Os desafios do ensino e da compreensão da evolução no Brasil

Questão de Fato
29 jun 2022
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Charles Darwin

 

A Teoria da Evolução, uma das descobertas mais importantes e fundamentais já feitas no estudo da vida, continua, quase 200 anos depois de formulada por Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913), a ser em geral mal ensinada nas escolas e universidades brasileiras e, por isso, mal compreendida e mal interpretada. Especialistas ouvidos pela Revista Questão de Ciência atribuem o problema às dificuldades inerentes da teoria, mas também à abordagem superficial adotada por muitos professores e a alguma resistência religiosa e ideológica.

Apresentada ao mundo no livro de Darwin A Origem das Espécies, lançado em 24 de novembro de 1859, a teoria colocou por terra a crença de que o ser humano ocupa um lugar especial na história da vida. Ela contrariava a crença dominante na época, que era a fixidez das espécies, ou seja, que elas teriam sido criadas por Deus com certa forma e nunca mudariam.

De acordo com o professor de filosofia Gustavo Caponi, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), “Darwin assentou as bases para uma reconstrução científica da história da vida”. “Com ele, surgiu uma ciência onde antes havia somente espaço para especulação”, diz.

Embora mal compreendida, atacada e não aceita por muitos, principalmente por pessoas ligadas à religião – mas não só –, a Teoria da Evolução nunca foi refutada cientificamente. “Em ciência, pode-se dizer, não há teorias irrefutáveis, nem argumentos irrebatíveis”, diz Caponi. “Apesar disso, até para duvidar precisamos de boas razões, e não é o que ocorre com os que não acreditam na evolução, que não apresentam justificativas científicas, apenas religiosas. Por isso, seus argumentos estão fora do domínio do cientificamente discutível”.

Mas o que diz, afinal, a tão famosa Teoria da Evolução? Para começar, é preciso conhecer alguns conceitos-chave. O primeiro passo é entender que “evoluir”, no sentido darwiniano do termo, não significa “melhorar” ou “progredir”. Bactérias e besouros não são menos “evoluídos” que seres humanos, por exemplo. Todos representam linhagens bem-sucedidas e que chegaram até os dias de hoje.

As bactérias vivem na Terra há pelo menos 3,5 bilhões de anos, e os besouros estão entre os grupos com mais diversidade e difusão no planeta. Para comparar, só há uma espécie de ser humano, o Homo sapiens, que surgiu há meros 200 mil anos, menos que um piscar de olhos na história da vida.

 

Seleção natural

A ideia central da evolução defendida por Darwin é a descendência com modificações. Os filhos não são cópias perfeitas dos pais, existe variedade. Essa variedade é objeto do processo de seleção natural: indivíduos cujas características particulares se mostram mais bem adaptadas às condições ambientais em que a espécie vive têm mais chance de sobreviver o suficiente para deixar descendentes, e assim as adaptações são preservadas e disseminadas ao longo das gerações.

“Dei o nome de seleção natural, ou de persistência do mais capaz, à preservação das diferenças e das variações individuais favoráveis e à eliminação das variações nocivas”, escreveu Darwin em A Origem das Espécies.

De acordo com a bióloga Vera Solferini, professora titular da área de Evolução do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ao tratar de evolução é importante pensar em termos populacionais. “Não se trata de mudanças na prole de um indivíduo e sim de mudanças hereditárias ao longo das gerações de um conjunto”, explica. “A seleção natural pode tornar as populações mais bem adaptadas aos seus ambientes, aumentando a frequência dos alelos [versões de um gene] que conferem maior valor adaptativo”, resume.

Além da seleção da natural, a deriva genética faz parte do processo evolutivo.

Uma mutação pode ser definida como qualquer alteração no material genético de um organismo, que pode originar uma nova característica. Se esta oferecer alguma vantagem ao indivíduo, o alelo tende a ser preservado pela seleção natural.

A deriva genética, por sua vez, é um processo de mudança ao acaso das frequências dos alelos de uma população. Ela ocorre o tempo todo, em populações de todos os tamanhos, mas são mais sentidas nas pequenas. Alguns casos particulares como, por exemplo, catástrofes naturais, incêndios, inundações e outros tipos de alterações no ambiente, reduzem rápida e drasticamente o tamanho de uma população, eliminando mesmo os indivíduos mais bem adaptados. O conjunto dos sobreviventes não representa, ou seja, não contém, toda a diversidade genética do grupo primitivo. É o chamado efeito gargalo.

