O caso do cientista inexistente

Questão de Fato
4 abr 2022
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armadura

 

Tal como Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, o cavaleiro da corte de Carlos Magno, personagem do livro O Cavaleiro Inexistente, de Ítalo Calvino, que trazia sua armadura sempre imaculadamente alva, mas vazia, Camille Noûs, cientista da França, tem chamado a atenção. Entre 2020 e 2021, seu nome aparece na lista de autores de mais 180 artigos, de áreas tão diversas quanto astrofísica, biologia molecular e ecologia. Só há um pequeno problema: assim como Agilulfo, tal pesquisador não existe.

Segundo artigo publicado no Scienza In Rete, Camille Noûs é uma invenção da associação RogueESR, nome no qual “ESR significa Enseignement Supérieur et la Recherche, [Ensino Superior e Pesquisa] e rogue, rebelião”. O objetivo da criação do pesquisador inexistente é protestar contra a ideia de que cientistas, “para fazer carreira, têm que escrever muitos artigos, que depois recebem muitas citações e demonstrar que esse objetivo pode ser alcançado mesmo por alguém que não existe”.

Camille Noûs combina um nome próprio que é tanto masculino como feminino em francês a um sobrenome que é uma elaboração do pronome “nós”. Sua filiação, o Laboratório Cogitamus, também é obra coletiva. Em seu site, diz que se trata de “uma instituição deslocalizada, reunindo cientistas de todas as disciplinas e nacionalidades em torno de valores comuns: o da pesquisa honesta e desinteressada, que aspira a criar, perpetuar, revisar e transmitir conhecimento. Tal como o seu primeiro membro Camille Noûs, o Cogitamus oferece-se a acolher aqueles que, partilhando desta visão, desejam comprometer-se e trabalhar para esta procura ideal”.

Quanto a Camille Noûs, o site diz que nasceu em 20 de março de 2020, “encarnando a contribuição da comunidade para o trabalho de pesquisa, na forma de assinatura coletiva. Esta coassinatura reivindica o caráter colaborativo e aberto da criação, experimentação e disseminação do conhecimento, sob o controle da comunidade acadêmica, e está destinada a se tornar um rótulo de integridade”.

Para muitos pesquisadores não é difícil entender por que casos como o de Camille Noûs podem ocorrer. Por trás deles está a busca desenfreada por publicações, especialmente em revistas internacionais de índice de impacto relevante. “Esta correria toda de escrever papers e papers e papers é uma insanidade”, diz o infectologista Francisco Hideo Aoki, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

De acordo com ele, cientistas que realizam pesquisas com seriedade não conseguem este ritmo. “A não ser que tenham um batalhão de orientados, de mestrandos, doutorandos, alunos de iniciação científica, estrutura de Recursos Humanos para tal”, diz. “Ainda assim, diria que é quase impossível que, com uma atuação dessas, seja possível produzir em série muitos artigos científicos relacionados às pesquisas desenvolvidas”.

O engenheiro químico Reinaldo Giudici, Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), diz que os sistemas de avaliação de cientistas e de instituições têm exercido uma grande pressão para o “produtivismo” e que esta corrida pode causar distorções, induzindo o comportamento dos cientistas para o aspecto "quantitativo" (número de artigos) em detrimento do “qualitativo” (impacto dos resultados, não necessariamente de citações).

Esta pressão, segundo ele, tem induzido também outros comportamentos deletérios para a atividade científica, tais como fraudes, a proliferação de periódicos com más práticas editoriais, chamados de “predatórios”, “clubes” de  autores, que compartilham artificialmente e indevidamente coautorias, e de citação. “Esse caso de Camille Nôus busca chamar atenção para esse problema, mostrando as falhas do sistema e dessa excessiva valorização do quantitativo de produção e de citações”, explica.

A química Teresa Dib Zambon Atvars, da Unicamp, por sua vez, vê esse assunto como um grande desafio ético para o futuro. “Com o uso de inteligência artificial e machine learning, esse tipo de ‘ciência’ pode passar a ser feita sem controle”, alerta. “E com o crescimento do número de cientistas disputando protagonismo, o risco não é pequeno, nem as consequências. E não me refiro apenas às graves sequelas das fraudes em dados, ou nos experimentos não realizados, mas a pesquisa sem controle de pares e sem a devida ética profissional”.

Na opinião do glaciologista Jefferson Cardia Simões, vice-pró-reitor de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e vice-presidente do Scientific Committee on Antarctic Research/Conselho Internacional de Ciências (SCAR/ISC), está mais que na hora de a comunidade científica reavaliar o modo de verificação do impacto da sua atuação na sociedade. “A relevância do seu trabalho é muito maior do que o impacto do artigo x, y ou z”, diz.

Para ele, manifestos de grupos como o RogueESR tem muita razão de ser. “Índices de impacto como são organizados hoje acabam por gerar essas distorções”, avalia. “E pior para a ciência e seu impacto na sociedade, que não reconhece os outros papéis do cientista na vida acadêmica, tal como o próprio ensino, a formação de novas gerações de cientistas e, principalmente, dos aspectos de liderança e planejamento de grupos e instituições científicas. Ou seja, deixa de ser produtiva e passar a ser produtivista”.

Para a autora do artigo do Scienza In Rete, embora a iniciativa da associação RogueESR seja interessante “para iniciar uma discussão sobre o valor das listas de autores e sobre o grau de responsabilidade que cada um deles deve compartilhar, é uma operação que abre questões de ética profissional e respeito para com as revistas científicas”.

Ela lembra que os coautores dos artigos deveriam ter sido informados (“e presume-se que tenham se declarado de acordo, embora em uma busca rápida logo encontrei um colega que caiu das nuvens”). O mesmo não pode ser dito “para os editores das revistas que publicaram os trabalhos do autor inexistente, que agora se veem obrigados a retificar a lista de autores, excluindo Camille Noûs. Consequências reais de uma entidade imaginária”.

Entre os pesquisadores brasileiros também há quem não aprove a criação de Camille Noûs e a publicação de artigos de um autor inexistente. “Mesmo que tenha sido criado como uma forma de protesto, considero a iniciativa desastrosa”, critica a bióloga Rosy Mary dos Santos Isaias, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Ela desmerece o trabalho dos corpos editoriais comprometidos com a divulgação científica, que não têm por hábito checar a afiliação de todos os autores, confiando em grande parte das vezes no autor líder do artigo”.

O físico e meteorologista Tercio Ambrizzi, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP (IAG-USP), joga no mesmo time. “Não concordo com a forma com que foi feito o protesto, pois, de certa maneira, enganou alguns coautores que não foram notificados da ‘brincadeira ou teste’ e também as editoras, que, em princípio, confiam no primeiro autor, que é o líder do artigo”, explica. “Ele é o responsável por descrever como os vários coautores participaram do paper. Na verdade, atualmente muitas editoras pedem que isso seja descrito no ato da submissão, particularmente quando existem vários autores”.

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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