciência e no corte de verbas para a área feitos pelo atual governo. É o que pensa, por exemplo, Teresa Dib, da Unicamp. “O que ocorreu foi falta de gestão e de investimento, a pior combinação possível”, critica. “A área de Tecnologia da Informação tem que estar em constante manutenção preventiva, e requer também pessoal qualificado e atualizado”.

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Teresa acrescenta que as boas práticas da área recomendam sempre existir um sistema redundante, além do sistema em uso. Isso previne acidentes, perdas de informação e interrupções. O que requer investimentos constantes e substanciais, mas a relação custo-benefício é sempre positiva. “Remediar significa, além do prejuízo à imagem, que tem um valor intangível, investimentos milionários emergenciais, o que implica em gastar muito para corrigir e mais ainda para evitar problemas futuros”, diz.

 

Narrativas

Para a presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), Flávia Calé, o apagão de dados do CNPq é reflexo de um cenário de reduções sistemáticas de orçamento. “Em 2018, nós passamos o ano inteiro lutando por R$ 300 milhões, para encerrar o período”, lembra. “Em 2019, houve uma agenda muito forte de tentar extinguir o órgão e fundi-lo, criar uma superagência, com a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior]. A redução orçamentária tem sido muito grande, e que coloca para o CNPq uma verdadeira escolha de Sofia. Ou investe em pesquisa e no pesquisador, que é a sua atividade final, ou em infraestrutura e manutenção”.

Flávia também critica a insistência do CNPq em dizer que a pane que ocorreu não tem relação com cortes no seu orçamento. “É uma guerra de narrativa, que me parece muito inócua, porque, objetivamente, o órgão funciona hoje com cerca de 300 funcionários, e até o final do ano, com as cerca de 50 aposentadorias, pode cair a 250”, diz. “Quando precisava de um número próximo 800 servidores, para poder funcionar plenamente. A agência pediu um concurso para 180 funcionários, no início do ano, para qual ainda não houve previsão orçamentária. Ou seja, existe a demanda, mas não há condições objetivas, orçamento para executar. E não é exatamente porque o Brasil não tem recursos. É porque não há prioridade para a ciência”.

O ex-presidente do CNPq (1995-1998) José Galizia Tundisi, em cuja gestão foi criada a Plataforma Lattes – então chamada de Genesis – também critica os cortes de recursos para o órgão, mas elogia a equipe técnica da área de Tecnologia da Informação. “O CNPq sempre teve uma equipe de funcionários especializados e competentes e o presidente atual é um pesquisador de altíssimo nível”, assegura. “Não creio que levará muito tempo para reparar o sistema, pois é urgente a volta de todo o processo”.

Tundisi condenou a falta de recursos para o CNPq e para a ciência em geral do Brasil, em um artigo publicado em 5 de julho no jornal O Estado de S. Paulo. “No texto, comentei que o orçamento anual que eu tinha, em cada ano da gestão, era de R$ 500 milhões (que na época eram US$ 500 milhões dada a paridade do dólar)”, conta. “Hoje, o orçamento é de R$ 1,2 bilhão anuais (2021), o que corresponde a U$ 250 milhões – metade do que era há 26 anos”.

O biólogo molecular Samuel Goldenberg, pesquisador (aposentado) emérito da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), é mais contundente em suas críticas aos cortes orçamentários do CNPq. Para ele, não interessa a origem exata do que ocorreu com os computadores do órgão, o que importa é que um sistema que guarda todos os dados dos pesquisadores brasileiros (currículos, projetos, relatórios) não pode ter uma tal vulnerabilidade.

“O problema, de fato, é indubitavelmente a situação de precariedade do financiamento para a ciência, que tem levado ao sucateamento de nossas instituições, entre as quais a mais importante agência de fomento, o próprio CNPq”, diz. “Os recursos para C&T estão nos níveis do início de nosso século, quando o sistema era muito menor”.

De acordo com Goldenberg, o que houve no órgão faz parte de um problema conjuntural, no qual a ciência não é prioritária e há uma “manifesta política” de falta de apoio para ela, refletindo a característica negacionista do governo. Nesse quadro, as instituições de pesquisa estão sucateadas, não há fomento para financiamento de projetos e uma política de concessão de bolsas estagnada, tendendo a decréscimo.

“Somando-se a essa política nefasta de sucateamento, a própria estrutura do CNPq está ameaçada”, diz. “Há uma falta de pessoal, por causa das aposentadorias e de concursos nos últimos anos. Sem contar os casos de afastamento por motivos de saúde. Os funcionários da agência são extremamente dedicados e graças à sua abnegação a situação para nós, usuários finais do sistema, não está pior. Obviamente esta falta de recursos se reflete na infraestrutura própria do órgão e certamente afeta todo o sistema de TI”.

Goldenberg lembra ainda que CNPq completou 70 anos este ano e conta que ele próprio é bolsista desde 1971. “A agência tem sido presença constante na minha vida”, diz. Na sua longa carreira, ele passou por quase todas as categorias de bolsa, participou de comitês assessores e foi membro do seu Conselho Deliberativo. “Mas, em todos esses meus anos de usuário e assessor, jamais o vi em situação tão precária, tão vilipendiado e tão sucateado”, lamenta.

“É muito triste – quando fica de mais em mais evidente que a ciência é libertadora e que sem ela não há desenvolvimento – ver a situação de descaso com o CNPq. Muitos dos que ocupam cargos no atual governo, inclusive na gestão da ciência e tecnologia, deveriam se lembrar que sua formação só foi possível graças ao apoio que receberam do órgão. Não se trata apenas de uma questão de indiferença e incompetência, há muita ingratidão”.

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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