Há ainda um outro efeito da deriva genética, chamado de fundador. Ele ocorre quando há migração de um pequeno grupo de uma população maior, que se separa e vai para outra região e fica isolada da que lhe deu origem. Ao longo de tempo, ela pode dar origem a uma nova espécie, num processo chamado especiação.

Em qualquer caso, a deriva genética é aleatória e não preserva necessariamente vantagens ou adaptações. Com o tempo, alguns alelos podem se fixar na população ou desaparecer. Por isso, ela pode, inclusive ser maléfica. “No caso das populações pequenas, a ação da deriva pode, em alguns casos, promover a fixação de alelos que diminuem o valor adaptativo e, eventualmente, o grupo é extinto”, explica Vera.

 

Ensino difícil

Entender e explicar a evolução e seus mecanismos pode ser mais complicado do que parece à primeira vista, mesmo no ambiente universitário. “Uma das dificuldades, na minha percepção, é entender que o processo evolutivo não é determinístico, que não há uma finalidade ou um objetivo”, diz Vera. “Além disso, a compreensão dos efeitos de cada um dos mecanismos evolutivos, e de sua interação nas populações naturais, requer o entendimento de modelos matemáticos, e alguns estudantes podem ter dificuldades com isso”.

De acordo com Caponi, em geral os estudantes mostram grande desconhecimento, e até incompreensão, dos aspectos teóricos fundamentais da evolução. “E isso não faz mais do que refletir o pouco espaço que, de fato, a Teoria da Evolução tem no conteúdo das diferentes disciplinas”, diz.

Ele enumera outros obstáculos para o correto entendimento da evolução. “É difícil ensinar o que não se entende bem”, afirma. “Acho que as dificuldades centrais está em dois pontos. O primeiro é que teoria exige pensar em termos populacionais, tomando as populações como linhagens e pensando as características dos seres vivos como estados de caracteres que são atributos delas. Mas, em geral, quando falamos em seres vivos pensamos em organismos individuais. E isso traz obstáculo para a compreensão da evolução”.

O segundo ponto é que a explicação de como a seleção natural produz a adequação de estrutura e função dos seres vivos é complicada. “É um mecanismo de relojoaria, no qual se articulam conceitos diferentes que são muitas vezes confundidos: ‘função’, ‘aptidão’ (em sentido ecológico), ‘sucesso reprodutivo’, ‘eficácia’, ‘adaptação’”, explica Caponi.

Para ele “é chato desembaralhar a meada”. Por isso, não é raro que se fale da seleção natural oscilando entre tratar ela ora como um processo intencional ora como o resultado de simples acaso. “Tenho escutado professores de biologia do ensino superior falando isso”, espanta-se. “Nesse contexto, não espanta que os estudantes tenham dificuldades para entender a teoria”.

O biólogo e doutor em Educação Nelio Bizzo, professor titular sênior da USP e adjunto da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), lembra que, conforme estabelecem as diretrizes curriculares nacionais, os cursos de Ciência Biológicas das universidades brasileiras contemplam a Teoria da Evolução. O difícil é saber como ela está sendo ensinadas em todos os cursos de todas as instituições.

Seja como for, a preocupação dele é com a educação básica. “Há vários estudos, inclusive minha tese de doutorado defendida em 1991, que mostram que os estudantes saem das escolas sem conhecimentos da teoria evolutiva”, diz. “Além disso, há um movimento, inclusive com mais de um projeto no Congresso, querendo incluir no currículo da educação básica o ensino do criacionismo, de um criador supremo. Como se isso pudesse estar no mesmo patamar do conhecimento científico”.

 

Método

Vera pensa de maneira semelhante. Ela diz que, de um modo geral, a falta de vivência no método científico e de conhecimento sobre a Teoria da Evolução biológica vem desde o ensino fundamental. “Instituições de ensino superior formam professores com pouco preparo para isso”, aponta. “Mas mesmo aqueles bem preparados têm muito pouco tempo para trabalhar ciência com seus alunos”.

De acordo com ela, apesar disso os alunos de cursos de Biologia têm conhecimento do processo evolutivo, da importância de Darwin e rejeitam ideias criacionistas. “Mas muitas vezes esse conhecimento é superficial, restringindo-se a descrições da história evolutiva de alguns grupos de organismos e à aplicação da seleção natural para qualquer padrão observado”, explica. “É muito frequente a apresentação de hipóteses como fatos, ou ‘verdades’, como, por exemplo, argumentar que uma determinada estrutura do corpo de uma espécie foi importante para que ela ocupasse uma certa área geográfica”.

Charles Darwin

 

Vera atribui as deficiências do ensino da evolução à escassez de professores de genética de populações. E é justamente esta disciplina que torna possível estudar evolução usando o método científico e a compreensão da atuação dos processos evolutivos. “Em relação às ideias de Darwin, são raras as instituições que incentivam a leitura de A Origem das Espécies. Muitos biólogos nunca leram o livro e possuem uma noção equivocada sobre seu conteúdo”.

Ela diz ainda que, em alguns cursos, circulam algumas ideias criacionistas, como o design inteligente, por exemplo. “Eu diria que, com a falta de disciplinas que abordem a evolução e com pouco conhecimento sobre o método científico, cada estudante exprime opiniões sobre o tema de acordo com o pensamento de seu grupo familiar ou social”, acrescenta. “Um problema mais recente são os estudantes, inclusive de Biologia, vinculados a religiões fundamentalistas e que negam a teoria evolutiva por considerá-la contrária à palavra divina”.

Para a bióloga Maria Elice de Brzezinski Prestes, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da USP, no Brasil o ensino de qualquer área particular é afetado pelas condições estruturais da educação no país como um todo. “No caso da evolução, somam-se a resistência em escolas confessionais (geralmente apenas entre as neopentecostais), o equívoco em associar evolução com materialismo, a formação deficitária oferecida aos professores e lacuna de dados de pesquisa empírica que localizem os problemas específicos da aprendizagem da teoria”, enumera.

Para Caponi, as causas do problema são muitas e variadas. Por uma parte está o pouco espaço que a Biologia Evolutiva tem nas pesquisas biológicas desenvolvidas no Brasil. Isso, de acordo com ele, enviesa a escolha de conteúdos por parte dos professores, que tendem a formar os estudantes em virtude daquilo que é funcional para as pesquisas que eles desenvolvem. “Mas acho que há outro problema”, diz. “Os próprios professores, que em geral trabalham em pesquisas em que a perspectiva evolutiva não tem um papel efetivo, nem sempre têm uma correta compreensão da evolução, e assim a problema vai se alastrando”. 

Ele também não descarta o problema da adesão à teoria de Darwin por parte de vários deles. Ela é baixa entre os docentes do segundo grau, e “a religião tem tudo a ver com isso”. No ensino superior, ele diz que a adesão (às vezes) é fraca, sem muito entusiasmo. “Acho que a religião, e outras questões ideológicas, também podem estar tendo algum papel nisso”, acredita. “Podem aceitar que a teoria seja um referencial indiscutível na Biologia contemporânea, mas com algum desconforto. Quem sabe, esperando secretamente que, algum dia, algo nela seja revisado numa direção que você ache mais afim com suas convicções pessoais”.

 

Consequências

As deficiências do ensino da evolução nas universidades trazem consequências tanto para os estudantes e os novos pesquisadores e professores quanto para a sociedade de uma maneira geral. “A falta de formação em biologia evolutiva equivale a uma compressão enviesada, incompleta e distorcida da Biologia”, diz Caponi. “Talvez isso não seja um empecilho para se fazer pesquisas que resultem em muitos papers. Mas, com essa formação, dificilmente alguém chegará a ser um biólogo de primeira linha, e menos ainda um bom professor em qualquer nível de ensino que se queira considerar”.  

Para Vera, a falta de conhecimento e vivência sobre ciência e método científico prejudica a maneira como os formandos e as pessoas em geral lidam com as informações e tomam suas decisões. “Os reflexos disso são claros nesta epidemia de desinformação que estamos presenciando”, aponta. “A falta de conhecimento em evolução impede a compreensão de diversos fenômenos que impactam a sociedade, desde o aquecimento global e suas consequências até as dinâmicas de transmissão da COVID-19 e probabilidades de surgimento de novas variantes em populações não vacinadas”.

Para os pesquisadores, esse quadro de hoje precisa mudar, e para isso são necessárias algumas medidas e ações. “A introdução de história e filosofia da Biologia nos currículos de formação de professores ajudaria bastante”, diz Maria Elice. “O uso de dados de pesquisa de ensino de evolução em outros países poderia fornecer informações importantes para os currículos e para o planejamento de ensino nas escolas”.

Caponi, por sua vez, defende ações mais específicas. “É preciso introduzir nos currículos disciplinas explicitamente voltadas ao estudo da Teoria da Evolução”, defende. “Isso independentemente de que haja ou não na instituição pesquisas em Biologia Evolutiva. Eu não me ateria apenas à ideia de que a evolução já está presente em toda parte, porque assim pode acontecer que acabe ficando absolutamente ausente”.

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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